quarta-feira, 9 de outubro de 2013

RETRATO DO ARTISTA




A POESIA COMO UM APRENDIZADO DE ESMERALDAS VIVAS

Adriana Zapparoli é uma autora que se destaca no cenário da nova poesia brasileira por sua capacidade imaginativa, que incorpora referências mitológicas de diferentes culturas do Ocidente e do Oriente, uma variedade de plantas, insetos e feras reais ou inventadas, nomes científicos extraídos do vocabulário biológico e formas inusitadas de representação do amor erótico e das relações interpessoais. Sua mitologia pessoal é desenvolvida em formas poéticas híbridas, com destaque para o poema em prosa, gênero literário criado no século XIX pelo francês Charles Baudelaire que dilui as balizas tradicionais entre verso e narrativa ficcional. A palavra híbrido, como se sabe, deriva do grego hybris, que significa orgulho, excesso, desmedida, violação das leis naturais (no caso de seres resultantes do cruzamento de indivíduos de espécies diferentes). A escrita híbrida, assim como acontece na biologia, é uma forma de transgressão, de superação de limites, normas, probabilidades, sem temor ao sacrilégio, ao monstruoso ou ao sublime. Em A flor-da-Abissínia (2008), primeiro título impresso da autora, na forma de plaquete (publicação de poucas páginas, de produção artesanal ou gráfica, geralmente com elaborado projeto de arte), somos surpreendidos pelo diálogo vocabular entre os textos escritos originalmente em português e as traduções para o espanhol realizadas por Jair Cortés e Berenice Huerta, bem como pelo diálogo visual dos poemas com o projeto de arte e a ilustração de Francisco dos Santos, que valorizam a plaquete como um objeto estético. Compõem o volume seis poemas breves, escritos ao longo de sete dias, na forma de um diário íntimo, em que as sensações eróticas são descritas em delicadas sinestesias e inusitadas associações de termos: “uma flor no inferno / levemente molhado. / a sua parte mais fina, em límpida essência turmalina...”, ou ainda com o brutalismo do “falo eletrocutado” e da “sesha em corrente lunar” (Sesha é o nome do deus-serpente indiano que serve de leito a Vishnu, o criador e sustentador dos mundos). Referências indianas aparecem ainda nos poemas mêntula e yoni, sendo essa última palavra o termo sânscrito que designa a vulva. Cocatriz, publicada no mesmo ano que A flor-da-Abissínia, é um monólogo lírico que explora a dimensão musical das palavras, utilizando recursos como a aplicação de cores, fontes, itálicos, negritos para registrar sutilezas sonoras e mudanças de timbre, como em uma partitura musical. A estrutura melódica e visual do poema define uma sintaxe própria, em que as linhas funcionam como frases de um bizarro recitativo cantado em concerto: “... unha do polvo-gestante / de colmo de fruta, açafrão-de-outono e coleção de zamu de / um mundo impiedoso, a pleura vista por dentro / e pelo entorno, escarra-ouro; não... ainda que se sin- / ta náusea logo na curva entre pérola e safira”. A estranheza semântica da poesia de Adriana Zapparoli, sua voluntária dissonância, que pode chocar leitores habituados à lírica tradicional de uma Cecília Meireles, encontra poucos paralelos na literatura brasileira; podemos pensar em Sousândrade, Kilkerry, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, seus antepassados espirituais.

Fábulas líricas

Violeta de Sofia, a terceira plaquete de Adriana Zapparoli, publicada em 2009, é uma narrativa poética dividida em oito partes, em que a autora fabula o desencontro amoroso de dois personagens, Sofia e Angel-blue: contrariando o horizonte de expectativas do leitor, não há aqui os elementos tradicionais que compõem uma trama ficcional, como a delimitação de tempo, espaço e peripécias; toda a “ação” do poema se resume a descrições metafóricas de um universo de sensações corporais e oníricas: “... em peito de roda- / moinho, cata-vento enguia, spathula, / em declínio, em pé espadrille, omoplata / de fruta, de cana-de-açúcar”. A linguagem densa e hermética da autora, presente em quase todas as suas plaquetes (às quais devemos acrescentar Tílias e tulipas, de 2010, e Lontra corola libido, de 2012) logo tornou-se um aparente beco sem saída: como prosseguir a escrita criativa sem cair na repetição de suas primeiras conquistas? A resposta a esse difícil desafio foi Flor de lírio, sua plaquete mais recente, publicada em 2012, em que a poeta adota um novo vocabulário, incorporando a gíria e o palavrão, em formas poéticas mais concisas, próximas ao minimalismo, sem evitar metáforas como “corvo apodrecido”, “peras adolescentes”, “luciferino em vômito”, “peixes-pênis” e “nocaute relâmpago”. As metáforas relacionadas com a anatomia estão mais presentes nessa coleção de poemas, em que nos deparamos com “fístula / cílio e pecíolo / púbis...”, “entre falanges pontiagudas, a tíbia e a patela”, “vagina suas luzes / de couro” e “o canto da costela, / de uma epiderme que nunca sossega”. As cinco plaquetes de poemas de Adriana Zapparoli podem ser entendidas como cadernos de íntimas obsessões, em que a autora, seguindo o conselho de Vicente Huidobro, intentou criar o seu território poético, com fauna e flora próprias. O fruto mais maduro de sua literatura, no entanto, é o livro O leão de Nemeia, publicado em 2011 na coleção Caixa Preta, da Lumme Editor. Neste livro, vamos encontrar poemas em prosa admiráveis, em que a poeta, baseada na lógica da metamorfose, cria uma série um bestas fantasiosas, que recordam os delírios da teratologia de Lautréamont, como o “escorpião de olhos tangerina”, o “leopardo rubi”, a andarilha de “olhos lagartos”, uma quimera com “cabeça de leão / em corpo de cabra / e cauda ofídica”. O erotismo, já manifesto em seus primeiros títulos, ganha aqui contornos ainda mais expressivos: “d’Ele sentia o movimento sinuoso do corpo. continha. aquela uma lontrafagia poética de peixe-anfíbio, reptílica ave em ética lírica. seus sistemas de galerias, suas entradas de zonas rochosas, suas entranhas, umas subaquáticas e outras ao nível do solo”. A riqueza imaginativa e semântica da poesia de Adriana Zapparoli situa a autora entre as vozes mais inventivas que surgiram na poesia brasileira nos últimos anos.

(Artigo publicado na edição de outubro/2013 da revista CULT, na coluna Retrato do Artista)


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