Augusto de Campos – o mais jovem
dos poetas brasileiros, pela curiosidade em conhecer o que há de novo na
poesia, na vida, no mundo – conversa com a CULT a respeito de seu mais recente
livro de poemas, Outro, publicado
pela editora Perspectiva, que em 2015 comemora 50 anos de existência. Como não
poderia deixar de ser, um dos temas centrais da conversa é a relação entre a
poesia e a tecnologia – há quase vinte anos, o autor pesquisa as possibilidades
de criação poética com os novos recursos eletrônicos, que permitem realizar plenamente
o sonho da Poesia Concreta de unir palavra, imagem, som e movimento. Ganhador
do Prêmio Pablo Neruda, concedido pelo Conselho
Nacional de Cultura e Artes do Chile, e reconhecido no cenário internacional,
sendo estudado em universidades europeias e norte-americanas, Augusto de Campos
ainda é pouco compreendido por uma parcela de nossa crítica literária, incapaz
de assimilar a radicalidade da informação estética nova, que desafia modelos
teóricos mumificados ou em adiantado estado de decomposição. Sensível aos
acontecimentos políticos do país, o poeta, mais uma vez, “desafina o coro dos
contentes”, repudiando o discurso de ódio e o clima de golpe instaurado no país
pela grande imprensa. “Sem média, sem mídia, sem medo” é a palavra-de-ordem do
poeta, na contramão dos que preferem a crise e o caos.
Você publicou, recentemente, uma nova coletânea de poemas, Outro, que reúne composições
visuais elaboradas com recursos das mídias eletrônicas. Como foi o processo de
criação do livro? Você planeja previamente os temas e recursos estéticos que
serão utilizados? Ou o livro é resultado do trabalho de criação de cada poema?
O livro foi planejado a partir do
que produzi ao longo de doze anos, desde a última reunião de poemas inéditos. Com
Despoesia (1994) e Não (2003), forma uma trilogia. Todos foram inteiramente produzidos em meu
computador e assinalam o meu ingresso, sem volta, no mundo da linguagem
digital.
O título do livro faz referência a um termo musical
recorrente nos textos que acompanham discos norte-americanos, com o sentido de
“bônus”, ou “extra”. Qual é o paralelo que você faz entre esse termo, pleno de
significados, e o seu trabalho poético?
Eu desconhecia a expressão
“outro”, em inglês.
Depois , me dei conta que era o contrário de “intro”
(introdução) e achei interessante. Há uma certa autoironia no emprego que faço
dela. De fato, o livro é um “bônus”, um extra, ou “pós”, provavelmente o meu
último livro de poemas. Ao mesmo tempo, sempre impliquei com o palavrão
“outrossim” e o “outro” inglês me lembrou o “outronão” que criei há tempos e que
dá título ao prefácio. Tem também a ver com a discussão literária em torno da
apropriação poética, que se vem acentuando nos Estados Unidos sob a designação
de poesia “conceitual”, ou “unoriginal language”. Entre nós, há precedentes nos
textos de Oswald, em Pau Brasil , onde ele apresenta,
como poemas, trechos da carta de Pero Vaz Caminha e dos nossos primeiros
cronistas. Venho praticando esse tipo de leitura crítico-poética, pelo menos desde
os anos dos anos 70, com os “profilogramas” e as “intraduções”, agora
acrescidos das “outraduções”, em que apenas reorganizo graficamente certos
textos alheios.
Walter Benjamin, em texto publicado em 1926, imaginava que,
no futuro, a escrita e o próprio objeto livro seriam radicalmente
transformados. Estamos próximos da realização dessa profecia, pelo diálogo da
poesia com as artes visuais e a tecnologia?
Sem dúvida. Não direi que é a
“mão única”, porque a poesia tem muitos caminhos e não pode nem deve
congelar-se num só. O único caminho que a poesia rejeita é o do meio. Mas,
Benjamin, inspirado no poema Un Coup de
Dés de Mallarmé, anteviu a crescente incidência da linguagem icônica sobre a
verbal. No universo digital, as imagens se interpenetram cada vez mais com as
palavras. O textograma se instagrama. E em
vez de se deixar atropelar pelas imagens, é mais interessante trazê-las para o
mundo da poesia, que, segundo Pound, está mais próxima da pintura e da música
do que da prosa. A tecnologia nos fornece as ferramentas para essa inflexão
icônica no discurso. É pegar ou largar. A poesia já não poder ser a mesma.
Você cita, com frequência, uma obra de Timothy Leary, Chaos
and cyberculture, publicado em 1994. Em sua opinião, quais ideias apresentadas
pelo autor norte-americano são pertinentes para a discussão da poesia e da
cultura hoje?
As idéias visionárias de
Buckminster Fuller, McLuhan, John Cage, assim como as do último Leary, sempre
foram desprezadas pelo cânone acadêmico, porque não vieram envelopadas no protocolo
universitário, seus “apuds” e notúnculas. Mas eles têm um traço em comum. Vivenciaram
a tecnologia antes dos outros. Aqui, Oswald foi o nosso profeta com o seu
“bárbaro tecnizado”. Pós-wald, a poesia concreta. Nos últimos anos, Timothy
trocou o LSD pelo PC, i. é, o computador. Propôs uma difração semântica no
conceito da cibernética, palavra derivada do grego “kubernetes”, piloto, de que
se originou o verbo “gubernare” em latim. Desligando-a da ideia de
governo, associou-a à de navegante. Percebeu a questão da ingovernabilidade do
ciberespaço, que ainda prevalece, apesar das macrotentativas “bigbrotherianas”
de controle, e deu toques relevantes sobre a revolução digital da linguagem artística.
“Haicais eletrônicos.” “Trailers melhores do que filmes.”
Seu livro de estreia, O
rei menos o reino, publicado em 1951, com
recursos próprios, pela fictícia “Edições Maldoror”, traz ainda uma epígrafe de
Lautréamont. Este é um aspecto pouco abordado em sua poesia: como foi o teu
contato com a obra desse autor francês, considerado o precursor do Surrealismo,
movimento antípoda da Poesia Concreta?
Não estou certo de que o
Surrealismo seja inteiramente oposto à Poesia Concreta. A Seção de Estudos Regionais
do Departamento Administrativo do Partido Surrealista Brasileiro é que declarou guerra aos
“concretistas”… Não faz sentido pregar o surrealismo, quando virou substantivo
comum, vivenciado cotidianamente. Os mais perduráveis são os “dessurrealistas”, isto é, os dissidentes, de
Artaud a Ghérasim Luca. O problema dos ortodoxos é que eles não enfrentaram o
problema estrutural do discurso poético. O Surrealismo deu a sua contribuição.
Aumentou o espectro das associações da imagem, mas se ateve às convenções
retóricas lógico-discursivas, optou pelas metáforas de significados e não de
significantes, e se afastou das matrizes dadaístas inflando-se de “conteúdos” psicologizantes.
Foi superado pelos vocabulemas radicais de Joyce, Gertrude Stein e Cummings e
pelas estruturas ideogrâmicas de Pound. A
ruptura dadá foi mais consequente e alimentou tanto a antiarte de Duchamp quanto
o acaso indeterminado de John Cage, que repaginaram a história da vanguardas, na
segunda metade do século passado, como polo dialético das utopias
construtivistas. Li os Cantos de Maldoror
aos 20 anos, e meu primeiro livro foi muito influenciado pelo “delírio lúcido”
da obra de Isidore Ducasse. Este, que inscreveu nos seus Cantos uma grande ode “às matemáticas severas” e proclamou em suas Poésies que
“a poesia é a geometria por excelência”, ultrapassa de muito a leitura unilateral
bretoniana, que chegou a incluir Mallarmé, mas não se apercebeu da revolução do Lance de Dados e diluiu a ruptura do
lance de dadá.
Como crítico musical, além de artigos publicados sobre a
música erudita contemporânea, reunidos no volume Música de invenção,
você publicou textos sobre João Gilberto e Caetano Veloso, em Balanço da bossa
& outras bossas, e tem parcerias com músicos como Arnaldo Antunes, Cid
Campos, Arrigo Barnabé. Você tem acompanhado a música brasileira atual? O que
tem chamado a sua atenção na MPB?
Preocupei-me mais com a MPB
quando de suas grandes transformações, a Bossa Nova e a Tropicália. Esses
movimentos, então muito contestados , hoje são vitoriosos e só algumas múmias carregadas
pelos Flips da vida ousam renegá-los. Ainda trabalho com Cid nas experiências
da “poemúsica”, para contrastar a banalização das letras de consumo. Com ele
planejo um CD com as suas composições para os balés O Inferno de Wall Street e
Profetas em Movimento. Volto a dedicar-me à música contemporânea num segundo tomo
da Música de Invenção já entregue à editora. Há um enorme vácuo
cultural em nosso país com respeito à música erudita moderna, a mais segregada
das artes entre nós. São cem anos de silêncio, que podem ser ilustrados pela
última coletânea de CDs de música clássica servida em bancas de jornais. Pulou
o Pierrô Lunar, de Schoenberg, que é
de 1912, e parou na Sagração da Primavera,
de Stravinski, que é de 1913. No Brasil nos dão 5% do repertório moderno contra
uma infinidade de redundãncias clássico-românticas ou neo-ambas. Musicalmente,
vivemos no século XIX.
O Conselho Nacional de
Cultura e Artes do Chile concedeu a você, neste ano, o Prêmio Pablo
Neruda. O que esta premiação representa para o reconhecimento de sua poesia?
Recebi o prêmio com muita
surpresa, porque não tenho relação alguma pessoal com os intelectuais chilenos.
Dos vivos, Nicanor Parra, que faz em
breve 101 anos, é o poeta com quem tenho mais afinidade. Apesar de ver com
muita desconfiança a atribuição de prêmios, tão vulneráveis a interesses grupais
ou ao conservadorismo de confrarias acadêmicas, não pude deixar de
sensibilizar-me com esse prêmio, dado pela primeira vez a um brasileiro e justificado
pelo que o júri chamou de
“transversalidade” da minha poesia, o que demonstra, independente do
juízo de mérito, conhecimento pleno de meus objetivos poéticos. Aqui, ao longo
de mais de 60 anos, só recebi um prêmio pela minha poesia, o da Biblioteca Nacional,
pela publicação do livro Não, em
2003. Outros me foram concedidos, sempre por traduções, jamais pela poesia.
Recebi a premiação chilena com humildade, mas com bons fluidos, quase como um desagravo
ao sobrevivente que sou nos meus 84 anos.
Vindo de fora. O que é mais doce.
O Brasil vive hoje uma assustadora onda de discursos e
crimes de ódio, que trazem à tona o que há de mais atrasado na sociedade –
racismo, misoginia, homofobia, anticomunismo, intolerância religiosa. Em sua
opinião, o que está acontecendo no país?
Um
passo para trás, instigado por não sei que interesses da grande mídia. A
população é induzida por ela a manter-se num clima de permanente desconfiança e
descrédito. Enfatizam-se somente os defeitos, jamais as qualidades ou sucessos do
governo. Pouca atenção deu a mídia ao fato de que o Brasil conseguiu
reduzir a pobreza extrema em 82% entre 2002 e 2013 e saiu do mapa mundial da
fome, segundo atestado internacional da FAO.
Como você avalia a situação política
brasileira, com a ameaça de impeachment da presidente Dilma? Há riscos para a
democracia?
Sim, há riscos. A insensatez da
oposição e a sua ânsia delirante pelo poder
foram levados ao limite. Não
estão interessados nem na democracia nem na melhoria do país. Incapazes de
aceitar a derrota nas urnas, querem a cabeça da presidente. É um dos momentos
mais deploráveis da política brasileira. Tudo o que a oposição logrou foi associar-se
às correntes regressivas de um dos congressos mais reacionários que o Brasil já
teve. Exploram a ignorância da população fazendo da presidente uma espécie de
bode expiatório primal, como se ela não fosse vítima e refém de um sistema
político que a oposição não faz nenhum esforço para aperfeiçoar. O ódio é
grande. Uma jornalista de encomenda, percebendo que a presidente emagrecera ao
fazer uma dieta, arreganhou-se: “Vamos ver até quando isso vai durar…” Torcem
até contra a sua saúde… Perderam a compostura e a cabeça.
O que podem fazer os poetas e intelectuais do lado de fora
do “ovo da serpente”?
Os poetas raramente são ouvidos. Preferem
ouvir futebolistas, cantores populares. apresentadores da TV. Mas se conseguirmos
ser ouvidos, cabe-nos denunciar as falsidades da maioria dos políticos
brasileiros, a sua hipocrisia e a sua desumanidade. Protestar contra o retrocesso
do congresso. Defender a democracia contra a grande “pedalada” política que é o
pretenso impedimento da presidente eleita. “Sem média, sem mídia, sem medo.”
Golpe nunca mais.
(Entrevista publicada na edição de agosto da revista CULT.)
ótima entrevista.
ResponderExcluira entrevista evidencia a ocupação do espaço transversal do poeta
ResponderExcluirexcelente entrevista. papo entre poetas com alto grau de consciência de linguagem.
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