Régis
Bonvicino publicou os seus três primeiros livros de poesia – Bicho papel, Régis hotel e Sósia da cópia
(reunidos, posteriormente, no volume Primeiro
tempo) – entre a segunda metade da década de 1970 e início da década de
1980. O autor está situado, portanto, na mesma geração literária de Paulo
Leminski[1]
(com o qual manteve correspondência, publicada no livro Envie meu dicionário, em 1999), Duda
Machado, Antonio Risério e Alice Ruiz. O seu projeto literário inicial, assim
como o de seus companheiros geracionais, deriva da Poesia Concreta, do
Tropicalismo, da Contracultura, mas esse diálogo logo será interrompido, nas
décadas seguintes, quando o autor descobre a poesia de vanguarda
norte-americana, em especial Robert
Creeley, expoente da Black
Montain College, Charles
Bernstein, Michael Palmer e Douglas Messerli, ligados à Language Poetry, poetas traduzidos e divulgados por Bonvicino no
Brasil.
A
influência norte-americana na poesia do autor brasileiro será imensa, em seu
segundo tempo, sobretudo nos livros Ossos
de borboleta (1996), Céu-eclipse (1999)
e Remorso do cosmo (2003). A partir
dessa produção, inicia um terceiro tempo em sua jornada criativa com os livros Página órfã (2007) e Estado crítico (2013), que retornam a um
discurso de sintaxe linear, linguagem coloquial e temática cotidiana, que o
autor já praticara no livro Más companhias (1987), mas agora com
inflexão política. São, portanto, três momentos bem distintos de sua atividade
literária, que inclui também a edição de revistas – Poesia em greve, Muda, Qorpo estranho, Sibila –, a tradução de
poetas como Jules Laforgue e Oliverio Girondo, a atividade como crítico nos
jornais Folha de S. Paulo e no Jornal da
Tarde e a organização de antologias de poesia brasileira contemporânea,
como Nothing the sun could not explain
(1997) e Lies abouth the truth (2000), publicadas nos Estados Unidos. Neste
artigo, vamos abordar alguns aspectos da poesia de Régis Bonvicino, que também
atua como juiz de direito em
São Paulo.
Bicho papel (1975), seu livro de estréia, cujo título faz trocadilho com bicho papão e, ao mesmo tempo, cria um
curioso animal semiótico (assim como o Occam, do Catatau de Leminski), é o livro mais “concretista” de Bonvicino,
utilizando o neologismo e a palavra-montagem,
a la Lewis Carroll e James Joyce, em poemas como Metaforagir-se
(“metaforagir-se em vocúbulos / metonimizar-se em hiatos / anacolutorcer-se em
paragarfos”), sinais de pontuação inseridos como ruídos gráficos (“?avolho /
?av?lho / ?av?l?o”) e até mesmo o espaço em branco da página, no poema visual
“a 10cm / uma palavra”.
Em Régis hotel, seu segundo livro,
publicado em 1978, a
emulação da Poesia Concreta permanece, em poemas como oO, que exploram a visualidade por meio da utilização não-gramatical
de maiúsculas no texto poético (“oO sSiILÊnNcCioO / gGrRiItTaA pPaArRaA / oO
oOlLvViIDoO”), ou ainda Vamos destruir a
máquina?, ready-made construído pela reprodução de tiras de uma história em
quadrinhos do Professor Pardal, na qual o poeta inseriu outro texto nos balões
de diálogo (experiência similar à realizada por Antonio Risério com quadrinhos
de Flash Gordon, no livro Fetiche).
Nesta obra, além de reproduzir ecos da Poesia Concreta de Augusto e Haroldo de
Campos e Décio Pignatari, o autor também dialoga, de maneira explícita, com o
humor dos haicais de Paulo Leminski, como acontece no poema sem título que diz:
“não sejam tolos! / a verdadeira / linguagem cifrada / é a dos homens escada /
que sobem na vida / sem dizer nada”. Sósia da cópia, publicado em 1983,
mantém a vertente leminsquiana (“não há saídas / só ruas viadutos avenidas”) e
a visualidade concreta (“o céu / não cai / do céu”, “Utopia / you are the
top”), bem como o vocabulário haroldiano, em poemas como Fio de esperança, dedicado ao autor de Signancia: quase céu e Galáxias.
A
composição mais interessante do volume é Vida,
paixão e praga de RB, dividida em oito seções breves, em que Bonvicino
parodia diversos estilos, entre eles o das litanias
da lua do poeta uruguaio de língua francesa Jules Laforgue, em versos
curtos e ferinos, nos quais faz violento autorretrato satírico: “fio e pavio /
do óbvio / epígono sim / ‘inocente’ inútil / dilutor / com todas as letras /
caixinha de eco / menino de recados / robô abobado”. Claro: por trás do aparente
masoquismo poético estava a constatação, naquele momento histórico, do aparente
beco sem saída do concretismo: o que fazer após Tudo está dito, de Augusto de Campos? Más companhias, publicado em 1987, e 33 poemas, que veio à lume em 1990, mantêm a angústia edípica: o
primeiro livro não vai além da dicção coloquial leminsquiana (“palavras não
matam / nem provocam inverno atômico”, “tentar / não contém / nem contenta”, “o
sol de cima / é o dinheiro do sul”) e o segundo mantém a construção concisa, elíptica,
neológica e fragmentária assimilada da vanguarda concretista e seu paideuma (a presença de cummings é
nítida, sobretudo, em Num zoológico de
letras, em linhas como “borbollllleta / raTTo / aa aa aa aa aa belhas”, e
ainda nos poemas Borr, Não voz, Poema em
homenagem a Laforgue).
Já nos
poemas Nada inconexo, Pontas de palavras
e Pregão da primavera, o autor cria labirintos poéticos em que as palavras
são dispostas em três colunas verticais, permitindo diferentes combinações e
caminhos de leitura – recurso adotado, com maior radicalidade inventiva, por
Augusto de Campos, em composições visuais como Inseto e Memos,
publicadas no livro Viva Vaia (Poesia
1949-1979). Enquanto Bonvicino, em seus labirintos poéticos, mantém a sintaxe
discursiva quase intocada, não investe na diversidade tipográfica e dispõe as
palavras e linhas numa diagramação amadora, que conduzem a poucas variações de
leitura, Campos
abole a sintaxe em sequências de verbos e substantivos sem relação gramatical
entre si, que podem ser lidas no sentido horizontal, vertical ou em diagonal,
utiliza diferentes famílias de letras, para ampliar os graus de ruído e
dissonância. A capacidade de geração de múltiplas formas de leitura, pela
recombinação aleatória de fonemas, atinge seu grau máximo no poema-livro-objeto
Colidouescapo, de Augusto de Campos,
formado por diversas folhas soltas que, tiradas de ordem pelo leitor e
colocadas em outras sequências, permite a criação de palavras neológicas como desestinto, resiscanto, desenisto,
menoscontro, resprezo.
A
inabilidade de Bonvicino para trabalhar com a visualidade levou-o a abandonar a
Poesia Concreta a partir de Outros poemas,
publicado em 1993, que reúne poemas escritos entre 1990 e 1992. Dividido em
três partes, este livro, intermediário entre o primeiro e o segundo tempo, é
talvez o mais consistente da obra do autor paulistano, pela densidade
semântica, inteligência estrutural, humor negro, impressões sensoriais,
metáforas agudas, ambientação urbana e outros elementos que definiram o seu
estilo. É uma poesia pós-concreta,
não no sentido de superação formal da Poesia Concreta, mas de sinalização de
uma nova senda criativa, posterior e distinta da vanguarda concretista.
Percebemos, nesta poesia da maturidade de Bonvicino, outras leituras e
influências, em particular a do argentino Olivério Girondo, autor de En la masmédula, traduzido para o português por seu colega brasileiro com
o título de A pupila do zero[2].
No poema Morreu-me, por exemplo
(“Morreu-me o visto como palavra”), há um jogo com Hasta morirla, de Girondo (literalmente, “até morrer-la”, invenção
neológica a partir da construção normativa “até matá-la”).
Em
outra peça, Olhar de dentro, um dos
textos mais inventivos do volume, Bonvicino exerce a escrita enigmática,
lacônica, em linhas como estas: “Olhar de dentro, / tocar-se de dentro – / só,
em si mesmo, / onde em silêncio / adentro”, unificada pelas rimas internas e
pela repetição anafórica da palavra dentro.
As ações e imagens impossíveis contidas no poema (“tocar-se de dentro”,
“cabelos de dentro”, “unhas de dentro”) antecipam uma das figuras recorrentes
na evolução criativa do leitor, sobretudo nos livros Ossos de borboleta e Céu eclipse.
O
absurdo intencional, distante de qualquer veleidade surrealista, será também um
dos pontos de contato entre Bonvicino e Michael Palmer, ambos estimulados pelos
“botões tenros” de Gertrude Stein. A escrita enigmática está presente em outras
peças notáveis do volume, como Este nunca
se dar (“Nunca se dar em negros / só, entre lobo e cão, / branco como
parede / nem ao menos um ocre”) e Repetir-se
(“repetir-se / em putrefatas que nada / nem um ser oco e aparente (...) /
bocejo diante do ereto / um narciso escombro cego”), peças de forte
dissonância, ressaltada pela associação incomum dos termos. Em outra peça, de
concepção mais simples, intitulada O
tempo, Bonvicino escreve: “O tempo foi de encontro / ao galho da
quaresmeira / podre, no chão, / depois da chuva”, construção precisa e
objetiva, somada, nas estrofes seguintes, a diversas outras experiências
sensoriais, formando uma curiosa paisagem de “azuis em tons, / na fachada do
edifício”, “grafites coloridos nos muros” e “o vermelho / do automóvel na
esquina”.
O
retrato de cenas urbanas ou da natureza, com a lente focalizando pequenos
detalhes inesperados, está presente em numerosas composições do livro, como Paisagem (“Cupins em pontas, / farpadas
de arame / e céu”), Dezenas de
louva-a-deus (“Dezenas de louva-a-deus / saem do barro de cupim”), Árvore exala (“em frente um / louco de
cócoras / cata / no cruzamento de terra / pedras na rua”), entre outras peças
de boa fatura. O segundo tempo da poesia de Régis Bonvicino, influenciado pelo
minimalismo de Robert Creeley e pelas pesquisas da Language Poetry norte-americana, compreende os livros Ossos de borboleta (1996), Céu-eclipse (1999) e Remorso do cosmo (2003).
No
texto de apresentação ao primeiro livro desta trilogia, Marjorie Perloff
salienta a lição aprendida por Bonvicino com seus novos mestres espirituais,
sobretudo “a colocação de pequenas palavras – entre, como, alguém –”, considerados tão importantes quanto “os
seus parentes mais pretensiosos, os grandes substantivos que se arvoram a
designar verdades grandiosas sobre a experiência”. Com efeito, este recurso se
tornará lugar-comum na poesia de Bonvicino, e também na de poetas jovens que
iniciaram sua jornada criativa no final da década de 1990, como Manoel Ricardo
de Lima, Virna Teixeira, Fabiano Calixto, Tarso de Melo, André Dick. Todos eles
praticaram o poema conciso, elíptico, escrito em letras minúsculas e com espaço
duplo entre as linhas; todos eles abusaram de palavras como algum, alguma, ninguém, nenhum, isso, isto,
aquilo e dos verbos no infinitivo. Claro: reduzir toda a poesia de
Bonvicino e seus amigos a tais recursos seria injusto, mas não podemos deixar
de registrar o abuso desse maneirismo, responsável, muitas vezes, pela criação
de poemas ocos.
O
próprio autor de Ossos de borboleta
vai além da receita de bolo no poema Janeiro,
onde lemos: “Flor – vermelha / folhas – cabeças de lagarto / talos / avançam
sobre a varanda”, e no final da peça, “sol tenso, de trovões, / um pássaro bica
os pistilos / corolas fechadas / estio”, imagens cinematográficas, construídas
com recursos de montagem que nos fazem lembrar do princípio do ideograma e
também da luxúria visual do barroco. Outra peça que se destaca no volume é Ventilador, poema que dialoga com a obra
visual de Regina Silveira: “o ventilador de regina silveira não é formal /
parece personagem de uma novela de franz kafka / (...) / o ventilador de regina
silveira / não atenua as temperaturas / de quem o queira”. Esta peça é quase uma arte poética, em que Bonvicino
reconhece, na obra singular da artista plástica, pontos de contato com a sua
própria escrita, como a deformação da imagem, os jogos entre objeto e sombra e
a representação simbólica da angústia e da perplexidade.
O
estilo conciso e fragmentário de Ossos de
borboleta tem continuidade em Céu-eclipse,
que podemos considerar um plus com
sobras do livro anterior. Comentando a escrita poética de Bonvicino, Carlito
Azevedo afirma, acertadamente: “Sua operação poética mais constante consiste na
observação atenta de uma cena até conseguir captar (...) uma estrutura mínima,
que seja o núcleo do conjunto (...). Assim é que roupas, janelas, carros ou
portas ganham significados novos quando relacionados a coisas como tempo,
velocidade, cor e memória”. Um recurso usado com frequência nesta fase do autor
paulistano é a criação de animais ou vegetais insólitos, verdadeiros monstros
semânticos: “rosa canina”, “gaviões terrestres”, “corvos quadrúpedes”, não raro
associados a ações impossíveis, como o “peixe fora da água / redes- / atando /
estrelas”.
O
último livro da trilogia, Remorso do
cosmo, desenvolve e radicaliza todos esses procedimentos, com o acréscimo
de um número mais expressivo de poemas em prosa, de peças escritas em inglês e
da temática política mais explícita – nacional e internacional –, como acontece
em Sem título (4) (Fanti-axanti): “estigma decapitado, agora, ‘alcoólatra,
amigo das drogas’ (Fa Lun Gong, calado! e os da Coca-Cola, na Colômbia,
atraídos, assassinando)”. Diversas composições utilizam vocabulário e metáforas
militares (“Borboletas fogem para os abrigos”, “Tateava um morteiro / & seu
alcance”, “Dispara mísseis em sílfides”) – os poemas do livro foram escritos
entre 1999 e 2003, logo, coevos às agressões imperialistas dos EUA ao Iraque e
ao Afeganistão.
Após
dedicar-se, por quase três décadas, a um formalismo estrito, que não é
impermeável ao sentido político e social mas enfatiza a pesquisa vocabular e
estrutural, Bonvicino muda totalmente sua poética em seus dois títulos mais
recentes – Página órfã (2007) e Estado crítico (2013). A ruptura
sintática, a elipse e a fragmentação do discurso cedem vez a poemas narrativos,
lineares, coloquiais (“Fedendo a cigarro e a mim mesmo”), que já não causam
surpresas. São registros líricos de fatos nacionais ou internacionais, cenas do
cotidiano, paisagens, com maior ou menor carga de ironia e sarcasmo. Régis
Bonvicino – o Sósia da Cópia – após
ser concretista, leminquiano, languager,
torna-se, agora, drummondiano. Aguardemos suas próximas metamorfoses.
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