sexta-feira, 7 de agosto de 2015

OS ENIGMAS SENSÍVEIS DE JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES


Júlio Castañon Guimarães, poeta mineiro radicado no Rio de Janeiro, desenvolve uma pesquisa poética direcionada ao aspecto plástico das coisas: seu delineamento, espessura, sensação tátil, formato, volume, cores, jogos de luz e de sombra, disposição espacial e sobretudo a distância física e sensível entre observador e coisa observada. É uma poesia pensada com o rigor da geometria, manifestada em sua estrutura fragmentária, concisa e elíptica, que pressupõe movimentos estratégicos para a leitura, releitura e decodificação, como os lances em um tabuleiro de xadrez. Ao mesmo tempo, está borrada de subjetividade, fazendo-nos pensar em um cubismo lírico.

O poeta descende de João Cabral de Melo Neto, Mallarmé, Valéry, da Poesia Concreta, mas também da música epidérmica de um Carlos Drummond de Andrade, talvez a sua maior referência literária – o melhor Drummond, aquele de Áporo e da Máquina do mundo, que sabia explorar a dimensão visual e sonora das palavras para compor o pensamento. Assim como a de seus ilustres predecessores, a poesia de Júlio Castañon Guimarães é enigmática e convida o leitor disponível decifrar seus enigmas sensíveis, correndo todos os riscos de fascinação e perplexidade.

Em seu primeiro livro publicado, Vertentes (1975), a influência do Modernismo de Manuel Bandeira, Murilo Mendes e CDA é evidente, desde as epígrafes até o humor (“também a memória tem seus dias contados”) e o percurso sentimental-visualista pelas cidades históricas de Minas Gerais, com as inevitáveis citações do Aleijadinho e de Alphonsus de Guimaraens (“onde de bispados em arcebispados”). Na obra seguinte, 17 peças (1983) joga os dados em outra direção, empregando recursos de desarticulação sintática e espacialização de palavras e linhas da Poesia Concreta. Os dois livros podem ser considerados, hoje, cadernos de estudos, em que o poeta ensaia suas primeiras performances, a partir da assimilação das formas do modernismo e da vanguarda concretista.

Inscrições (1992) já é um trabalho diferente, em que Júlio Castañon Guimarães fala com voz própria, apresentando temas e estilemas que serão desenvolvidos ao longo de seu trabalho textual. A ênfase metalinguística do título é reforçada pelas epígrafes de Gertrude Stein (“Poetry is doing nothing but using losing refusing and pleasing and betraying and caressing nous”) e Michel Butor (“toute architecture, toute organization d’um site, est déjà une écriture”), e ainda por composições como Órgão da matriz de Santo Antônio, onde lemos estas linhas: “inscrito no corpo / um destino: (...) / inscrito na nave / um acorde: (...) / inscrito no silêncio / um eco: / vozes sem retórica / memória em silêncio”.

A palavra inscrição, aqui, tem o seu sentido ampliado para além da grafia verbal: ela ganha conotações metafóricas, associadas ao corpo, à arquitetura (a nave da igreja), ao processo da comunicação, que inclui a memória, o silêncio e o esquecimento. Nas peças iniciais do livro, as inscrições do tempo, espaço e linguagem estão presentes em diversos logradouros de Minas Gerais, como a Igreja de São Francisco de Paula, o Chafariz de São José, a Casa do Padre Toledo, Rosário dos Pretos, o Largo das Forras, a Rua da Câmara e a Serra de São José, invocados pelo poeta em sua dimensão histórica, mas sem contar estórias: há um trânsito de ideias, imagens, sonoridades e sensações que o poeta descreve nestas linhas: “nos Quatro Cantos / uma cicatriz / escavado este silêncio / uma voz se deixa ler / no côncavo de outra voz / estes espaços e seus riscos / seus ânimos e seus pecados / reencenam a música / que lavra que acende / corações tomados pelo século”.

A ideia da inscrição como cicatriz é similar à metáfora neobarroca de Nestor Perlongher e Osvaldo Lamborghini, mas, aqui, ela aparece sem a conotação erótica sadomasoquista: a cicatriz é a inscrição na pele remetendo a uma dimensão telúrica, histórica, biográfica, que não se revela em sua totalidade, mas por sinais.

Esta ideia de construir um antidiscurso por meio de pistas, vestígios, ruídos, fiapos, inscrições (“interrogar / pedras? / investigar / frinchas?”, lemos em Pernoite), está presente em diversos poemas do livro, como Composição (“um rosto um gesto / um traço um som”), mas sobretudo num ciclo de poemas de linhas extremamente curtas, todos eles com o mesmo título – Talhe – apresentados não em sequência, mas distribuídos ao longo do volume. Na quarta composição deste conjunto, lemos: “a meia voz / gestos curtos / fôlego a tempo / no rosto um / dois vincos (...) / extirpa o vôo / cego da expressão / afila farpas / na pele do dia / lateja por trás dos olhos”, poema construído por uma série de pequenos gestos e sinais que compõem uma paisagem psicológica, com o título indicando, novamente, a inscrição-cicatriz (talhe).

Em outra peça do ciclo, novo corte (referencial, também sintático): “dentro a gastura / a farpa o alerta / fora as arestas / o que a contrapelo / se mesmo o avesso se dá / ainda é a vez do mesmo / a trama sempre se põe / sem sombras sempre / antes textura onde / o texto sua trave / a voz rascante / ralenta ou se nega / até o nada ou o não / e entre dentro e fora / um agreste”. Neste poema, além dos signos indiciais que compõem o discurso – farpa, arestas, avesso, sombra, textura, até atingir o nada ou o não, um agreste – encontramos uma organização sintática não-gramatical, e uma musicalidade deliberadamente agressiva, dissonante, beirando o atonalismo (“se mesmo o avesso se dá / ainda é a vez do mesmo”, “a voz rascante / ralenta ou se nega”), que serão elementos decisivos em sua escrita poética.

Matéria e paisagem, publicado em 1998, mantém a visualidade dos livros anteriores (“aos vidros aos aços às linhas”), por vezes incorporando recursos da linguagem cinematográfica, como acontece no poema Horizonte (“um jardim / uma faixa de areia / e adiante / um lance de mar / e ainda além / um trecho de terra / que antecipa / uma linha de montanhas”), em que o crescendo de imagens recorda as aproximações e distanciamentos da câmera. Se em Vetentes e Inscrições o poeta retratou as cidades históricas de Minas Gerais, em Matéria e paisagem o cenário é o Rio de Janeiro, presente em diversos poemas, entre eles Falso exercício de organização: “diante desta janela / adiante / pelo trecho da baía / passam navios / pequenos barcos / seu balanço e o mar / passam / aviões suas sombras / contra as pedras / das ilhas”, uma quase-narrativa em que a paisagem externa faz um cruzamento com a paisagem interna: “desânimos feridas / por entre o que passa / por entre o que muda / até o outro lado / talvez da baía”.

O jazz está presente em dois poemas, Fragmento de conversa para Bill Evans e Mero léxico para o piano de Thelonius Monk, este último construído em treze estrofes de duas linhas, em letras minúsculas, sem sinais de pontuação, com as palavras agrupadas sem qualquer relação gramatical: “farpas farpas / farpas metálicas / ângulos arestas / quinas esquinas / lâminas e cortes / aparas e fios”, onde reencontramos a música dissonante de Júlio Castañon Guimarães e o seu fascínio pelos indícios, mais que pelos objetos. A reflexão metalinguística, tema sempre presente na poesia do autor mineiro, aparece em quase todas as composições, e de modo mais enfático no poema Retrato, um estudo: “ponha-se / como primeiro exercício / breve conjunto de estratégias: / a ordenação sem sobras / de tais e tais peças / mas ainda severa instrução / da cor / e sem leniência / sustentar a subtração / mesmo de sua luz”.

Se em Matéria e paisagem ainda vemos os contornos dos objetos, identificamos barcos e janelas, ruas e montanhas, no livro seguinte, Práticas de extravio (2003), adentramos o terreno da abstração, mesmo que seja um abstracionismo rigorosamente geométrico, como o de Maliévitch: “tão brutal a matéria / ao excurso do olhar / que a impossibilidade / de qualquer imagem / pois o adensamento / (cores e formas se desfazem) / que sobre o suporte / obstrui por acúmulo”.

O poeta direciona a sua atenção para “a matéria como projeto / de dimensão do olhar / quando no espaço / não só uma ordenação / nem frágil descompasso / mas todo um percurso / linhas volumes cálculo / talvez resumo de paisagem”. Palavras como adensamento, ordenação, cálculo remetem ao pensamento poético de Edgar Allan Poe e Paul Valéry – o primeiro, com sua definição de poesia como “construção precisa do impreciso” e a defesa do cálculo prévio dos efeitos estéticos, tal como expôs no ensaio Filosofia da composição; o segundo (discípulo do primeiro), pelo grau de abstração que atingiu em poemas como Esboço de uma serpente, A jovem parca e Herodíades. Ao contrário do autor francês, porém, o poeta mineiro prefere a metonímia à metáfora, o substantivo ao adjetivo, o atrito abrupto aos charmes e encantamentos da alquimia poética.

Castañon escreve o poema áspero, duro, “tenaz das imagens / sons em entrechoque / insinuações e recuos / às voltas com a rarefação”, em que o leitor quase perde o fôlego “entre devolutas e infensas / ate o meio-dia / de um raciocínio e corrosões”. O ponto máximo dessa poética áspera foi atingido em Ensaios, figuras (2005), coleção de apenas quinze peças incluídas no volume Poemas (1975-2005), reunião da obra completa de Castañon até aquela data[1]. Palavras associadas a outras por atrito, por ruído, em formas assimétricas, desalinhadas, rascantes: “no limiar exato do inacabado”, onde “o silêncio desenvolve / sua construção metódica” – um método ou antimétodo até a desorientação, o desvio, o extravio: “precária operação que / se desencadeia um tempo / também o indefine / nem mera improvisação / como rota de acidentes / que desmantelam o intento / antes a própria sintaxe / se encaixes tão falhos / não propriamente desordens / mas essa narrativa / de espaços e projetos / mas umas tantas perdas / seu descaminho / entre as sombras”.

O lirismo negativo de Castañon – negativo enquanto sombra, duplo, projeção – introduz na poesia brasileira uma singular logopeia, em que as formas de articulação do discurso são pensadas enquanto organismos que se expandem para além de seus próprios contornos, em direção a outras estruturas irregulares, expansivas, dissonantes, que nos fascinam por sua monstruosa beleza.




[1] Posteriormente, Júlio Castañon Guimarães publicou o livro Do que ainda (2009, com pinturas de Manfredo de Souzanetto e fotografias de Jaime Acioli).

Um comentário:

  1. Excelente crítica. Não conhecia o poeta, vou procurar por cá Lisboa, espero encontrar....

    ResponderExcluir