Uma noite sensível cor de martelos
— Herberto Helder
Reynaldo Jiménez (Lima, 1959) é o poeta do sensorial, cultor de estranhas partituras que evocam a pele do musgo, a sombra do marsupial ou a noturna irrupção de amarelos. Ninguém se iluda com esses poemas escavados na rocha (ou ainda, no espaço movediço do barro): existe a alucinação, o espraiar-se de simulada demência, mas também o daimon da composição, que ordena as figuras com rigorosos compassos e esquadros. Ele é o herdeiro hispânico das cabalas de Rimbaud e Mallarmé (lembremos o adágio sobre "o poder encantatório das palavras"), das bizarrias plásticas de Lautréamont; porém, essa excêntrica imagética é articulada numa sintaxe voluntariamente artificial ou hermética, construída segundo uma lógica musical que converte as palavras em células melódicas e rítmicas (de uma aspereza lírica que se choca com o próprio conceito de lirismo). As referências imediatas dessa sintaxe analógica são, é claro, Góngora, Quevedo e el brujo Lezama; é habitual inserirmos o autor na seara barroquista, e com certa razão.
O que diferencia Jiménez de seus confrades, talvez, seja a maneira como ele recria o espanhol, como se intentasse a criação de outra língua, mestiça e porosa. Em versos arquitetados no espaço entre som e sentido, o poeta alinhava arcaísmos, encontrados em obras clássicas da literatura espanhola; termos estrangeiros - do árabe e do sânscrito, por exemplo; neologismos criados pelo autor; e termos de um deliberado feísmo, em dissonância com a possível "aura" do sublime (o que nos remete à poesia crítica de Laforgue e Corbière, este último o autor de Le Crapaud). Como ilustração ao que foi dito, podemos citar um fragmento do poema Shakti, que narra uma epopéia íntima, alegórica, cujo personagem central é a divindade feminina indiana, consorte de Shiva, representada na iconografia tântrica com um colar de crânios e cinturão de mãos decepadas: "porque adorna uma deusa, o peregrino da espécie deserta. / soletra, como a lepra do pária, uma espera intraluzente, muda / a marca de ofícios e penares em ondas aturdindo, turba ao acudir / interior de um mercado zahorí. palustre o espírito sob os tules, / morada iguana; confim do contemplar, a / ponto de arrostar seu néctar, os devas a corrente afinam / com o limo. com estoque de antiga penetração, o estro / enquanto taumaturgo sacode o sistro da mente, címbalo."
Temos aqui uma narrativa sinuosa, labiríntica, onde episódios e personagens movimentam-se fora de qualquer previsível linearidade; o mito é recriado (celebrado) na fusão de planos históricos e geográficos, tendo como fio condutor o desdobramento de imagens e sentenças. Esta é uma poética que mescla referências culturais díspares, formando o desenho de uma particular mandala, onde encontramos desde o mercado zahorí (oculto, em árabe) até o sistro (instrumento musical egípcio), passando pelo relato de antigas histórias védicas, contadas nos Puranas. O espaço do poema é todos os espaços, seu tempo é todos os tempos; como se o drama ocorresse em todos os lugares e em lugar nenhum. Nessa dimensão epifânica a que pertencem os mitos, ruge a fera cantada por Blake, que salta a nossos olhos como metáfora viva, poema movente com seu alfabeto de ocelos. Em Como chamar um tigre? o poeta reúne imagens e símbolos tradicionais da literatura, da mitologia, do psiquismo, sem pretender definir uma figura nítida, identificável; trata-se, antes, de grafar o enigma, o indeterminado, o cambiante, num canto paralelo, talvez, a nossa própria perplexidade. Inútil decifrar, nesse monólogo, a fera e seus caninos, que pertencem ao incessante "rumor da metamorfose".
Jiménez investe na alquimia verbal, na mutação das palavras e no arranjo inusitado entre elas, formando hipnóticas estatuarias; a esse respeito, podemos recordar o trouver une langue de Rimbaud, gênio tutelar que rege essa escritura simbiótica. Em Exiliares, por exemplo, o autor diz: "A pirâmide solar está grávida / pelo espelhismo roto da pupila, que sabe / às vezes o reflexo que olvidou a fonte. / Queimam-se perguntas por fragmentos / de cada menino antigo que não voltou. / Porém volta, em outra forma, outra vez, / areiazinha que se dá por um punhado. / Recupero na fragância / de algum modo o outro harmônico / que a sua espessura cinge e ao ossário / traga pela borboleta, / sempre irrepetível pois retorna. / Não é alarde senão pluma na corrente / que desterra, errar até a polpa ou medula. / Recontos rotos concordam, / anéis grises somam o salto de um só / grilo nesta ausência". Este poema faz parte de um ciclo de seis composições, chamado A Indefensabilidade. É um verdadeiro museu da estranheza; nada parece conhecido aqui, como se fosse o atlas de uma estrela distante, ou o registro de uma civilização desaparecida. Verbos não descrevem ações claramente reconhecíveis ("errar até a polpa ou medula"), substantivos se associam de maneira analógica ("Dia virgem lagarto. / Rodopiante água / do peregrinar"), termos botânicos ou geológicos são invocados em definições de objetos ou cenas impossíveis, de maneira taumatúrgica.
Seria necessário escrever uma análise de amplo escopo para avaliar, de maneira satisfatória, a riqueza de léxico e as construções inusitadas dessa escrita visceral, situada no meio fio entre o exercício da alucinação e a matemática; infelizmente, tal abordagem iria além dos limites de uma breve apresentação. Não podemos encerrar este prólogo, porém, sem traçar um mínimo paralelo entre a hibrys barroca de Jiménez e a nova poesia brasileira, onde autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista navegam em direção similar, instigados pela geometria dos cristais e pela arte da falcoaria. O poeta que mais se aproxima desse "artesanato furioso", no entanto, é o português Herberto Helder, autor de versos insólitos, como estes: "A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua / alumia-se. O mel escurece dentro da veia / jugular talhando / a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se / a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas / obscuras, a lua / tece as ramas de um sangue mais salgado / e profundo. E o marfim amadurece na terra / como uma constelação". O barroco, essa grafia do excessivo, desconcertante ou visionário, avança pelas margens de nossa tradição lírica, apontando-nos, como um grifo no espelho, sendas de negrume que iluminam outras possibilidades para a palavra poética.
(Ensaio publicado na antologia Shakti, com poemas de Reynaldo Jiménez que traduzi para o português. O livro foi publicado pela Lumme Editor em 2007.)
sincronicidade: estou lendo, relendo e treslendo estas partituras nas últimas semanas. E estes poemas ficam ainda melhores quando lidos em voz alta. abraço
ResponderExcluirPablo, ótimo! Sim, o Jiménez é um poeta que precisa ser lido em voz alta... o abraço do
ResponderExcluirClaudio