quinta-feira, 23 de julho de 2009

MINHA ESTANTE

Caros, estou relendo Guimarães Rosa: Magma, Sagarana, Tutaméia, Primeiras estórias e agora o Grande Sertão: Veredas. De todos os prosadores brasileiros que li até hoje, nenhum me impressionou mais que o velho Rosa. Li o Grande Sertão pela primeira vez aos 17 anos, e não cansei de reler esse romance maravilhoso nas últimas três décadas. É o maior poema épico de nossa literatura, o equivalente, talvez, à Chanson de Roland e ao Cantar de Mio Cid, e, nos campos linguístico, simbólico e metafísico, só encontra paralelos no Fausto de Goethe e no Ulisses de Joyce. Como pequena homenagem a esse feiticeiro que viu o diabo na rua, no meio do redemunho, escrevi o poema em prosa abaixo, todo ele construído com frases roubadas de vários contos do autor de A terceira margem do rio:

CARTA DE NENHUM LADO

e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto. senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. eu não tinha arma ao alcance. tivesse, também, não adiantava. com um pingo no i, ele me dissolvia. assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. sua casa ficava para trás da serra do mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o temor-de-deus. ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de um bicho.nenhuns olhos têm fundo; a vida, também não. dava-se de entre vinte-e-muitos e trinta anos; devia ter bem menos, portanto. miúdo, moído. mas concreto como uma anta. sofria como podia, nem podia mais desespero. o arrepio negro das árvores. o mundo entre as estrelas e os grilos. semiluz: sós estrelas. o assombrável! inútil resistir, inútil fugir, inútil tudo. se e se? a gente ia ver, à espera. com os soturnos pesos nos corações; um certo espalhado susto, pelo menos. eram horas precárias. sou homem de tristes palavras. eu já sofria o começo da velhice — esta vida era só o desmoronamento. e ele? por quê? devia de padecer demais. distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos — reflexos, relâmpagos, lampejos — pesados em obscuridade. tenho de me recuperar, desdeslembrar-me, excogitar — que sei? das camadas angustiosas do olvido. como vivi e mudei, o passado mudou também. alguém, antes de morrer, ainda se lembrava de que não se lembrava. então, o fato se dissolve. as lembranças são outras distâncias. eram coisas que paravam já à beira de um grande sono. flor, limite de transformação. linda já de outra espécie. só fiz que fui lá. com um lenço, para o aceno ser mais. eu estava muito mais no meu sentido. ao por fim ele apareceu, aí e lá, o vulto. estava ali, de grito. chamei umas quantas vezes. trevava. ele me escutou. ficou em pé. por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. e estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. nessa água, que não pára, de longas beiras; e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

(Texto apócrifo construído a partir da colagem de frases do livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa.)

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