quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O VENTO FEDE DE LUZ

O poeta angolano Abreu Paxe é um dos autores contemporâneos que leio com mais interesse, ao lado do argentino Reynaldo Jiménez, do uruguaio Victor Sosa, do cubano José Kozer, do português Herberto Helder e do francês Jean-Paul Michel, para citar poucos nomes. São poetas que me surpreendem pela estranheza, pela capacidade de transformar as palavras em partituras, em pinturas vivas, que não reproduzem o mundo (ou um determinado conceito do que é o mundo), mas que criam novas realidades pelo fato estético. Paxe, que esteve duas vezes no Brasil e participou de um evento organizado por mim, chamado Kantoluanda, publicou dois livros de poesia: A chave no repouso da porta e O vento fede de luz. São livros diferentes de qualquer outro que já li. Ele parece criar outro idioma, que é semelhante ao português, mas que tem outra lógica de organização e de criação de significados. Sobre a poesia de Paxe, há um ensaio bem interessante de Francisco Soares, intitulado Abreu Paxe: calígrafo, que pode ser lido no link de Ensaios da Zunái. Em certo ponto do texto, Soares escreve:

“Este segundo livro, segundo a nota do autor no final, reúne muitos poemas anteriores ao primeiro. Há de facto uma diferença entre eles: é a de que os processos e as estruturas referidos estão mais acentuados em A chave no repouso da porta do que em O vento fede de luz. Mas em ambos persistem metáforas de longa distância, de recuperação tensa e difícil, de sabor denso e demorado. Sintaxes surpreendentes, que se destinam a desconcertar o leitor para o levar a novas percepções da própria língua e da própria linguagem. Imagens poderosas que nos religam à nossa mais funda consciência, fragmentariamente como em todos os poemas líricos. Há esse desafio constante ao leitor sustentando a beleza acima das cegueiras, das velhas sombras de espasmos. Vindo assim de uma linhagem de vanguarda e experimental, no entanto estas práticas aglutinaram-se com as tradicionais, reavivaram a virtualidade de jogos e estruturas tradicionais ou da oralidade angolana. Como também não deixam de respirar um ambiente em vários aspectos irrespirável que traz ao poema tantas vezes a sugestão de sufoco e vazio que denuncia activamente o pior dos nossos dias”. Leiam agora alguns poemas de Paxe:

asuen aryan, a valsa

tatuada: esferas semânticas apenas
lentos idiomas,
trocados espaços o tempo das coisas
o mundo todo nesta cidade
assim na poltrona a sentinela outro texto
impaciente molda a função
vertical o espelho, colchões na estrutura
pétalas, gaivotas, mútua tipóia
ninho molhada alvorada

neste deserto

fúnebres sóis animados esteios o canto
numa pátria meu corpo
imortal zona a penugem negra
maravilha-se madura neste deserto de travessia antiga

concreta cegueira
escorrem os túneis e fica sob sua sombra e em seda
o oeste dos ventos nestes três dias
os frutos já magoavam a porta amadurecida no fundo
de nós concretiza-se enfim esta cegueira velha sombra de espasmos

qual seria canção

nas tardes da alma
vão caindo equinócios
talvez fria sinfonia penetre na brasa
descalçando metáforas na foz
inclinadas à noite
qual seria canção

(Do livro O vento fede de luz. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007)

Um comentário:

  1. Em tempo: no Brasil, saíram poemas de Abreu Paxe na Zunái, em Cronópios e na antologia Ovi-Sungo, Treze Poetas de Angola, que publiquei em 2007 pela Lumme Editor. Há uma entrevista com ele na Zunái.

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