Nelson Ascher ocupa um lugar excêntrico na poesia brasileira contemporânea. Em seus quatro livros publicados – Ponta da língua (1983), Sonho da razão (1993), Algo de sol (1996) e Parte alguma (2005), o autor concilia a métrica, o ritmo e as rimas da poesia clássica, em peças que se destacam também pelo notável perfeccionismo sintático, com a influência da Poesia Concreta – não exatamente na investigação da visualidade, mas na ênfase dada à materialidade da escrita poética. A este insólito matrimônio do céu com o inferno soma-se o influxo de suas leituras de poetas modernos húngaros, romenos, russos e poloneses, especialmente Paul Celan, Czeslaw Milosz, Zbigniew Herbert, Joseph Brodsky, entre outros (alguns dos quais traduzidos e publicados pelo autor nos livros Canção antes da ceifa, 1990, e Poesia alheia, 1998).
Sua dicção, por isso mesmo, é altamente pessoal e se diferencia de outros
poetas de sua geração, menos afeitos às normas rígidas da versificação
tradicional (praticadas também, mas com acentuado caráter conservador, formal e
ideológico, por autores como Alexei Bueno e Bruno Tolentino). Em seu livro de
estreia, Ponta da língua, que reúne
poemas escritos entre 1978 e 1983, encontramos
peças de acentuado caráter metalinguístico, desde a composição intitulada definição de poesia (“Poesia, ponte em
cima / de abismos não abertos / ainda ou flor que anima / a pedra no deserto”),
até as composições que tem por títulos nomes de poetas como T. S. Eliot, Mário
de Sá-Carneiro, Velimir Khlébnikov e João Cabral de Melo Neto. São poemas
metrificados, rimados, que exibem, orgulhosos, figuras de linguagem como
trocadilhos (“Quede tão mudo / quanto amiúde”), paronomásias (“modelos de
medula”), aliterações e assonâncias (“a esfinge / feroz nem finge / que me
devora”), trava-línguas (“um símio / banal se abana / inverossímil / entre
bananas”) e paradoxos (“quem era, enfim, senão quimera / de si, perdido em cada
veia / de sua própria carne alheia?”).
Referências à medicina, à zoologia e à
filosofia são constantes, sobretudo, na poesia humorística de Nelson Ascher, em
que se destaca, nesta sua primeira coletânea poética, a peça intitulada trompas: “Se tua língua / linda de longa
/ lábia se aninha / em cada lábio / lábil da minha / trompa de Eustáquio / e
langue-lenga, / a minha língua / logo se vinga, / lambe o batom / sabor de ópio
/ das tuas trom- / pas de Falópio / e nelas míngua”. O uso das rimas, na poesia de Nelson Ascher,
não é simples recurso musical, mas parte integrante da construção do sentido, o
que fica mais evidente em sua poesia irônica ou satírica, pelo alto poder de
impacto, que garante o efeito estético desejado em cada composição. Em seu
segundo livro de poesia, O sonho da razão,
publicado em 1993 (cujo título remete a uma frase de Goya: “El sueño de la
razón produce monstruos”), o poeta paulistano mantém os jogos de palavras
(“fúnebre – funébrio”, “líquidos iníquos”, “colóquio de ventríloquos”) e outros
jogos semânticos de sua primeira lírica, mas já avança no sentido da logopeia,
que será a marca característica de sua poesia, em peças mais sóbrias, quase
elegíacas, como o poema Onde há fumaça,
com epígrafe do poeta romeno Paul Celan, que tematiza o horror da Shoah. Dividida em seis quartetos, com
métrica de seis sílabas, o poema conta o extermínio a partir de seus indícios
quase imateriais, como a memória, a fumaça, as cinzas: “Fumaça alguma implica /
memória, já que coisas / se perdem na fumaça / que, assim, tampouco pode /
tornar-se monumento / (...) Fumaça enquanto tinta, / embora branca (um branco /
mais palidez de horror / que alvura de inocência)”.
Em outra peça, intitulada No centenário de Mallarmé, Nelson Ascher
apresenta um soneto em medida menor – no caso, versos hexassilábicos –,
construído como se fosse uma única sentença sintática dividida em catorze
linhas (o que nos faz lembrar dos poemas de um só verso do cubano José Kozer,
em que a linha única se desdobra em imensos conjuntos textuais). Nesta
composição dialógica, o poeta insere, à maneira de “pontos luminosos” ou signos
indiciais, palavras extraídas do vocabulário do poeta francês, como jogo, linguagem, indecifrável, estrelas,
inscrição, numa trama verbal que intenta recriar os labirintos de múltiplos
sentidos da escrita mallarmaica.
Sob o signo de Mallarmé e suas “subdivisões
prismáticas da Ideia”, Nelson Ascher investe na ruptura com a linearidade
discursiva pela fratura semântica, pelo uso frequente de parêntesis e
travessões e pela tmese, tropo
conhecido desde os tempos de Ausônio (310-395 d.C.) que consiste na divisão de
uma palavra para se intercalar outra, modificando e ampliando as camadas de
significação, como acontece, por exemplo, no poema Voz: “Ninguém jamais / regeu tão extra- / (pois sem rivais) /
vagante orquestra / como a que destra- / vando os umbrais / com chave-mestra
/ cordas vocais – / propõe que, além da
/ canção, com elas, / a mente aprenda / (mais do que vê-las / sem qualquer
venda) / a ouvir estrelas”. O poema, lúdico e irônico, incorpora em sua última
linha uma citação de conhecido poema do autor parnasiano Olavo Bilac – "Ora (direis) ouvir estrelas!
Certo Perdeste o senso!" –, que atribui uma qualidade humana (a
audição) a seres inanimados (as estrelas), figura de linguagem conhecida como
prosopopeia.
A profusão de tais recursos na poesia de Nelson Ascher – que já
definiu a si mesmo, em carta endereçada a Antonio Candido, como uma “combinação
sui generis de parnasianismo e concretismo”
– pode causar, por vezes, a impressão de mero artifício, distanciado de
qualquer preocupação de ordem filosófica, social e política: enfim, em certa
futilidade poética, que não dialoga com o momento histórico e as tensões
sociais. É uma crítica pertinente, que não nos impede, porém, de admirar a
perfeição de peças como Bashô em Paris, talvez
o melhor poema do livro: “Manhã de gala: / flores, imóveis / damas desnudas, /
desfilam cores. / Midi le juste: /
suicida, o sol, / no mar de suor, / se põe a pino. / Tarde-alfarrábio: / como
as impressas, / amarelecem. / Que noite albina! / A torre, embora / de ferro,
quase / treme de frio”. Com notável precisão geométrica, Nelson Ascher cria uma
arquitetura de quatro estrofes com quatro versos cada, em métrica de quatro
sílabas, para descrever uma impossível viagem do poeta-samurai japonês à cidade
de Baudelaire e Mallarmé, onde ele vislumbra imagens rápidas, fragmentárias,
cubistas (“flores, imóveis / damas desnudas, / desfilam cores”), que culminam
na paisagem de um oxímoro (“Que noite albina!”) e uma prosopopeia (“A torre,
embora / de ferro, quase / treme de frio”). É uma poesia pensada, construída a frio, na temerária fronteira entre a razão e
o sonho, que o próprio autor irá superar na virada logopaica de seus livros
posteriores.
Algo de sol, publicado
em 1996, mantém a ossatura métrica, o gosto pelo artifício, a constante
intertextualidade, mas amplia o leque temático do autor, incorporando ou
aprofundando temas como a reflexão existencial (“Se – máquinas precisas / que
somos de morrer –”), o erotismo (“Segundo a pincelada / que, súbito, um
calígrafo / traçasse da cerviz / ao cóccix”), a paixão pelos felinos (“Nobreza
não lhe falta / no jeito aristocrata, / sua linhagem alta / se chama vira-lata”), o futebol (“articulando
músculos / pensantes com tendões / inteligentes”), mas sobretudo a evocação da
Hungria, terra natal de seus antepassados. No poema Gyorgy Somlyó aos 75, presta homenagem a um dos mais conhecidos
poetas húngaros, falecido em 2006, autor de Fábulas
contra a fábula, em versos dialógicos como estes: “(...) uma noctâmbula / e
intransigente fábula / que sempre recomeça / ou, antes, que não pára / jamais –
qual Sharazade / também fizera outrora / mil e uma vezes – para / que a estória
nos resguarde / da lâmina da História”, onde podemos ler nas entrelinhas a
sutil relação estabelecida pelo autor entre a narração de contos tradicionais pela
protagonista das Mil e uma noites e os acontecimentos trágicos da primeira metade
do século XX.
O tema será
desenvolvido nas últimas composições do livro, Fábula (no tricentenário da
morte de La Fontaine )
e A estátua de Wallenberg. Nos
dois poemas, o contexto histórico é o mesmo – I e II Guerras Mundiais,
antissemitismo, libertação dos países do Leste Europeu pelo Exército Vermelho e
criação das repúblicas populares – examinado sob um prisma nacionalista
húngaro conservador, hostil tanto à Alemanha quanto à União Soviética. O primeiro poema, Fábula, é construído como uma sequência
de diálogos entre um cordeiro chamado Baranówicz e o lobo Wolfgang, que ostenta
a patente de coronel. As frases ou farpas trocadas entre eles retomam, pela via
paródica, o discurso antissemita da época (“não lhe darei indulto / porque
vocês mataram Jesus Cristo”, “não insista, / capitalista-ovino-bolchevista”),
retrucado de maneira irônica pelo cordeiro (“—Foi a loba romana que fez isto /
e mesmo que um cordeiro fosse o algoz / de quem, como Agnus Dei, era um de nós, / seria assunto nosso”). O tom geral do
poema é o da farsa dramática, com elementos da fábula, do conto de fadas, da
sátira política.
Diferente é o tom de A
estátua de Wallenberg, composição
alegórica onde revezam momentos de lirismo, ironia e gravidade. Com perícia
impecável, o poeta retrata as constantes mudanças políticas na Hungria,
sobretudo no período entre a I Guerra Mundial e o final da Guerra Fria, pela
alegoria das trocas de estátuas nas praças públicas de Budapeste: “Na Hungria
as ruas mudam / de nome com frequência: / primeiro, imperadores; / herois,
então, de alguma / causa; depois, herois / da causa oposta; bardos / e
novamente os mesmos / imperadores. Entre / uma floresta negra / e um mar idem,
sob uma / ponte suspensa...”, finalizando, com aguda ironia, que “... até /
mesmo as estátuas podem /sofrer vicissitudes / demasiado humanas”. Nestes dois
poemas, que dialogam com a vida e a história, o artífice Nelson Ascher logrou a
unidade entre texto e contexto no artefato estético, elevando sua poesia à
dimensão da logopeia.
Parte alguma,
seu livro mais recente, publicado em 2005, apresenta peças menos ambiciosas –
poemas bem-humorados, peças de circunstância, paródias de gêneros poéticos
tradicionais como a cantiga medieval (“Quem ta a fim duma gata bacana, / venha
comigo a Copacabana / e vamos pegar umas ondas”), o limerick (“Havia um surfista em Recife / que usava só pranchas de
grife. / Tubarões, todavia, / devoraram-no um dia / pensando tratar-se de um
bife”), o epigrama (“Fazer um epigrama não demora : / compõe-se um Mahabharata e se joga, / salvo as
últimas linhas, tudo fora”) e o epitáfio (“Aqui jaz Nelson Ascher consumido /
pelo amor-próprio não correspondido”). Nestas e em outras peças do volume, o
autor adota a linguagem coloquial, a gíria, o palavrão, ditados populares
alterados (“todos os trilhos / vão dar no matadouro”), obtendo, diversas vezes,
bons resultados, mas sem obter a mesma densidade estética e referencial do
livro anterior.
O poema mais ambicioso formalmente de Parte alguma talvez seja Pomos
de ouro, composição dividida em dez partes breves que relatam, de maneira
fragmentária e evasiva, uma viagem a Itália, em versos livres e contínuos, sem
cortes gramaticais ou elípticos; em cada seção, as linhas desdobram-se como se
fossem uma única interminável sentença, com pausas para a respiração no espaço
em branco da página. É preciso destacar também a série de sonetos satíricos que
encerram o volume, em que o poeta se vinga da crítica, da amada, de sua cidade
natal e da própria obra, no soneto de título paródico Algo de escuro.
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