Haroldo de Campos
O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em ensaio famoso, definiu o barroco americano como “a arte da contraconquista”. A concepção de Lezama foi, recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fuentes, em O espelho enterrado: “O barroco é uma arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa identidade em mudança.” (...) “Para nossos maiores artistas --, prossegue Fuentes, invocando a proposta de José Martí, de uma ‘cultura totalmente inclusiva’ --, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na própria fonte da criatividade.”1 Considerando, ademais, o fenômeno do hibridismo indo-afro-ibérico na arquitetura e nas artes plásticas do Novo Mundo, Fuentes assevera, convergindo com Lezama: “O sincretismo religioso triunfou e, com ele, de algum modo, os conquistadores foram conquistados.”2 Antes do cubano, em seu A marcha das utopias, Oswald de Andrade, teórico e prático da “antropofagia” como devoração crítico-cultural, já ressaltara, quanto ao barroco americano, o seu característico “estilo utópico”, “das descobertas” que resgataram a Europa do “egocentrismo ptolomaico.”3
O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em ensaio famoso, definiu o barroco americano como “a arte da contraconquista”. A concepção de Lezama foi, recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fuentes, em O espelho enterrado: “O barroco é uma arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa identidade em mudança.” (...) “Para nossos maiores artistas --, prossegue Fuentes, invocando a proposta de José Martí, de uma ‘cultura totalmente inclusiva’ --, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na própria fonte da criatividade.”1 Considerando, ademais, o fenômeno do hibridismo indo-afro-ibérico na arquitetura e nas artes plásticas do Novo Mundo, Fuentes assevera, convergindo com Lezama: “O sincretismo religioso triunfou e, com ele, de algum modo, os conquistadores foram conquistados.”2 Antes do cubano, em seu A marcha das utopias, Oswald de Andrade, teórico e prático da “antropofagia” como devoração crítico-cultural, já ressaltara, quanto ao barroco americano, o seu característico “estilo utópico”, “das descobertas” que resgataram a Europa do “egocentrismo ptolomaico.”3
Esses parâmetros referenciais sinalizam a importância do
barroco em sua transplantação na Ibero-América, onde se miscigenou ao
contributo indígena e africano.
Recentemente, em texto que me foi
encomendado pelo Guggenheim Museum para figurar no monumental catálogo da
exposição Brazil: Body and Soul, cujo
carro-chefe era a arte barroca em nosso país, tive a oportunidade de rastrear
os fios dispersos desse estilo em nossa literatura (sobretudo na poesia, mas
também na prosa), a partir do barroco histórico da Colônia, projetando-o,
todavia, no presente de criação.4
Entre outras considerações,
procurei mostrar a “pervivência” (Fortleben,
W. Benjamin) transmigratória desse estilo no Brasil, fora do estrito marco
histórico dos Seiscentos/Setecentos (Gregório de Matos, Botelho de Oliveira,
Padre Vieira, e no plano das artes plásticas, o Aleijadinho, o
escultor-arquiteto de Ouro Preto/Vila Rica, que faz pendant com o índio José Kondori, arquiteto das igrejas de Potosí,
no Peru, e encontra uma réplica atual no barroquismo de Oscar Niemeyer).
Duas linhas, dois veios percorrem o barroco histórico: o
“sério-estético” (lírico,encomiástico, religioso) e o “joco-satírico” (aliado,
na prosa, ao “picaresco”, gênero este que deu, entre nós, com variantes e
características próprias, o “romance malandro”, estudado por Antonio Candido).5
Na primeira dessas linhas,
lembrei as “Cartas chilenas”, longo poema atribuído ao árcade mineiro Tomás
Antônio Gonzaga; o romântico Bernardo Guimarães, dos pornopoemas paródicos e
dos abstrusos “bestialógicos” pré-sonoristas; Luiz Gama, outro romântico, o
poeta negro, ex-escravo, da virulenta e desmistificadora “Bodarrada”; o
Sousândrade do “Tatuturema” e do “Inferno de Wall Street”, um romântico
excepcional, não-canônico, que prefigurou a poesia moderna e de vanguarda,
internacionalmente falando.
No veio “sério estético”, lembrei
os árcades tardo-barroquistas Cláudio Manoel da Costa e Alvarenga Peixoto; o
“pai-rococó” Odorico Mendes, precursor de certo Sousândrade, tradutor
“monstruoso” (como o foram Voss e, acima de todos, Höelderlin) dos clássicos
(Virgílio e Homero); o Sousândrade “preciosista” de O guesa e de O novo Éden,
entre barroquista e simbolista; Cruz e Sousa, o “cisne negro” que liderou o
nosso Simbolismo (e que não por acaso, num soneto antiescravista, celebrou a
pompa da linguagem de Gôngora [“Eu quero em rude verso altivo adamastórico /
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico”] como o fez, por seu turno, o
pioneiro nicaragüense do Modernismo/Simbolismo hispano-americano, Rubén Darío,
nos textos de estilo gongorino em que homenageou, sob a forma de sonetos
dialogais, o enigmático cordovês ao lado de Velásquez)6; Augusto dos Anjos e
Euclides da Cunha, barrocos “cientificistas”, na poesia o primeiro e na prosa o
segundo; sem esquecer Raul Pompéia, de O
Ateneu, “última e derradeiramente legítima expressão do barroco entre nós”,
segundo opinou Mário de Andrade.7
Incursionando à vol d’oiseau pela Modernidade, lembrei
o desigual e prolixo Invenção de Orfeu,
de Jorge de Lima (poema da predileção de outro barroquista, este de minha
geração, o inolvidável Mário Faustino); os poetas Décio Pignatari (“O jogral e
a prostituta negra”, “Périplo de Agosto a água e sal”, “Rosa d’amigos”, “Fadas
para Eni”) e Affonso Ávila (Cantaria
barroca). Na prosa, o excepcional Grande
Sertão: Veredas (que corresponde em importância a Paradiso, de Lezama Lima); Catatau,
a “barrocodélica” rapsódia de Paulo Leminski.
Tratava-se, evidentemente, dadas
as limitações do espaço reservado aos colaboradores, de uma súmula apenas
“exemplificativa”, não “exaustiva” e muito menos “taxativa”.
Do ponto de vista teórico, em meu
artigo de 1955 “A obra de arte aberta”, que precedeu de mais de seis anos a Opera Aperta (1962) de Umberto Eco
(embora, entre nós, quando se aborda o tema, se costume silenciar sobre essa
circunstância antecipatória fatual), houve uma segunda precursão: nos seus
parágrafos finais, enunciei, expressamente, o prospecto de um “barroco moderno”
ou “neobarroco” (antes, portanto, de Severo Sarduy, querido e admirado amigo a
cuja memória dediquei um poema em Crisamtempo;
Sarduy veio a introduzir o conceito no campo hispano-americano em 1972, sem
conhecer o meu texto de 55).8 É preciso, ademais, referir que, embora não
empregassem a expressão “neobarroco”, tanto Lezama Lima (La expresión americana, 1. ed., 1957), como Alejo Carpentier, dois
mestres cubanos influentes em Sarduy, já reivindicavam, em âmbito
hispano-americano, o estilo barrroco e o barroquismo de impacto
trans-histórico.9 Em minha prática poética, textos como Ciropédia e Claustrofobia,
ambos de 1952, constituem, como já tenho afirmado, a pré-história barroquizante
de minhas Galáxias (1963-76).
Hoje em dia, esse conceito de
“neobarroco” parece derivar no sentido de um pervasivo “transbarroco”
latino-americano (para só falar do que se passa na América Ibérica). Nessa
direção apontam três antologias: Caribe
transplatino, bilíngüe, organizada por Néstor Perlongher com traduções de
Josely Vianna Baptista, Iluminuras, São Paulo, 1991; Transplatinos, organizada por Roberto Echavarren, El Tucán de
Virginia, México, 1990; Medusario/Muestra
de poesía latinoamericana, organizada por Roberto Echavarren, José Kozer e
Jacobo Sefamí, México, Fondo de Cultura Económica, 1996. Jardim de camaleões – A
poesia neobarroca na América Latina, a antologia organizada pelo jovem
poeta Cláudio Daniel (ele próprio um dotado “neobarroquista”), com traduções
dele e de Luiz Roberto Guedes, ora editada pela Iluminuras, torna acessível ao
leitor brasileiro, de maneira bastante ampla (incluindo alguns nomes já
bastante conhecidos, ao lado de outros mais jovens) essa deriva “transbarroca”
que percorre o espaço textual de nossa América, não de modo homogêneo e
uniforme, mas regendo-se por uma fascinante estratégia de nuanças.
São Paulo, março de
2002.
(Prefácio de Haroldo de
Campos a meu livro Jardim de Camaleões: A Poesia Neobarroca na América
Latina. São Paulo: Iluminuras, 2004;)
1) Lezama Lima, José. La
expresión americana. Madri, Alianza Editorial, 1969; 1. ed; 1957; tradução
brasileira por Irlemar Chiampi, A expressão americana, São Paulo,
Brasiliense, 1988.
2) Fuentes, Carlos. O espelho
enterrado, traduzido por Mauro Gama, Rio de Janeiro, Rocco, 2001; título
original: The buried mirror, 1992.
3) Andrade, Oswald de. A marcha
das utopias, 1953, conjunto de artigos publicados em O Estado de S.
Paulo e reunidos em livro na série “Cadernos de Cultura”, Rio de Janeiro,
MEC/Serviço de Documentação, n. 139, 1996.
4) Sullivan, E.J. (org.). Brazil:
body and soul. New York, Guggenheim Museum,
The Salomon R. Guggenheim Foundation, 2001. Meu ensaio, que se ocupa
também de outros aspectos, culturais e sociais, da questão, tem por título
“Literary and artistic culture in modern Brazil”.
5) Antonio Candido. “Dialética da
malandragem”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo,
USP, n. 8, 1970.
6) Darío, Rubén. Cantos de
vida y esperanza (“Otros poemas”, VII - Trébol, I a III), 1905; Buenos
Aires/México, Espasa-Calpe, 1943.
7) Andrade, Mário de.Aspectos
da literatura basileira (“O ateneu”). São Paulo, Livraria Martins Editora,
s.d. (o ensaio remonta a 1941).
8) A propósito, ver a introdução
de Eco à edição brasileira de seu livro, Obra aberta, São Paulo,
Perspectiva, 1968. Quanto à cronologia da noção de “neobarroco”, ver Andrés
Sánchez Robayna Barroco de la levedad (Barroco da leveza), Revista da USP,
São Paulo, jan.-fev. 1990-91, p. 139, nota 23.
9) De Carpentier, a obra mais
extremadamente característica da tendência é, a meu ver, Concierlo barroco,
1974); o autor, que também se manifestou através de ensaios críticos (Tientos
y diferencias), para o fim de definir o espírito latino-americano fundem as
noções de barroco e de “real maravilhoso”, chegando, assim, à tese do creollismo
(entendido como “mestiçagem”); cf. Dill, Hans-Otto. Geschichte der
lateinamerikanischen Literatur im Überblick, Stuttgart, Reclam, 1999.
10) Refira-se que o argentino
Perlongher, praticando uma sorte de barroquismo kitsch, define-se como
“neobarroso”, aludindo ao livro lustral do Rio da Prata.
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