Assim como o
julgamento do capitão francês também foi julgado, o mesmo acontecerá um dia com
o processo do mensalão. Lá atrás, a corte de Paris dobrou-se aos
interesses oligárquicos e decidiu reincidentemente contra provas, mandando às
favas conquistas fundamentais da revolução de 1789. Será esse também o caminho
da corte suprema brasileira? Leia o texto exclusivo de Breno Altman para o 247,
na data que marca 110 anos da morte de Emile Zola, autor do célebre
"J´accuse"
29 de Setembro
de 2012 às 06:01
Breno Altman *
No dia 29 de
setembro de 1902, falecia o célebre escritor francês Emile Zola, em
circunstâncias até hoje não esclarecidas. Da sua vasta obra literária, um
pequeno panfleto foi o que mais causou impacto. Intitulava-se “Eu acuso!”,
publicado em 1898, com tiragem inicial de 300 mil exemplares. Abordava rumoroso
tema judicial, conhecido como o caso Dreyfus.
Tudo começou nos
idos de 1894, quando uma faxineira francesa encontrou, na embaixada alemã em
Paris, carta pertencente ao adido militar, tenente-coronel Schwarzkoppen. O
texto parecia indicar a existência de um oficial galo espionando a favor de
Berlim. Dentre os possíveis autores do documento incriminador, apenas um era
judeu, o capitão Alfred Dreyfus.
A possibilidade
acusatória caiu como uma luva para as elites francesas, que apostavam em
reconstruir sua influência com discurso artificialmente nacionalista. Pairava
sobre a burguesia tricolor a pecha de vende-pátria, desde a rendição, em 1871,
na guerra franco-prussiana. O primeiro-ministro Louis Adolphe Thiers, depois
presidente da III República, chegou a contar com colaboração do invasor alemão
para esmagar a Comuna de Paris, poucos dias após o armísticio que colocou fim
aos embates entre ambas nações.
Atacar os
judeus, portanto, era bom negócio para despertar o ódio racial-chauvinista da
classe média e reconquistar sua simpatia. Acovardados diante do império de
Bismarck, os magnatas de Paris trataram de buscar apoio social apontando para
um inimigo interno. Recorreram à artilharia da imprensa sob seu controle para
disseminar imagem de vilania que servisse a seus objetivos.
O julgamento
contra Dreyfus incendiou o país. O oficial, além da dispensa por traição,
acabou condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa.
Um processo relâmpago, conduzido por tribunal militar, sob pressão dos jornais
direitistas, selou seu destino.
Três anos depois
de promulgada a sentença, o irmão do réu descobre documentos que inocentavam
Dreyfus e comprometiam Charles-Ferdinand Esterhazy, nobre oficial de origem
húngara, com o ato de espionagem. Um segundo julgamento é realizado, em 1898,
mas os magistrados mantêm a decisão anterior, a despeito das novas provas.
Emile Zola
escreve, então, seu famoso livreto. Destemido e respeitado, denuncia o processo
como fraude judicial e conspiração política, provocando enorme comoção.
Morreria asfixiado, há 110 anos, presumivelmente assassinado, a mando de quem
não gostava de suas posições.
Quanto a
Dreyfus, anistiado em 1899, a verdade seria reposta por um tribunal apenas em
1906. Mas jamais foi reincorporado ao exército ou compensado pela injustiça
sofrida.
Esta história se
conecta como uma parábola ao julgamento da ação penal 470, conhecida como
“mensalão”, atualmente tramitando pelo Supremo Tribunal Federal, a máxima corte
judicial brasileira.
Uma das inúmeras
situações de financiamento ilegal de campanhas vem a luz, dessa vez envolvendo
o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, e a máquina de comunicação a
serviço das elites trata de transformá-la no “maior caso de corrupção da
história do país”.
Forja-se uma
narrativa verossímil, de votos comprados no parlamento, ainda que não haja
qualquer evidência concreta de sua existência. Inflama-se as camadas médias
contra o principal partido de esquerda e alguns de seus dirigentes históricos.
Lança-se campanha incessante de pressão sobre os ministros da corte,
oferecendo-lhes a opção entre o céu e o inferno a depender de sua atitude
diante do caso.
Jurisprudências
novas são criadas para atender o clamor da opinião publicada. Garantias
constitucionais, atropeladas, dão lugar a outros paradigmas. Alguns ministros
resistem bravamente, mas vai se desenvolvendo roteiro midiático cujo desfecho
está antecipadamente escrito, salvo mudanças abruptas.
Disse o ministro
Ayres Britto, a propósito, que não deve ser perguntado se o réu sabia de
suposto fato criminoso, mas se haveria como não sabê-lo. Ou seja, não é
fundamental que haja provas de autoria daquilo que se denuncia. Basta que sua
função – ou até papel histórico – torne legítima a afirmação de que o indiciado
tem o domínio do fato, elemento que seria suficiente para condenação exemplar,
segundo o mais recente parâmetro judicial.
Há um Dreyfus
escolhido, nessa alegoria. Dessa feita não é um judeu, que outros são os
tempos, mas a principal figura do PT depois do ex-presidente Lula. José Dirceu,
ex-presidente do partido e ex-chefe da Casa Civil, foi sendo transformado, nos
últimos anos , em um grande vilão nacional. A campanha orquestrada contra si
parece ser o caminho dos conservadores para ajustar contas com a esquerda na
barra dos tribunais.
A virulência dos
ataques, aliás, é reveladora do pano de fundo que percorre o processo, além de
incentivar o raciocínio de algumas das vozes e veículos que mais fortemente
combatem os réus. Dirceu e José Genoino, goste-se ou não deles, são
representantes ilustres da geração que se dispôs a resistir, com a vida ou a
morte, contra a ditadura que muitos de seus detratores apoiaram com galhardia
ou diante da qual se acovardaram.
Líderes de um
campo político considerado morto no final do século passado, ambos têm que ir
ao cadafalso para que a direita possa ter chance de marcar com lama e fel os
dez anos de governo progressista, golpeando o partido que encarna esse projeto.
Suas biografias devem ser rasgadas ou suprimidas, no curso dessa empreitada,
pelo trivial motivo de apresentarem mais serviços prestados à nação e à
democracia que as de quem hoje os agride. Inclusive, ironicamente,
as de quem tem o dever legal de julgá-los.
Junto com Dirceu
e Genoino, sobe ao banco dos réus também Delúbio Soares. Dos três dirigentes, é
quem efetivamente assumiu responsabilidade por acordos e financiamentos
irregulares para disputas eleitorais e partidos aliados. Sua versão dos fatos,
pelos quais jamais culpou quem fosse, foi preterida e desprezada, à revelia das
provas, para que vingasse a narrativa de Roberto Jefferson, o candidato a
Esterhazy nessa chanchada.
O ex-deputado
petebista, contudo, é recebido como anjo vingador na seara do conservadorismo e
até por ministros da corte. Sem a tese do “mensalão”, parece evidente, o
espetáculo inquisitorial possivelmente estaria esvaziado. A chacina judicial do
ex-tesoureiro do PT fez-se indispensável.
Mais cedo ou
mais tarde, porém, este julgamento também será julgado, como ocorreu no caso
Dreyfus. O preço desse processo de exceção, afinal, não é apenas o risco da
injustiça, mas o desrespeito à Constituição e à democracia. A corte francesa
dobrou-se aos interesses oligárquicos e decidiu reincidentemente contra provas,
mandando às favas conquistas fundamentais da revolução de 1789. Será esse
também o caminho do STF? Mesmo sabendo que a história acontece como tragédia e
se repete como farsa?
* Diretor do site Opera Mundi e da revista Samuel.
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