Claudio Daniel
Ghassan Kanafani (1936-1972), um
dos escritores palestinos mais importantes do século XX, considerado um dos
renovadores da prosa de ficção em língua árabe, também se destacou como ativista
da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e escreveu um notável ensaio
histórico sobre a gênese dos conflitos na região, que acaba de ser publicado no Brasil, com o título A revolta
de 1936-1939 na Palestina (São Paulo: Sundermann, 2015). Nesta obra, Kanafani
– nascido na cidade de Akka (Acre), numa família de classe média, exilado no
Líbano desde o massacre da aldeia palestina de Deir Yassin, em 1948, e
assassinado pelo Mossad em 1972 –, retrata o início da colonização do pais das
oliveiras, quando milhares de judeus europeus imigraram para a
região, nas primeiras décadas do século XX, com apoio explícito do Império
Britânico, que administrava o país árabe. Conforme escreve o autor: “Entre 1933
e 1935, 150 mil judeus imigraram para a Palestina, elevando a parcela dessa
população no país a 443 mil, ou seja, 29,6% do total” (nos primeiros anos do
século XX, a população judaica na Palestina era de apenas 5%). A imigração foi
facilitada pela compra de vastas extensões de terras na Palestina por capitalistas
judeus da Europa, que expulsaram os camponeses palestinos das propriedades
agrícolas para oferecer emprego unicamente a trabalhadores judeus. A dominação
econômica dos novos senhores estendeu-se também ao comércio e à indústria: “Em
1935, por exemplo, os judeus controlavam 872 de um total de 1.212
estabelecimentos industriais na Palestina, empregando 13.678 trabalhadores,
enquanto os demais eram controlados por árabes-palestinos e empregavam 4 mil
trabalhadores”. Além disso, as diferenças salariais eram gritantes: “Um censo
oficial de 1937 indicava que um trabalhador judeu recebia 145% a mais em
salários que um árabe palestino. Na indústria têxtil, a diferença entre
trabalhadoras judias e árabe-palestinas atingia 433%, e na indústria de tabaco,
233%”. A situação causada pelo êxodo rural dos camponeses palestinos,
desemprego nas grandes cidades, baixos salários e segregação étnica motivou
greves e manifestações de protesto da população palestina: “Durante os levantes
de 1929 e 1933, muitos pequenos camponeses árabe-palestinos venderam suas
terras aos latifundiários para comprar armas para resistir à invasão sionista e
ao Mandato Britânico. Foi essa invasão que, por ameaçar o modo de vida no qual
religião, tradição e honra jogam um papel importante, capacitou os líderes
feudais e clericais a permanecerem numa posição de liderança”. O Partido
Comunista Palestino, nessa época, tinha pouca adesão de trabalhadores
árabe-palestinos e sua influência era escassa. Os países árabes vizinhos, por
sua vez – Síria, Iraque, Jordânia – eram governados por monarquias reacionárias
alinhadas aos interesses britânicos e não tinham interesse em apoiar uma
revolução nacionalista e antiimperialista das massas trabalhadoras palestinas,
que poderia repercutir na região e desestabilizar as tiranias locais. A revolta
palestina, portanto, reencenava o mito bíblico da luta de Davi contra Golias:
neste caso, um imenso Golias, representado pela Inglaterra – maior potência
econômica e militar do planeta, na época –, pelo sionismo, governos árabes
feudais e uma liderança palestina que temia tanto a perda de poder para os
sionistas quanto as aspirações revolucionárias da classe trabalhadora
palestina. Este é o cenário da tragédia.
LEVANTE QASSAMISTA
No dia 12 de novembro de 1935, um
clérigo palestino, Izz al-Din al-Qassam, partiu para as colinas de Ya’bad com
um grupo de 25 homens, com o objetivo de iniciar a resistência armada contra a
ocupação sionista e o Mandato Britânico. Conforme relata Kanafani, a revolta deveria
acontecer em três etapas: “preparação psicológica e a disseminação do espírito
revolucionário, a formação de grupos secretos, a formação de comitês para
recolher contribuições e outros para adquirir armas, comitês de treinamento,
segurança, espionagem, propaganda e informação e para contatos políticos – e,
então, revolta armada”. Os planos revolucionários foram descobertos pelos
britânicos, ainda em sua etapa inicial, e al-Qassam foi executado, gritando:
“Morrer como mártir!”. O cortejo fúnebre do clérigo atraiu as massas palestinas
e logo se tornou um ato de protesto político, cujos desdobramentos aconteceriam
nos anos seguintes.
Em 1936, foi decretada uma greve
geral, seguida por um movimento de desobediência civil e insurreição armada.
“Centenas de homens em armas afluíram para juntar-se aos bandos que haviam
começado a espalhar-se pelas montanhas”, escreve Kanafani. “O não-pagamento de
impostos foi decidido na conferência que ocorreu na Universidade Raudat
al-Ma’aref al-Wataniya em Jerusalém em 7 de maio de 1936, à qual compareceram
150 delegados representando os árabes da Palestina”. Foi nessa conferência,
prossegue Kanafani, “que a liderança do movimento de massas comprometeu-se com
uma aliança imaterial entre a liderança feudal-clerical, a burguesia comercial
urbana e um número limitado de intelectuais. (...) A conferência decidiu
unanimemente anunciar que nenhuma taxação será paga, a iniciar-se em 15 de maio
de 1936, se o governo britânico não fizer uma mudança radical em sua política,
cessando a imigração judaica”. A resposta das autoridades britânicas foi clara:
nenhum diálogo, nenhuma negociação, apenas a mais feroz repressão, realizada
conjuntamente com as forças sionistas locais, como a milícia paramilitar Haganá
e os quadros policiais integrados por imigrantes judeus. Conforme relata
Kanafani: “o número de palestinos-árabes mortos na revolta de 1936 foi por
volta de mil, além dos feridos, desaparecidos e internados. Os britânicos
utilizaram a política de explodir casas em larga escala. Além de explodir e
destruir parte da cidade de Jaffa (18 de junho de 1936), onde o número de casas
explodidas estimado foi de 220 e o número de pessoas que ficaram sem teto, 6
mil. Além disso, centenas de cabanas foram demolidas em Jabalia, 300 em Abu Kabir, 350 em Sheik Murad e 75 em
Arab al-Daudi. (...) Nos vilarejos, de acordo com as estimativas de al-Sifri,
143 casas foram explodidas por razões diretamente ligadas à revolta”. A prática
da demolição de casas de suspeitos de colaboração com a resistência contra a
ocupação sionista é realizada até hoje nos territórios palestinos e, para
citarmos apenas um episódio, cerca de cem mil palestinos ficaram desabrigados
durante a ofensiva israelense na Faixa de Gaza, em 2014, como resultado dos
bombardeios e da demolição de moradias realizada pelo Exército israelense.
A revolta de 1936 foi encerrada
em 11 de outubro, devido à pressão das monarquias árabes da região, ansiosas
pelo fim do conflito, e não trouxe nenhuma conquista significativa para os
palestinos. Ao mesmo tempo, os vínculos entre os britânicos e os sionistas se
fortaleceram, sobretudo no campo da repressão: em 1935, havia 365 sionistas
servindo nas forças policiais na Palestina; no ano seguinte, esse número
aumentou para 682, e logo saltou para 1.240 sionistas, armados com rifles
militares. No final de 1936, o número de policiais judeus armados era de 2.836,
sem contar as milícias sionistas, como a Irgun e a Haganá, que somavam 6.500
homens. Estas organizações dariam origem, a partir de 1948, às Forças Armadas
da entidade sionista.
Nova ascensão revolucionária: 1937-39
Entre 1937 e 1939, porém, a
revolta palestina assume novo fôlego: segundo Kanafani, “as forças britânicas
que dominavam a Palestina estavam enfraquecidas, o prestígio do colonialismo
estava no seu ponto mais baixo e a reputação e influência da revolta
tornaram-se a força principal no campo”. Como sinal de solidariedade aos
camponeses rebelados, nas cidades palestinas, muitos estudantes, intelectuais e
trabalhadores passaram a usar o lenço típico do camponês, o keffiya. A repressão, novamente, se
abateu sobre o movimento: um grande números de camponeses foi executada apenas
pela posse de arma, cerca de dois mil palestinos foram encarcerados e cinco mil
casas destruídas. Além disso, 148 revoltosos foram enforcados em Acre.
Novamente, os governos árabes
submissos ao Império Britânico, especialmente os da Arábia Saudita e Iraque,
realizaram missões diplomáticas com o objetivo de encerrar toda atividade de
resistência, mas a revolta prosseguiu até 1939, apesar da lei marcial e do
toque de recolher impostos pelos britânicos, das prisões em massa, execuções e
demolições de casas. Em março de 1939, é assassinado um dos principais líderes
da revolta, Abd al-Rahim al-Haji Muhammad, e pouco depois as forças jordanianas
prendem Yusuf Abu Daur, entregue por eles aos britânicos. “Além disso”, escreve
Kanafani, “o terrorismo britânico e sionista nos vilarejos fez com que as
pessoas ficassem com medo de apoiar os rebeldes e supri-los com munição e
comida e, sem dúvida, a ausência de até mesmo uma mínima organização tornou
impossível superar esses obstáculos”.
O Partido Comunista Palestino
atribuiu a derrota a vários fatores, entre eles a ausência de uma direção
revolucionária, a falta de comando central para as forças revoltosas e a
situação mundial desfavorável (em 1939, teve início a II Guerra Mundial e o
fascismo estava em plena ascensão na Europa). Como resultado do fracasso da
insurreição, entre 1936 e 1939 as perdas árabes-palestinas totalizavam 19.762
mortos e feridos, além de 5.679 presos. A burguesia judaica aproveitou-se do
clima de instabilidade política para ampliar a sua presença na região e
“construir uma rede de rodovias entre as principais colônias sionistas e as
cidades que mais tarde formariam a porção básica da infraestrutura da economia
sionista. Depois, a principal rodovia de Haifa a Tel Aviv foi pavimentada, e o
porto de Haifa foi expandido e aprofundado. Um porto foi construído em Tel Aviv, o que mais
tarde ‘mataria’ o porto de Jaffa”. Além disso, cinquenta novas colônias
sionistas foram estabelecidas entre 1936 e 1939, e, no mesmo período, as
milícias sionistas, armadas e treinadas pelos britânicos, tornaram-se ainda
mais poderosas: “havia 12 mil homens na Haganá em 1937, além de mais 3 mil na
Organização Militar Nacional de Jabotinski”. Em 1939, os sionistas contavam com
“62 unidades motorizadas, de oito a dez homens cada”. Com autorização
britânica, as milícias sionistas começaram a fazer ações de patrulha e
operações militares contra os árabes-palestinos, assumindo, na prática, o papel
de força repressiva estatal.
Após o final da II Guerra
Mundial, os sionistas, motivados pelo “clima internacional extremamente a
favor, seguindo a atmosfera psicológica e política causada pelo massacre de
Hitler aos judeus”, sentiram-se fortes o suficiente para se voltarem contra os
seus parceiros do Mandato Britânico, naquilo que entrou para a história da
entidade sionista com o nome de “guerra da independência”, que culminou com a
criação artificial do Estado de Israel, em 1948, em mais da metade dos
territórios palestinos – o restante seria ocupado nos anos seguintes, durante a
chamada Nakba (“catástrofe” em
árabe), que resultou em 500 aldeias palestinas destruídas e no exílio forçado
de 750 mil palestinos, entre eles a família de Ghassan Kanafani, que imigrou do
Acre, situado no norte da Palestina, para Sidon, no sul do Líbano. A história
política da Palestina é a matéria-prima dos romances e contos do autor
palestino, como é o caso do romance Homens
ao sol (São Paulo: Bibliaspa, 2012), que comentaremos, futuramente, em
outro artigo.
Claudio
Daniel é poeta,
tradutor, ensaísta e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates, publicou, entre outros
livros de poesia, os Cadernos bestiais
e Esqueletos do nunca (ambos pela Lumme
Editor, 2015).