A composição poética do português Herberto Helder baseia-se numa lógica da metamorfose 1: as imagens poéticas são alinhadas não como simples metáforas ou como descrições objetivas das coisas, mas como sucessão instável de figuras, que perturbam a normalidade da representação e da leitura. A realidade aparece aqui não como um fato a ser descrito ou narrado, mas como matéria plástica, construída por analogias, signos que se movimentam em constante mutação.
Essa filosofia compositiva utiliza o discurso para perturbar o discurso, valendo-se inclusive de recursos como a elipse e o fragmento, seguindo a estratégia de criar uma realidade própria na escritura: o poema não representa uma coisa, ele é esta coisa. As linhas funcionam como notações musicais, definidas pela intenção melódica e rítmica que organiza as palavras na página-partitura. Assim, por exemplo, no poema Joelhos, salsa, lábios, mapa (que evidencia, já no título, o recurso de aproximação das palavras sem um nexo lógico ou sintático aparente): “Abrindo no escuro, durante toda a neve, / os copos, os vestidos, os mapas. / E dentro de mim, rompendo peixes, / uma noite sensível cor de martelos. / Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse / martelo louco / nas borboletas. Então o meu cabelo / respirava — cabelo quente, telha / molhada. / Neve, borboleta, vírgula, estátua”. Esta organização semântica, em aparente desordem, sem dúvida nos faz lembrar a escrita automática dos surrealistas, em seu fascínio pelo imprevisto e pelo inverossímil; remete também a Dadá, a Lautréamont e aos simbolistas franceses, inclusive o último Mallarmé, que no prefácio do Lance de Dados reivindica uma estrutura poética similar à da música ouvida em concerto. Helder pertence à confraria dos autores excêntricos; assim como seus irmãos espirituais, ele se insurgiu contra o verso clássico, a retórica, a hegemonia da clareza e da objetividade, optando por uma imprecisão (ou abstração) voluntária.
A preferência pelo obscuro, hermético ou paradoxal aproxima o poeta português do romeno de língua alemã Paul Celan, autor de versos como estes: “Verde-bolor é a casa do esquecimento. / Diante de cada portão flutuante azuleia o teu músico decapitado. / Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo púbico; / Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia. / Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios. / Tu enches aqui as urnas e alimentas o teu coração.” (Tradução: João Barrento.)
A princípio, uma leitura comparada dos dois poetas pode causar espécie: enquanto o romeno é dramático, por vezes trágico, orientado por um demiurgo tanático, o português é epifânico, celebratório, animado pelo princípio de Eros (embora um Eros travesso, que não exclui a deformação e a crueldade). Celan está embebido de história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca, para depois cantar a morte / e a alegria da morte”).
No campo semântico, porém, é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica: noite, cegueira, loucura, sangue, morte 2. O uso da analogia e das imagens poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy 3) também é nítido, especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito, partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra” (Helder).
Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando, não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e obscuridade 4.
Essa filosofia compositiva utiliza o discurso para perturbar o discurso, valendo-se inclusive de recursos como a elipse e o fragmento, seguindo a estratégia de criar uma realidade própria na escritura: o poema não representa uma coisa, ele é esta coisa. As linhas funcionam como notações musicais, definidas pela intenção melódica e rítmica que organiza as palavras na página-partitura. Assim, por exemplo, no poema Joelhos, salsa, lábios, mapa (que evidencia, já no título, o recurso de aproximação das palavras sem um nexo lógico ou sintático aparente): “Abrindo no escuro, durante toda a neve, / os copos, os vestidos, os mapas. / E dentro de mim, rompendo peixes, / uma noite sensível cor de martelos. / Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse / martelo louco / nas borboletas. Então o meu cabelo / respirava — cabelo quente, telha / molhada. / Neve, borboleta, vírgula, estátua”. Esta organização semântica, em aparente desordem, sem dúvida nos faz lembrar a escrita automática dos surrealistas, em seu fascínio pelo imprevisto e pelo inverossímil; remete também a Dadá, a Lautréamont e aos simbolistas franceses, inclusive o último Mallarmé, que no prefácio do Lance de Dados reivindica uma estrutura poética similar à da música ouvida em concerto. Helder pertence à confraria dos autores excêntricos; assim como seus irmãos espirituais, ele se insurgiu contra o verso clássico, a retórica, a hegemonia da clareza e da objetividade, optando por uma imprecisão (ou abstração) voluntária.
A preferência pelo obscuro, hermético ou paradoxal aproxima o poeta português do romeno de língua alemã Paul Celan, autor de versos como estes: “Verde-bolor é a casa do esquecimento. / Diante de cada portão flutuante azuleia o teu músico decapitado. / Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo púbico; / Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia. / Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios. / Tu enches aqui as urnas e alimentas o teu coração.” (Tradução: João Barrento.)
A princípio, uma leitura comparada dos dois poetas pode causar espécie: enquanto o romeno é dramático, por vezes trágico, orientado por um demiurgo tanático, o português é epifânico, celebratório, animado pelo princípio de Eros (embora um Eros travesso, que não exclui a deformação e a crueldade). Celan está embebido de história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca, para depois cantar a morte / e a alegria da morte”).
No campo semântico, porém, é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica: noite, cegueira, loucura, sangue, morte 2. O uso da analogia e das imagens poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy 3) também é nítido, especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito, partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra” (Helder).
Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando, não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e obscuridade 4.
A experiência imagética 5 é mais evidente na lírica erótico-amorosa destes poetas, onde a mulher assume dimensão sobrenatural, ela é a origem da Criação, o Universo e cada uma de suas manifestações: “As coisas nascem de ti / como as luas nascem dos campos fecundos, / os instantes começam da tua oferenda / como as guitarras tiram seu início da música nocturna” (Helder); “Projecta a sua luz ao longe sobre o mar, / desperta as luas no estreito e ergue-as sobre mesas de espuma” (Celan, traduzido por João Barrento). Sem dúvida, essa hipérbole permite diferentes interpretações, de cunho teológico, metafísico ou psicanalítico; ficando apenas no campo poético, podemos dizer que essa idealização do feminino motiva o romeno e o português a uma visualidade radical, a uma estética do excessivo, da saturação simbólica, de um Eros que fecunda e multiplica os vocábulos, até a abstração (assim como ocorre nas passagens mais densas do Paraíso de Dante).
Na seara tanática, outra obsessão de ambos, há um corte radical: em Helder, a morte é um acontecimento simbólico; em Celan, um espectro que ronda sua carne, que ameaça seu povo de extinção (um registro exemplar é o conhecido poema Fuga da Morte: “... a morte é um mestre que veio da Alemanha / arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus”, na versão de Barrento). Para evocar o genocídio, promovido pela mãe de seu idioma, Celan assume um tom mais sombrio, incorporando à sua voz outras vozes, de poetas que também passaram pelo flagelo da guerra, como Georg Trakl. Não por acaso, há nesse poema um diálogo intertextual com o poeta austríaco, vítima de consumo excessivo de entorpecentes, após presenciar os horrores de Grodek: “Na casa vive um homem que brinca com serpentes” (Celan); “Na sua cova o mago branco brinca com suas cobras” (Trakl, no poema Salmo, aqui traduzido por Paulo Quintela). Nesta peça, Madame La Mort é uma visitante da história, que traz consigo a cultura que produziu Goethe e Auschwitz.
Celan, embora estrangeiro (sendo romeno, judeu e exilado em Paris), é um herdeiro desse território simbólico e cultural, não apenas pelo idioma como pelo diálogo com a tradição da literatura alemã. Helder, que também é um estrangeiro em seu isolamento voluntário, cria para si uma tradição, escolhe a sua origem, incorporando à língua materna referências de outros âmbitos culturais. Sob essa mirada, Helder encontra-se mais próximo de Sá-Carneiro (outro étranger espiritual) do que de Fernando Pessoa, que em Mensagem intentou uma fabulação mítico-poética de Portugal, com a utopia visionária de um Quinto Império, que sucederia os anteriores (“Grécia, Roma, Europa, Cristandade...”). Em Celan, há o desespero da história; em Helder, a refundação da história, por meio da escritura 6.
NOTAS
1. O conceito de lógica da metamorfose foi aplicado por Claudio Willer em seu estudo introdutório às Obras Completas de Lautréamont (ed. Iluminuras, 2a. edição, 2005).
2. É possível rastrear um repertório comum que nutriu os dois poetas, que incluiria Baudeleire, Rimbaud e Michaux, por exemplo (e convém recordar o fato de Celan ter traduzido os dois últimos, além de dedicar um poema a Éluard).
3. Reverdy entendia a imagem poética como a aproximação de realidades diferentes, ecoando o conhecido adágio de Lautréamont sobre o “encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”.
4. Assim, por exemplo, no poema Flor (do volume Grelha de Linguagem): “Flor — uma palavra de cegos. / Os teus olhos e os meus olhos: / vão em busca / de água. / (...) Uma palavra ainda, como esta, e os martelos / rodopiam ao ar livre” (tradução: João Barrento). Esse nível de concentração é menos usual no autor português, embora haja paralelos possíveis, por exemplo, neste fragmento de Poemacto: “Um movimento. / Cadeira congeminando-se na bacia, / feita o sentar-se. / Ou flores bebendo a jarra. / O silêncio estrutural das flores. / E a mesa por baixo. / A sonhar.”
5. É interessante observar o progressivo abandono da figuração nos poemas finais de Celan, onde a imagem poética, antes sua pedra-de-toque, é colocada em segundo plano, enquanto a síntese verbal e a estética do fragmento avultam como elementos básicos do fazer poético (enquanto Helder, ao contrário, avança em poemas de amplo fôlego, beirando a prosa e certo barroquismo).
6. Esse tema foi abordado no ensaio Herberto Helder, a razão da loucura, de Contador Borges, publicado na revista eletrônica Zunái. // -->
BIBLIOGRAFIA :
CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1993.
CELAN, Paul. A Morte é uma Flor (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1997.
HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.
LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.
RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno e Iluminações (trad. Ledo Ivo). Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1982.
TRAKL, Georg. Poemas (trad. Paulo Quintela). Porto: Ed. O Oiro do Dia, 1981.
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