Luciana Garcia de Oliveira
“O que importa não é o que fizeram conosco, mas o que fazemos com o que fizeram conosco” (Jean Paul Sartre)
São muitas as razões capazes de comprovar que a ideologia sionista (predominante no Estado de Israel) enfrenta uma crise crescente. A integração forçada de novos imigrantes, as limitações da democracia (defendida pelos atuais governantes), o caráter europeu-ocidental exclusivista, a concentração do yishuv e no Estado, a questão colonial, o expansionismo territorial (e a conseqüente transferência dos palestinos) e a militarização da sociedade são alguns fatores comprovadores dessa situação da atual crise de identidade.
No entanto, é a partir do ano de 1967, que a situação aparece numa versão ainda mais dramática. É nesse momento em que, não somente o expansionismo e a expropriação das terras palestinas foram retomadas, como emergiu uma sociedade de colonos que, busca construir uma comunidade à parte, “semicolonial” que, passou a ser imediatamente denominado pelos nomes bíblicos, “Judea e Samaria”.
Ainda, soma-se à isso, uma forte concepção de segurança, com um exército extremamente brutal e um governo que, ao longo do tempo passou a dispensar um tratamento de “inimigo” aos palestinos residentes no Estado israelense, o que serviu para excluí-los, de fato, do poder político. Em Israel, a promoção da democracia étnica, viola flagrantemente ao princípio universal da igualdade.
E, para piorar ainda mais a situação, o país não possui uma Constituição, o que torna toda a prática de discriminação um fato inqüestionável.
Assim, de acordo com José Maurício Domingues, “nacionalismos étnicos, radicalismos religiosos e a falta de uma concepção multicultural criam enormes barreiras”. As fronteiras entre Israel e os territórios palestinos, tornam-se um problema e um risco, e a segregação dentro dessas fronteiras legitimam um estado de apartheid social.
Nesse passo, a solução imediata para o conflito foi a construção de um Muro que, teoricamente, separa o Estado de Israel dos territórios palestinos.
A maior parte dos turistas e ativistas estrangeiros que já tiveram a oportunidade de viajar a Israel e à Palestina, afirmam frequentemente que, muitos funcionários do aeroporto de Ben Gurion, dificultam o acesso à Cisjordânia (território palestino), numa clara tentativa de apagar a existência da Palestina, do povo palestino e de toda a sua história.
A real impossibilidade de se enxergar “o mundo” para além do Muro (erguido em junho de 2002), legitima que as estradas de acesso à Cisjordânia sinalizem tão somente aos assentamentos judaicos instaurados naquela mesma localidade.
Ao se tentar questionar a existência do Muro em pleno território palestino, grande parte dos israelenses são capazes de justificar, sob um primeiro plano, ao renomear a ostensiva construção para “Barreira de Segurança” ou “Muro de proteção”, requisitado tanto por parte da direita israelense, como pela esquerda, numa conjuntura de pós-Intifada no final de setembro de 2000. Momento em que o Estado de Israel encontrava-se constantemente “ameaçado” por atentados terroristas (advindos da incidência dos chamados “homens bombas” e pelo lançamento de mísseis por parte do grupo Hamas). A essa altura, prevalecia-se um clima de guerra e insegurança.
A idealização para se construir o Muro, surgiu depois do fracasso da Conferência de Camp David (sobre o conflito Israel-Palestina), ocorrido em julho de 2000. E, mesmo diante do consenso israelense para a sua consecução, algumas diferenças foram suscitadas entre as alas da direita e da esquerda. Para a esquerda israelense, a barreira deveria respeitar o traçado da chamada “linha verde” (limite imposto por Israel, após a Guerra dos Seis Dias, em 1967). A direita, por sua vez, pretendia anexar o maior número possível das colônias judaicas existentes, dentro do território palestino, inclusive na parte oriental de Jerusalém.
Por outro lado, são ainda muito poucos os que realmente sabem que, juntamente com a construção do Muro, o Estado de Israel violou o Direito Internacional (em 2004, o Tribunal Penal Internacional de Haia, condenou a construção do Muro), isso porque o empreendimento foi deliberadamente erguido dentro do território palestino, numa clara proposição de anexação de territórios, conforme pode ser visualizado no documentário Budrus (de autoria da cineasta brasileira Julia Bacha). O que, por sua vez, descaracteriza completamente o argumento da “defesa do território israelense”.
Desde a construção do Muro, os palestinos, de uma maneira geral, dependem diretamente da autorização expressa do exército para realizar qualquer tipo de reforma em suas residências. E, mesmo diante da ameaça real dos colonos (dos assentamentos judaicos) que, intimidam constantemente a população palestina da Cisjordânia, é perfeitamente possível depara-se com a livre circulação dos ultraortodoxos nesses mesmos territórios, portando suas armas pesadas nas costas.
Grande parte do território da Cisjordânia encontra-se interditado aos palestinos, justamente para proteger esses mesmos colonos (armados) de eventuais “ataques terroristas” advinda da população palestina (geralmente desarmada). Conjuntura esta, muito semelhante ao regime de apartheid sul-africano.
Mesmo diante de todo repúdio advindo da comunidade internacional e das resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo israelense nunca, de fato, sequer paralisou as construções dos assentamentos, mesmo durante os processos de negociações de paz na região. Apesar, das dificuldades (hoje) em desmantelar toda uma comunidade fortemente armada que, ainda reivindicam a terra de seus ancestrais bíblicos, conforme fora abordado no artigo anterior, Israel e os ultraortodoxos – notícias de uma guerra anunciada.
Aliado à limitação da circulação, é também constatado uma grande diferença no que concerne ao consumo de água. De acordo com Vladimir Safatle em um recente artigo produzido após visita à Palestina, “um colono israelense usa seis vezes mais água que os palestinos. Caso queiram mais, os palestinos precisarão comprar água de uma empresa israelense que explora o rio (Jordão) do qual os próprios palestinos são donos”.
Diante de tantos prejuízos suscitados desde a construção do Muro, a ONG Stop the Wall, deu início à tradição da “semana contra o Muro do apartheid” que ocorre no mundo inteiro, durante o mês de novembro. Data pela qual coincide com a queda do Muro de Berlim, na Alemanha em 1989. Desde então, muitas atividades, seminários, mostra de filmes, lançamento de livro, são promovidos a fim de se posicionar contra a interferência de pelo menos 130 vilarejos palestinos. Estima-se que cerca de 29 deles, deverá estar em total isolamento, brevemente.
A situação de calamidade pela qual vivem os palestinos segregados pelo Muro, torna a região cada vez mais sensível à conflitos e manifestações. Nesse sentido, cabe indagar-se sobre a possibilidade de avançar sobre a atual obsessão pela definição de identidades puras e, assim, aceitar a diversidade e a pluralidade presentes nessa região. A essa altura, visualizar dois Estados (separados) em um espaço extremamente reduzido, é um ingrediente perfeito à uma realidade permanente de pura violência.
O Muro desmistificou a certeza da segurança israelense.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DEMAIS FONTES DE PESQUISA:
DOMINGUES, José Maurício. A sociologia israelense e a crise do consenso sionista. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 25, nº 73, junho de 2010.
SAFATLE, Vladimir. Chamar de “muro” um muro. Folha de São Paulo, dia 09 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1045998-vladimir-safatle-chamar-de-muro-um-muro.shtml.
SAFATLE, Vladimir. A Cisjordânia e política da invisibilidade. Folha de São Paulo, dia 05 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1043906-a-cisjordania-e-a-politica-da-invisibilidade.shtml.
Budrus (doc.) título original: Budrus, Israel/Estados Unidos/Palestina, 2010, vídeo, 70 min., documentário, cor, em hebraico, inglês e árabe, com legendas em português. Direção: Julia Bacha. De acordo com o site: http://www.justvision.org/budrus.