A POESIA COMO UM APRENDIZADO DE
ESMERALDAS VIVAS
Adriana Zapparoli é uma autora que se destaca no cenário da
nova poesia brasileira por sua capacidade imaginativa, que incorpora
referências mitológicas de diferentes culturas do Ocidente e do Oriente, uma
variedade de plantas, insetos e feras reais ou inventadas, nomes científicos
extraídos do vocabulário biológico e formas inusitadas de representação do amor
erótico e das relações interpessoais. Sua mitologia pessoal é desenvolvida em formas poéticas
híbridas, com destaque para o poema em prosa, gênero literário criado no século
XIX pelo francês Charles Baudelaire que dilui as balizas tradicionais entre
verso e narrativa ficcional. A palavra híbrido,
como se sabe, deriva do grego hybris,
que significa orgulho, excesso, desmedida, violação das leis naturais (no caso
de seres resultantes do cruzamento de indivíduos de espécies diferentes). A
escrita híbrida, assim como acontece na biologia, é uma forma de transgressão,
de superação de limites, normas, probabilidades, sem temor ao sacrilégio, ao
monstruoso ou ao sublime. Em A
flor-da-Abissínia (2008),
primeiro título impresso da autora, na forma de plaquete (publicação de poucas
páginas, de produção artesanal ou gráfica, geralmente com elaborado projeto de
arte), somos surpreendidos pelo diálogo vocabular entre os textos escritos
originalmente em português e as traduções para o espanhol realizadas por Jair
Cortés e Berenice Huerta, bem como pelo diálogo visual dos poemas com o projeto
de arte e a ilustração de Francisco dos Santos, que valorizam a plaquete como
um objeto estético. Compõem o volume seis poemas breves, escritos ao longo de
sete dias, na forma de um diário íntimo, em que as sensações eróticas são
descritas em delicadas sinestesias e inusitadas associações de termos: “uma
flor no inferno / levemente molhado. / a sua parte mais fina, em límpida
essência turmalina...”, ou ainda com o brutalismo do “falo eletrocutado” e da
“sesha em corrente lunar” (Sesha é o nome do deus-serpente indiano que serve de
leito a Vishnu, o criador e sustentador dos mundos). Referências indianas
aparecem ainda nos poemas mêntula e yoni,
sendo essa última palavra o termo sânscrito que designa a vulva. Cocatriz, publicada no mesmo
ano que A flor-da-Abissínia,
é um monólogo lírico que explora a dimensão musical das palavras, utilizando
recursos como a aplicação de cores, fontes, itálicos, negritos para registrar
sutilezas sonoras e mudanças de timbre, como em uma partitura musical. A
estrutura melódica e visual do poema define uma sintaxe própria, em que as
linhas funcionam como frases de um bizarro recitativo cantado em concerto: “...
unha do polvo-gestante / de colmo de fruta, açafrão-de-outono e coleção de zamu de / um mundo impiedoso, a pleura
vista por dentro / e pelo entorno, escarra-ouro; não... ainda que se sin- / ta
náusea logo na curva entre pérola e safira”. A estranheza semântica da poesia
de Adriana Zapparoli, sua voluntária dissonância, que pode chocar leitores
habituados à lírica tradicional de uma Cecília Meireles, encontra poucos
paralelos na literatura brasileira; podemos pensar em Sousândrade, Kilkerry,
Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, seus antepassados espirituais.
Fábulas líricas
Violeta de Sofia, a
terceira plaquete de Adriana Zapparoli, publicada em 2009, é uma narrativa
poética dividida em oito partes, em que a autora fabula o desencontro amoroso
de dois personagens, Sofia e Angel-blue: contrariando o horizonte de
expectativas do leitor, não há aqui os elementos tradicionais que compõem uma
trama ficcional, como a delimitação de tempo, espaço e peripécias; toda a
“ação” do poema se resume a descrições metafóricas de um universo de sensações
corporais e oníricas: “... em peito de roda- / moinho, cata-vento enguia, spathula, / em declínio, em pé espadrille, omoplata / de
fruta, de cana-de-açúcar”. A linguagem densa e hermética da autora, presente em
quase todas as suas plaquetes (às quais devemos acrescentar Tílias e tulipas, de 2010, e Lontra corola libido, de 2012)
logo tornou-se um aparente beco sem saída: como prosseguir a escrita criativa
sem cair na repetição de suas primeiras conquistas? A resposta a esse difícil
desafio foi Flor de lírio, sua plaquete mais recente, publicada
em 2012, em que a poeta adota um novo vocabulário, incorporando a gíria e o
palavrão, em formas poéticas mais concisas, próximas ao minimalismo, sem evitar
metáforas como “corvo apodrecido”, “peras adolescentes”, “luciferino em
vômito”, “peixes-pênis” e “nocaute relâmpago”. As metáforas relacionadas com a
anatomia estão mais presentes nessa coleção de poemas, em que nos deparamos com
“fístula / cílio e pecíolo / púbis...”, “entre falanges pontiagudas, a tíbia e
a patela”, “vagina suas luzes / de couro” e “o canto da costela, / de uma
epiderme que nunca sossega”. As cinco plaquetes de poemas de Adriana Zapparoli
podem ser entendidas como cadernos de íntimas obsessões, em que a autora,
seguindo o conselho de Vicente Huidobro, intentou criar o seu território
poético, com fauna e flora próprias. O fruto mais maduro de sua literatura, no
entanto, é o livro O leão de
Nemeia, publicado em 2011 na coleção Caixa Preta, da Lumme Editor. Neste
livro, vamos encontrar poemas em prosa admiráveis, em que a poeta, baseada na
lógica da metamorfose, cria uma série um bestas fantasiosas, que recordam os
delírios da teratologia de Lautréamont, como o “escorpião de olhos tangerina”,
o “leopardo rubi”, a andarilha de “olhos lagartos”, uma quimera com “cabeça de
leão / em corpo de cabra / e cauda ofídica”. O erotismo, já manifesto em seus
primeiros títulos, ganha aqui contornos ainda mais expressivos: “d’Ele sentia o
movimento sinuoso do corpo. continha. aquela uma lontrafagia poética de
peixe-anfíbio, reptílica ave em ética lírica. seus sistemas de galerias, suas
entradas de zonas rochosas, suas entranhas, umas subaquáticas e outras ao nível
do solo”. A riqueza imaginativa e semântica da poesia de Adriana Zapparoli
situa a autora entre as vozes mais inventivas que surgiram na poesia brasileira
nos últimos anos.
(Artigo publicado na edição de
outubro/2013 da revista CULT, na coluna Retrato do Artista)
Obrigada!
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