ALMOÇO NA RELVA
Do céu fechado
(semi-
círculo)
sobre o
lago
cai verde
uma gota de ave
— excremento —
abre n’água
cír círculos
concêntricos
O lago, outro
círculo
verde
circundado
por mais verde avermelhado
pelo círculo do sol
poente
relva onde talo teso gramo
às portas do seu
triângulo jardim
FRIBURGO
A Washington Braun
Hibiscos.
Pequenos sóis terrestres em flor
à sombra da
montanha
encimada por
outra
flor: sol helianto
que desde a manhã
a este crepúsculo
muda cor
à rocha verde azul
púrpura agora
negra
Pedra do
Imperador
OUTRA MANHÃ
A Roque, Cláudia e
José Antônio
Por detrás do verde monte
(não-verde-oliva
não-verde-musgo
verde-não-verde
não-verde-mar)
por detrás do verde monte
(não-verde-mata
ver de perto: entulho)
por detrás do verde-azinhavrado monte
de sucata, surge sujo
grafitado
— cicatrizes, placas, logomarcas
confusa cabala, restos de cartazes,
frases, chagas — crivado de balas
o
sol
e ao fundo
canto imaginário do galo
garganta
jorrando
do pescoço decepado
(gargalo)
ao esgoto escuro
o sangue
reencarnado:
outra manhã no mundo
NUMA ESTAÇÃO DO METRÔ, around
1916 d.C., a
aparição das
faces na multidão, pétalas
num ramo escuro úmido,
dilata a pupila de Ezra,
enquanto outra turba
(a mesma?) se despetala:
um tiro (a esmo) desfolha
a bala a rosa da multidão,
numa estação do metrô,
1998 d.C.
APARTADO
Para
trás
está
emaranhada
a floresta
trás
está
emaranhada
a floresta
flor besta-fera
abrindo-se
ao hálito da serpente
tenebra
tenebra
está a horda
de Calibãs,
de Calibãs,
clareira — aroma
de ervas
de ervas
(Sempre nascente na fronte de um rio
O diabo aprisionado numa garrafa sobre a relva
AS ARMAS ESTOCADAS
No quarto ao lado de meu silêncio
dorme a criança sem suspeitar do ar
que alimenta a violenta tosse da cidade,
durante o sono – monstros e rosnados –
um mercador de medos corrompe as
flores e lianas que buscam germinar
entrelaçadas à boca e ao cano dos fuzis,
a criança dorme, enquanto um arsenal
faz tic-tac tic-tac tic-tac tic-tac tic-tac
no fundo falso de um chapéu texano
que não vê diferença entre uma sentença
de morte e outra sentença, a do verbo criador,
senhor de mundos onde as pedras flutuam.
A criança dorme, dorme, enquanto suas chagas
são amargamente remendadas pelos laços
de família e os panos podres que abafam
o som das armas estocadas e o cochichar
subterrâneo do crime com as ideologias,
a criança dorme sem suspeitar que dia e noite
noite e dia as máquinas da morte trabalham
fabricando assassinos paralíticos deformados
cegos surdos mudos órfãos viúvas mutilados
e em promoções especiais – “compre uma
leve duas”, dá de brinde a vassoura da eugenia,
dia e noite, noite e dia, dia e noite, noite e dia
a máquina da morte vende a varejo – um tiro
para cada vivo – um dólar para cada morto, e
em forma de atacado um bem sortido genocídio,
a máquina da morte tem filiais em muitos países –
danger nas mãos de sacerdopatas e políticos ,
gnomos impotentes, que, no meio da noite
recalcados, levantam e apontam seu míssil
contra alguma pequena aldeia que acorda
da cama para em seguida deitar na tumba –
ossos e fragmentos que antes eras risos
espalhados pelo chão do bárbaro ofício
No quarto ao lado do meu silêncio, só,
a criança dorme sem suspeitar de nada,
um gato listrado ao seu lado – sua alma
TRAVESSIA
Um dia para atravessar – sol
entre duas noites imensas,
entre duas noites imensas,
tendo como companhia o corpo,
este pequeno animal que não
este pequeno animal que não
te pertence e que, sem nada
perguntar, se oferece, devotadamente,
perguntar, se oferece, devotadamente,
ao tempo, deus que também é
o próprio corpo em silêncio
o próprio corpo em silêncio
Um dia para transpor tendo por alimento
a poeira da estrada que se estende
a poeira da estrada que se estende
branca, do nascente ao poente e
que, lentamente, transforma-se em
que, lentamente, transforma-se em
riacho negro que passa sob a
ponte suspensa da Via Láctea
ponte suspensa da Via Láctea
Ir, à outra margem, de acordo
com o que a própria ida engendra
com o que a própria ida engendra
Ora com o silvo das serpentes sob o passo
Ora andando sobre as águas do poema
Ora andando sobre as águas do poema
QUANDO
Quando a luz cegar o seu fio
de navalha que corta tudo em
de navalha que corta tudo em
claro e escuro, e esta sombra
já não tiver a centelha com que
já não tiver a centelha com que
dialogar alternando-se em sol
e lua, silêncio e palavra, terra
e lua, silêncio e palavra, terra
e céu refletido nas águas do rio que
arrasta a imagem das noites e dos dias,
arrasta a imagem das noites e dos dias,
quando por mero acaso repentino
ou ocaso lento e gradual romper-se
ou ocaso lento e gradual romper-se
o fio de voz que traz o não e o sim
na mesma frase de ritmo imprevisível,
na mesma frase de ritmo imprevisível,
nada ao mundo faltará e nada se
abalará a este pequeno movimento
abalará a este pequeno movimento
de asa, que, ao decolar, vibra,
imperceptivelmente, a folhagem
imperceptivelmente, a folhagem
ESCREVER
Escrever para supraviver
por um momento, ou ser
por um momento, ou ser
inteiramente num instante
em que passado, presente
em que passado, presente
e futuro se fundem numa
chama única e transparente.
chama única e transparente.
Escrever para ver num lago
branco o lado negro de Narciso,
branco o lado negro de Narciso,
luz e sombra velando-se e
revelando-se nas pontas do
revelando-se nas pontas do
sorriso – anjo-monstro, que
nas águas aparece refletido.
nas águas aparece refletido.
Escrever, riscar à carvão na própria
lápide o brilho cego de diamantes.
lápide o brilho cego de diamantes.
Escrever, morrer e aspirar, eterna
mente, a poeira de uma estante
mente, a poeira de uma estante
Antônio Moura
(Belém 1964) é autor de Dez (1996), Hong Kong (1999), Rio
Silêncio (2004), A Sombra da Ausência (2009).
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