Lígia Dabul, poeta e antropóloga
nascida no Rio de Janeiro, realiza um delicado e preciso artesanato poético, em
estruturas concisas que exploram a musicalidade das palavras e estabelecem
relações inesperadas entre imagens, ideias e sensações. O seu método de compor
recorda os procedimentos dos poetas objetivistas norte-americanos, como William
Carlos Williams, que extraíam a estranheza de breves descrições de paisagens ou
objetos do cotidiano, reconfigurados em situações insólitas. O lirismo
concentrado, substantivo, da poeta carioca permite também uma aproximação com
autores brasileiros de voz minimalista, inenfática, como Orides Fontela, que
assina a epígrafe do livro de estreia da autora, intitulado Som (2005): “Saber de cor o silêncio / e
profaná-lo, dissolvê-lo / em palavras”.
Todas estas referências, é claro,
apenas situam Lígia Dabul dentro de uma tradição e repertório da poesia
contemporânea, com os quais ela dialoga para construir uma voz própria, com
dicção e referências particulares, em que estão presentes a ironia, o humor e o
paradoxo, como nas composições em que ela transforma provérbios ou ditados
populares —“O cão não é / o melhor amigo da mulher”, “Uma mão lava / a louça”
—, e também nas peças de reflexão metalinguística: “Esse texto começa justo
onde acaba. / Eu queria ter escrito uma coisa não dita. / Mas perdi-me
novamente num detalhe. Falei / do texto como se fosse”.
A poesia sobre a poesia comparece
em vários textos do volume, mas não elide a temática referencial nem a violenta
carga emocional, como nesta composição de apenas duas linhas, intitulada Aborto: “dura impossibilidade / ao invés
de me suicidar nos outros”. O eu lírico está presente, mas prescinde do
discurso em cascata e apresenta o tema de modo mais sugerido que fotográfico,
não raro ocultando o próprio interlocutor, como nesta outra peça: “tem um quê
de nada / a ver se há / se houver / haverá / e” (Amor). A estratégia do livro, que nasce da oposição entre som e
silêncio, se amplia em outros jogos antitéticos entre paisagem e abstração,
carne e pensamento, história e fuga da história.
O elemento lúdico é recorrente
nessa poesia, que solicita a participação inteligente do leitor para a
construção de significados, à maneira da obra aberta. A “abertura” do trabalho
artístico é facilitado pelo grau de imprecisão, que convida o espectador a
decifrar sinais e preencher lacunas pelo exercício da imaginação, de modo que
cada leitura é uma interpretação ou reinvenção do texto original. No livro Som, de Lígia Dabul, a imprecisão se
torna mais eloquente no poema Pouco mais, de sete linhas, em espaço duplo,
dispostas em figuração geométrica: “Pouco / bem pouco ou nada / nem dor que em
sílaba resume a palavra / que estendo ao máximo para não parecer poema / talvez
à máxima extensão do poema / e se possível / mais”, que faz um entrecruzamento
do lírico com o poético, do subjetivo com o objetivo, recordando o estilo
enigmático e irônico dos poemas curtos do autor catalão Joan Brossa.
Em seu segundo livro publicado, Nave (2010), a autora amplia sua voz em
textos próximos à prosa, na extensão, cadência musical e sintaxe, mantendo a
singularidade do discurso que não se entrega facilmente à compreensão do
leitor, mas altera as regras do jogo, para propor novos enigmas verbais. Assim,
por exemplo, no poema intitulado Musth:
“Tudo esquematizado. / Abandonar a música. Ficar só com os músculos. /
Abastecer com urros a manada / de meninos tomados pelo rumo”, que funciona como
uma arte poética, retratando os
conflitos sutis entre imaginação e matemática, pele e escritura, memória e
mundo, que ocorrem no processo criativo. As referências urbanas do Rio de
Janeiro são mais presentes aqui do que no livro anterior – orla marítima,
pescadores, ultraleves, Leblon, Ipanema, Nova Iguaçu –, mas é uma cidade
inventada, escrita, não descrita, que
se faz poesia: “Pelo mar / deslocam-se as surpresas”.
A luxúria metafórica reveza,
nesta coletânea, com a arquitetura minimalista, em peças de excelente fatura
como Profissão: “O que posso / do
máximo: // asa de borboleta e / alfinete / no feltro verde de uma música. //
Isso tudo depois da manhã, mais para o final da tarde”, que recorda o haicai
japonês pela concisão, despojamento e visualidade. A emoção lírica, na poesia
de Lígia Dabul, comparece nas mais inusitadas metáforas, que aliam agudeza,
engenho e fina sensibilidade, em linhas como estas: “nervosa feito uma
ambulância”, “ninguém morre de câncer nos cabelos”, “viver, esse lapso de
elefante”. Poesia densa, elaborada, com rigor geométrico e os nervos à flor da
pele.
(Artigo publicado na edição de agosto /2015 da revista CULT.)
Ótimo o artigo! Trata-se realmente de uma grande poeta.
ResponderExcluir