terça-feira, 9 de outubro de 2012

REFLEXÕES BRECHTIANAS (IV)

Brecht escreveu versos durante a vida toda. Seu primeiro livro de poemas, publicado em 1925, foi Hauspostille, título de difícil tradução, que remete aos breviários, ou livros de devoção, que os protestantes costumavam ler em casa (recordemos que a mãe de Brecht era luterana devota). Esta obra, como ressalva Carpeaux, “é evidentemente o contrário de um livro de devoção. São baladas em estilo popular sobre crimes célebres da época, sendo invariavelmente os criminosos elogiados e a Justiça e a moral burguesa vilipendiadas. (...) Essa poesia de cabaré engagé é, como disse um crítico católico, o ‘breviário do diabo’. Mas não é poesia revolucionária, apesar de todos os ataques às convenções religiosas, apesar de todos os ataques às convenções religiosas e políticas. É a expressão de um niilismo total” (CARPEAUX, 1994: 285-286).

Um poema que se destaca no livro de estreia de Brecht é A infanticida Marie Farrar, que vamos ler agora, na tradução de Paulo César de Souza:

1
 
Marie Farrar, nascida em abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
   Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
   Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
2
 
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
   Os senhores, por favor, não fiquem indignados
   Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
3
 
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
4
 
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
5
 
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como diz, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém
E não podemos desprezá-la por isso.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
6
 
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como é você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
E os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos precisamos de ajuda, coitados.
 
7
 
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
   Os senhores, por favor, não fiquem indignados
   Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
 
8
 
Então, entre o quarto e o sanitário — diz que
Até então não havia acontecido — a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
   Os senhores, por favor, não fiquem indignados
   Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


9
 
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de “abençoada” sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
   Por isso lhes peço que não fiquem indignados
   Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


Este poema tem notável semelhança formal com a Balada dos Enforcados, de François Villon, também composta em estrofes de dez versos – mas, ao contrário do autor francês, que compôs o seu poema em notáveis decassílabos, Brecht preferiu o verso livre, em ritmo de balada. A principal chave para a leitura intertextual está nos dois versos finais que se repetem a cada estrofe, ou com ligeiras modificações, em ambos os poemas. Brecht: “Por isso lhes peço que não fiquem indignados / Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados”. Villon: “Que de nossa aflição ninguém se ria, / Mas suplicai a Deus por todos nós”.  O refrão, que no caso do poeta francês remete à compaixão universal ensinada pelo cristianismo, no caso de Brecht indica a solidariedade com os miseráveis, vítimas de um sistema econômico e social injusto, que condena, hipocritamente, o crime de Marie Farrar, ao mesmo tempo que fecha os olhos à situação que a levou a cometer o infanticídio. A inversão de papeis nas peças e poemas de Brecht, em que o criminoso ou proscrito por vezes assume a posição de herói, recorda também a lenda criada em torno de Villon, que teria sido, conforme alguns relatos, bêbado, ladrão e assassino – portanto um pária, à margem das normas da sociedade medieval.

 No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:



Quando enfim chegou ao Paraíso
São Pedro o portão trancou
Deus disse: “Não vou acolher no céu
A puta Evelyn Roe”.

Também quando ao Inferno ela chegou
A porta na cara levou
E o diabo gritou: “Não quero aqui
A beata Evelyn Roe”.

Tradução: Tatiana Berlinky / Maria Alice Vergueiro / Catherine Hirsch
 
Os heróis de Brecht, em seu teatro e em sua poesia, são sempre os excluídos, os malditos, sejam eles operários, camponeses, prostitutas, bêbados, vagabundos, todos aqueles que, nos quatro cantos do globo, eram colocados sob suspeita pela sociedade capitalista, e que – acreditava o poeta – um dia iriam se levantar contra a opressão, hipótese que se tornou crível a partir da derrota e fuga dos exércitos nazistas da Europa Oriental e do surgimento das repúblicas de democracia popular, lideradas pelos comunistas.Brecht acreditou com sinceridade no modelo do chamado socialismo real, e foi um cidadão orgulhoso da República Democrática Alemã até a sua morte, em 1956. 

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