Júlio
Castañon Guimarães, poeta mineiro radicado no Rio de Janeiro, desenvolve uma
pesquisa poética direcionada ao aspecto plástico das coisas: seu delineamento,
espessura, sensação tátil, formato, volume, cores, jogos de luz e de sombra,
disposição espacial e sobretudo a distância física e sensível entre observador
e coisa observada. É uma poesia pensada com o rigor da geometria, manifestada
em sua estrutura fragmentária, concisa e elíptica, que pressupõe movimentos
estratégicos para a leitura, releitura e decodificação, como os lances em um
tabuleiro de xadrez. Ao mesmo tempo, está borrada de subjetividade, fazendo-nos
pensar em um cubismo lírico.
O poeta
descende de João Cabral de Melo Neto, Mallarmé, Valéry, da Poesia Concreta, mas
também da música epidérmica de um Carlos Drummond de Andrade, talvez a sua
maior referência literária – o melhor Drummond, aquele de Áporo e da Máquina do mundo,
que sabia explorar a dimensão visual e sonora das palavras para compor o
pensamento. Assim como a de seus ilustres predecessores, a poesia de Júlio
Castañon Guimarães é enigmática e convida o leitor disponível decifrar seus enigmas sensíveis, correndo todos
os riscos de fascinação e perplexidade.
Em seu
primeiro livro publicado, Vertentes
(1975), a influência do Modernismo de Manuel Bandeira, Murilo Mendes e CDA é
evidente, desde as epígrafes até o humor (“também a memória tem seus dias
contados”) e o percurso sentimental-visualista pelas cidades históricas de
Minas Gerais, com as inevitáveis citações do Aleijadinho e de Alphonsus de
Guimaraens (“onde de bispados em arcebispados”). Na obra seguinte, 17 peças (1983) joga os dados em outra
direção, empregando recursos de desarticulação sintática e espacialização de
palavras e linhas da Poesia Concreta. Os dois livros podem ser considerados,
hoje, cadernos de estudos, em que o poeta ensaia suas primeiras performances, a partir da assimilação
das formas do modernismo e da vanguarda concretista.
Inscrições
(1992) já é um trabalho diferente, em que Júlio Castañon
Guimarães fala com voz própria, apresentando temas e estilemas que serão
desenvolvidos ao longo de seu trabalho textual. A ênfase metalinguística do
título é reforçada pelas epígrafes de Gertrude Stein (“Poetry is doing nothing
but using losing refusing and pleasing and betraying and caressing nous”) e
Michel Butor (“toute architecture, toute organization d’um site, est déjà une
écriture”), e ainda por composições como Órgão
da matriz de Santo Antônio, onde lemos estas linhas: “inscrito no corpo /
um destino: (...) / inscrito na nave / um acorde: (...) / inscrito no silêncio
/ um eco: / vozes sem retórica / memória em silêncio”.
A
palavra inscrição, aqui, tem o seu
sentido ampliado para além da grafia verbal: ela ganha conotações metafóricas,
associadas ao corpo, à arquitetura (a nave da igreja), ao processo da
comunicação, que inclui a memória, o silêncio e o esquecimento. Nas peças
iniciais do livro, as inscrições do tempo, espaço e linguagem estão presentes
em diversos logradouros de Minas Gerais, como a Igreja de São Francisco de
Paula, o Chafariz de São José, a Casa do Padre Toledo, Rosário dos Pretos, o
Largo das Forras, a Rua da Câmara e a Serra de São José, invocados pelo poeta
em sua dimensão histórica, mas sem contar estórias: há um trânsito de ideias,
imagens, sonoridades e sensações que o poeta descreve nestas linhas: “nos
Quatro Cantos / uma cicatriz / escavado este silêncio / uma voz se deixa ler /
no côncavo de outra voz / estes espaços e seus riscos / seus ânimos e seus
pecados / reencenam a música / que lavra que acende / corações tomados pelo
século”.
A ideia
da inscrição como cicatriz é similar à metáfora neobarroca de Nestor Perlongher
e Osvaldo Lamborghini, mas, aqui, ela aparece sem a conotação erótica
sadomasoquista: a cicatriz é a inscrição na pele remetendo a uma dimensão
telúrica, histórica, biográfica, que não se revela em sua totalidade, mas por
sinais.
Esta
ideia de construir um antidiscurso por meio de pistas, vestígios, ruídos,
fiapos, inscrições (“interrogar / pedras? / investigar / frinchas?”, lemos em Pernoite), está presente em diversos
poemas do livro, como Composição (“um
rosto um gesto / um traço um som”), mas sobretudo num ciclo de poemas de linhas
extremamente curtas, todos eles com o mesmo título – Talhe – apresentados não em sequência, mas distribuídos ao longo do
volume. Na quarta composição deste conjunto, lemos: “a meia voz / gestos curtos
/ fôlego a tempo / no rosto um / dois vincos (...) / extirpa o vôo / cego da
expressão / afila farpas / na pele do dia / lateja por trás dos olhos”, poema
construído por uma série de pequenos gestos e sinais que compõem uma paisagem
psicológica, com o título indicando, novamente, a inscrição-cicatriz (talhe).
Em
outra peça do ciclo, novo corte (referencial, também sintático): “dentro a
gastura / a farpa o alerta / fora as arestas / o que a contrapelo / se mesmo o
avesso se dá / ainda é a vez do mesmo / a trama sempre se põe / sem sombras
sempre / antes textura onde / o texto sua trave / a voz rascante / ralenta ou
se nega / até o nada ou o não / e entre dentro e fora / um agreste”. Neste
poema, além dos signos indiciais que compõem o discurso – farpa, arestas, avesso, sombra, textura, até atingir o nada ou o não, um agreste – encontramos
uma organização sintática não-gramatical, e uma musicalidade deliberadamente
agressiva, dissonante, beirando o atonalismo (“se mesmo o avesso se dá / ainda
é a vez do mesmo”, “a voz rascante / ralenta ou se nega”), que serão elementos
decisivos em sua escrita poética.
Matéria e paisagem, publicado em 1998, mantém a visualidade dos livros
anteriores (“aos vidros aos aços às linhas”), por vezes incorporando recursos
da linguagem cinematográfica, como acontece no poema Horizonte (“um jardim / uma faixa de areia / e adiante / um lance
de mar / e ainda além / um trecho de terra / que antecipa / uma linha de
montanhas”), em que o crescendo de
imagens recorda as aproximações e distanciamentos da câmera. Se em Vetentes e Inscrições o poeta retratou as cidades históricas de Minas Gerais,
em Matéria e paisagem o cenário é o
Rio de Janeiro, presente em diversos poemas, entre eles Falso exercício de organização:
“diante desta janela / adiante / pelo trecho da baía / passam navios / pequenos
barcos / seu balanço e o mar / passam / aviões suas sombras / contra as pedras
/ das ilhas”, uma quase-narrativa em que a paisagem externa faz um cruzamento
com a paisagem interna: “desânimos feridas / por entre o que passa / por entre
o que muda / até o outro lado / talvez da baía”.
O jazz
está presente em dois poemas, Fragmento
de conversa para Bill Evans e Mero
léxico para o piano de Thelonius Monk, este último construído em treze
estrofes de duas linhas, em letras minúsculas, sem sinais de pontuação, com as
palavras agrupadas sem qualquer relação gramatical: “farpas farpas / farpas
metálicas / ângulos arestas / quinas esquinas / lâminas e cortes / aparas e
fios”, onde reencontramos a música dissonante de Júlio Castañon Guimarães e o
seu fascínio pelos indícios, mais que pelos objetos. A reflexão
metalinguística, tema sempre presente na poesia do autor mineiro, aparece em
quase todas as composições, e de modo mais enfático no poema Retrato, um estudo: “ponha-se / como
primeiro exercício / breve conjunto de estratégias: / a ordenação sem sobras /
de tais e tais peças / mas ainda severa instrução / da cor / e sem leniência /
sustentar a subtração / mesmo de sua luz”.
Se em Matéria e paisagem ainda vemos os
contornos dos objetos, identificamos barcos e janelas, ruas e montanhas, no
livro seguinte, Práticas de extravio
(2003), adentramos o terreno da abstração, mesmo que seja um abstracionismo
rigorosamente geométrico, como o de Maliévitch: “tão brutal a matéria / ao
excurso do olhar / que a impossibilidade / de qualquer imagem / pois o
adensamento / (cores e formas se desfazem) / que sobre o suporte / obstrui por
acúmulo”.
O poeta
direciona a sua atenção para “a matéria como projeto / de dimensão do olhar /
quando no espaço / não só uma ordenação / nem frágil descompasso / mas todo um
percurso / linhas volumes cálculo / talvez resumo de paisagem”. Palavras como adensamento, ordenação, cálculo remetem
ao pensamento poético de Edgar Allan Poe e Paul Valéry – o primeiro, com sua
definição de poesia como “construção precisa do impreciso” e a defesa do
cálculo prévio dos efeitos estéticos, tal como expôs no ensaio Filosofia da composição; o segundo
(discípulo do primeiro), pelo grau de abstração que atingiu em poemas como Esboço de uma serpente, A jovem parca e Herodíades. Ao contrário do autor
francês, porém, o poeta mineiro prefere a metonímia à metáfora, o substantivo
ao adjetivo, o atrito abrupto aos charmes e encantamentos da alquimia poética.
Castañon
escreve o poema áspero, duro, “tenaz das imagens / sons em entrechoque /
insinuações e recuos / às voltas com a rarefação”, em que o leitor quase perde
o fôlego “entre devolutas e infensas / ate o meio-dia / de um raciocínio e
corrosões”. O ponto máximo dessa poética áspera foi atingido em Ensaios, figuras (2005), coleção de
apenas quinze peças incluídas no volume Poemas
(1975-2005), reunião da obra completa de Castañon até aquela data[1].
Palavras associadas a outras por atrito, por ruído, em formas assimétricas,
desalinhadas, rascantes: “no limiar exato do inacabado”, onde “o silêncio
desenvolve / sua construção metódica” – um método ou antimétodo até a
desorientação, o desvio, o extravio: “precária operação que / se desencadeia um
tempo / também o indefine / nem mera improvisação / como rota de acidentes /
que desmantelam o intento / antes a própria sintaxe / se encaixes tão falhos /
não propriamente desordens / mas essa narrativa / de espaços e projetos / mas
umas tantas perdas / seu descaminho / entre as sombras”.
O
lirismo negativo de Castañon – negativo enquanto sombra, duplo, projeção – introduz
na poesia brasileira uma singular logopeia, em que as formas de articulação do
discurso são pensadas enquanto organismos que se expandem para além de seus próprios
contornos, em direção a outras estruturas irregulares, expansivas, dissonantes,
que nos fascinam por sua monstruosa beleza.
[1] Posteriormente, Júlio
Castañon Guimarães publicou o livro Do
que ainda (2009, com pinturas de Manfredo de Souzanetto e fotografias de
Jaime Acioli).
Excelente crítica. Não conhecia o poeta, vou procurar por cá Lisboa, espero encontrar....
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