sexta-feira, 14 de agosto de 2015

POEMAS DE NELSON ASCHER



BASHÔ EM PARIS

p/ Rose

Manhã de gala:
flores, imóveis
damas desnudas,
desfilam cores.

Midi le juste;
suicida, o sol,
no mar de suor,
se põe a pino.

Tarde-alfarrábio:
folhas em verde,
como as impressas,
amarelecem.

Que noite albina!
A torre, embora
de ferro, quase
treme de frio.


VOZ

Ninguém jamais
regeu tão extra-
(pois sem rivais)
vagante orquestra

como a que destra-
vando os umbrais
com chave-mestra
 cordas vocais –

propõe que, além da
canção, com elas,
a mente aprenda

(mais do que vê-las
sem qualquer venda)
a ouvir estrelas.


MÁRIO DE SÁ CARNEIRO

Caído em si numa ironia
do contragosto feito pele,
mas acossado pela mera
constatação do que existia
quase de todo fora dele,
quem era, enfim, senão quimera
de si, perdido em cada veia
de sua própria carne alheia?


ONDE HÁ FUMAÇA

Dan steigt ihr als Rauch in die Luft

(Paul Celan)


Fumaça alguma implica
memória, já que as coisas
se perdem na fumaça
que, assim, tampouco pode

tornar-se um monumento,
pois sendo transitória
nem mesmo homenageia
a transitoriedade.

Fumaça enquanto tinta,
embora branca (um branco
mais palidez de horror
que alvura de inocência),

serve talvez à escrita;
porém, não há destreza
que inscreva na fumaça,
como na pedra, um nome.

Quando a fumaça, quase
vegetativa, irrompe e,
traindo o genealógico,
assume aspecto arbóreo,

não cabe perguntar
acerca (onde há fumaça,
há cinzas) das raízes
mais fundas da fumaça.


(Poemas do livro O sonho da razão. São Paulo: ed. 34, 1993)

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