domingo, 9 de agosto de 2015

A PROFANAÇÃO DO SILÊNCIO


Lígia Dabul, poeta e antropóloga nascida no Rio de Janeiro, realiza um delicado e preciso artesanato poético, em estruturas concisas que exploram a musicalidade das palavras e estabelecem relações inesperadas entre imagens, ideias e sensações. O seu método de compor recorda os procedimentos dos poetas objetivistas norte-americanos, como William Carlos Williams, que extraíam a estranheza de breves descrições de paisagens ou objetos do cotidiano, reconfigurados em situações insólitas. O lirismo concentrado, substantivo, da poeta carioca permite também uma aproximação com autores brasileiros de voz minimalista, inenfática, como Orides Fontela, que assina a epígrafe do livro de estreia da autora, intitulado Som (2005): “Saber de cor o silêncio / e profaná-lo, dissolvê-lo / em palavras”.

Todas estas referências, é claro, apenas situam Lígia Dabul dentro de uma tradição e repertório da poesia contemporânea, com os quais ela dialoga para construir uma voz própria, com dicção e referências particulares, em que estão presentes a ironia, o humor e o paradoxo, como nas composições em que ela transforma provérbios ou ditados populares —“O cão não é / o melhor amigo da mulher”, “Uma mão lava / a louça” —, e também nas peças de reflexão metalinguística: “Esse texto começa justo onde acaba. / Eu queria ter escrito uma coisa não dita. / Mas perdi-me novamente num detalhe. Falei / do texto como se fosse”.

A poesia sobre a poesia comparece em vários textos do volume, mas não elide a temática referencial nem a violenta carga emocional, como nesta composição de apenas duas linhas, intitulada Aborto: “dura impossibilidade / ao invés de me suicidar nos outros”. O eu lírico está presente, mas prescinde do discurso em cascata e apresenta o tema de modo mais sugerido que fotográfico, não raro ocultando o próprio interlocutor, como nesta outra peça: “tem um quê de nada / a ver se há / se houver / haverá / e” (Amor). A estratégia do livro, que nasce da oposição entre som e silêncio, se amplia em outros jogos antitéticos entre paisagem e abstração, carne e pensamento, história e fuga da história.

O elemento lúdico é recorrente nessa poesia, que solicita a participação inteligente do leitor para a construção de significados, à maneira da obra aberta. A “abertura” do trabalho artístico é facilitado pelo grau de imprecisão, que convida o espectador a decifrar sinais e preencher lacunas pelo exercício da imaginação, de modo que cada leitura é uma interpretação ou reinvenção do texto original. No livro Som, de Lígia Dabul, a imprecisão se torna mais eloquente no poema Pouco mais, de sete linhas, em espaço duplo, dispostas em figuração geométrica: “Pouco / bem pouco ou nada / nem dor que em sílaba resume a palavra / que estendo ao máximo para não parecer poema / talvez à máxima extensão do poema / e se possível / mais”, que faz um entrecruzamento do lírico com o poético, do subjetivo com o objetivo, recordando o estilo enigmático e irônico dos poemas curtos do autor catalão Joan Brossa.

Em seu segundo livro publicado, Nave (2010), a autora amplia sua voz em textos próximos à prosa, na extensão, cadência musical e sintaxe, mantendo a singularidade do discurso que não se entrega facilmente à compreensão do leitor, mas altera as regras do jogo, para propor novos enigmas verbais. Assim, por exemplo, no poema intitulado Musth: “Tudo esquematizado. / Abandonar a música. Ficar só com os músculos. / Abastecer com urros a manada / de meninos tomados pelo rumo”, que funciona como uma arte poética, retratando os conflitos sutis entre imaginação e matemática, pele e escritura, memória e mundo, que ocorrem no processo criativo. As referências urbanas do Rio de Janeiro são mais presentes aqui do que no livro anterior – orla marítima, pescadores, ultraleves, Leblon, Ipanema, Nova Iguaçu –, mas é uma cidade inventada, escrita, não descrita, que se faz poesia: “Pelo mar / deslocam-se as surpresas”.

A luxúria metafórica reveza, nesta coletânea, com a arquitetura minimalista, em peças de excelente fatura como Profissão: “O que posso / do máximo: // asa de borboleta e / alfinete / no feltro verde de uma música. // Isso tudo depois da manhã, mais para o final da tarde”, que recorda o haicai japonês pela concisão, despojamento e visualidade. A emoção lírica, na poesia de Lígia Dabul, comparece nas mais inusitadas metáforas, que aliam agudeza, engenho e fina sensibilidade, em linhas como estas: “nervosa feito uma ambulância”, “ninguém morre de câncer nos cabelos”, “viver, esse lapso de elefante”. Poesia densa, elaborada, com rigor geométrico e os nervos à flor da pele.

(Artigo publicado na edição de agosto /2015 da revista CULT.)

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