domingo, 21 de outubro de 2012

REFLEXÕES BRECHTIANAS (VII)


Testemunha dos trágicos acontecimentos da era nacional-socialista, Brecht relata em seus poemas, como se fossem pequenas crônicas ou notas de um historiador, eventos como a queima pública de livros de autores incômodos ao regime, os métodos de intimidação das tropas de assalto, a resistência dos operários alemães nas fábricas, a experiência do exílio de poetas e intelectuais e ainda os conflitos psicológicos de uma nação dominada pelo medo. A crônica política de Brecht, porém, não se resume à narrativa de fatos históricos, aos moldes de um jornalismo poético, orientado pelo espírito militante e pela leitura do materialismo histórico e dialético do pensamento marxista. O poeta, consciente do valor estético do artesanato linguístico e do caráter atemporal da tragédia humana, incorpora em poemas políticos elementos da fábula, da parábola, da alegoria, mistura diferentes referências históricas e repertórios culturais, numa miscigenação universalista, quase barroca. No poema Canção de Salomão, de linguagem coloquial e humor provocativo,os protagonistas são o personagem bíblico que dá título ao poema, a rainha egípcia Cleópatra, Júlio César e o próprio poeta alemão, condenados pelo desejo excessivo de poder, de prazer e de saber:

O indiscreto Brecht quis saber
Escutem suas canções
Como os ricos têm poder
De acumular tantos milhões
Pobre no exílio foi parar
Brecht xereta
Bisbilhoteiro
E com o tempo a correr
Enfim o mundo percebeu
Fuçar demais foi a sua perdição
Melhor viver na discrição...

(Fragmento traduzido por Luiz Roberto Galizia)

O tema do exílio é recorrente no autor, que viveu longe da Alemanha entre 1933 e 1949, quando fixa-se na República Democrática Alemã. No poema A emigração dos poetas, Brecht faz um interessante paralelo entre a sua experiência de fugitivo e a de outros poetas que admirava, usando novamente o procedimento de recorte e montagem de elementos de diferentes épocas, culturas e países:

Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Tu-Fu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípedes foi ameaçado com processos
E shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o teto de palha dinamarquês.

Tradução: Paulo César de Souza

Neste poema, encontramos autores já citados no presente ensaio como precursores da poética brechtiana, entre eles Villon, Heine e os chineses Li-Po e Tu-Fu. A presença chinesa é evidente não apenas nas peças mais breves e concisas traduzidas e comentadas por Haroldo de Campos, em que se destacam a justaposição de imagens e estrofes à maneira do ideograma, mas ainda nas traduções criativas que o autor de  A boa alma de Se-Tzuan realizou de versos clássicos de Po Chu-yi,  Ts’ao Sung e de autores anônimos do cânone tradicional do Império do Meio, não raro escolhendo os poemas por seu viés crítico e temática atemporal. Neste sentido, as traduções de Brecht podem ser comparadas às personae de Ezra Pound, que também vestia a máscara dramática de autores da Antiguidade, da Idade Média ou do Renascimento para manifestar o seu desconforto com o desconcerto do mundo. Assim, por exemplo, nesta breve peça recriada pelo autor alemão:

UM PROTESTO NO SEXTO ANO DE CHIEN FU

Os rios e morros da planície
Transformais em vosso campo de batalha.
Como, pensais, o povo que aqui vive
Poderá se abastecer de “madeira e feno”?
Poupai-me por favor vosso palavreado
De nomeações e títulos.
A reputação de um único general
Significa: dez mil cadáveres

Ts’ao Sung (870-920)  

Tradução: Paulo César de Souza

Reler Brecht é uma experiência rica e de extrema atualidade, que nos faz pensar sobre os aspectos éticos e estéticos da criação literária e, não menos importante, sobre a escolha que o artista tem a liberdade de fazer entre a cooptação pela cultura de mercado e o compromisso com a construção de uma nova realidade.


BIBLIOGRAFIA:

BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: editora 34, 2001.

CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

CARPEAUX, Otto Maria. A literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

JAMESON, Frederic. Método Brecht São Paulo: Vozes, 1999.

PEIXOTO, Fernando. Brecht vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 2ª. edição.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. SP: Editora Perspectiva, 1985.

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