A crise do verso anunciada por Mallarmé, a seu ver, aponta para o fim
da poesia como arte verbal, com a adoção dos meios eletrônicos, ou ainda é
possível a experimentação no poema-texto?
Augusto de Campos: Não acho que a crise do verso
aponte para o fim da poesia como arte verbal, mas para um redimensionamento
estrutural do poema. Essa reestruturação começou a ser trabalhada de vários
modos pelas vanguardas do início do século, mas foi interrompida pela intervenção
de duas grandes guerras e de duas ditaduras, a nazista e a stalinista, que
perseguiram tenazmente os artistas experimentais e retardaram a evolução.
Retomada, sob a inspiração de Mallarmé, pela poesia concreta, na segunda metade
do século, essa abertura estrutural continha em germe os pressupostos das
linguagens que iriam encontrar o seu "habitat" natural no contexto
das novas tecnologias eletrônicas. Nesse contexto, a palavra não deixa de ter
lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão
não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual
e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais
amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento. Não
há porque excluir o livro ou outros suportes matéricos e textuais, que seguem o
seu curso e até se beneficiam da tecnologia digital no processo de sua feitura.
O que ocorre é a abertura insopitável para o universo virtual, em situações em
que a palavra, potencializada em todos os seus parâmetros, já não cabe no
livro. Suponho que haverá ainda, por muito tempo, lugar para aqueles que
prefiram trabalhar exclusivamente as poéticas do texto fora do contexto das
novas mídias eletrônicas. Por outro lado, insisto em sublinhar, o mero domínio
do computador não transforma ninguém, só por só, em grande poeta, e as
facilidades da engenharia digital devem preocupar sempre aqueles que a usam.
Acima de tudo, a grande arte é sempre difícil. "Sem presumir o que sairá
daqui, nada ou quase uma arte", dizia Mallarmé, há um século, no prefácio
do Lance de dados, que antecipou todos os lances. E Pound, inventor de tudo:
"Beauty is difficult". E Schoenberg, mestre de todos, aos seus
alunos: "Eu vim aqui para tornar impossível a vocês compor música".
Daí surgiram Anton Webern, Alban Berg e John Cage.
(Trecho de uma entrevista que fiz com Augusto de Campos, publicada em 1998 no Suplemento Literário de Minas Gerais. O texto integral está aqui, http://www.elsonfroes.com.br/acampos.htm)
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