quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (II): CLARICE LISPECTOR



Clarice Lispector é autora de contos e romances de temática existencial e psicológica, em que o centro narrativo está na investigação do mundo interior das personagens, e em especial o das figuras femininas, com poucas ações exteriores e enredo reduzido ao mínimo. É uma obra em que as noções convencionais de tempo, espaço e movimento dramático, essenciais a uma estética de cunho realista, como a praticada por autores da década de 1930, como Jorge Amado, Rachel de Queiroz ou José Lins do Rego, cedem vez a um outro tipo de discurso, construído com base nas sensações, memórias e pensamentos do personagem, articulados numa prosa densa, elaborada, que se aproxima da linguagem poética, pelo uso que faz da metáfora, da sinestesia e de toda sorte de recursos imagéticos e sonoros. A autora não se preocupa apenas com os significados, mas também com os significantes, ou seja, com o valor artístico das palavras. A originalidade de Clarice Lispector foi registrada por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, onde ele a coloca ao lado de Guimarães Rosa como os principais renovadores de nossa prosa narrativa. É preciso apontar também a dimensão filosófica da obra da escritora, que se apresenta na tensão entre a liberdade de escolha das personagens e as convenções morais ou sociais estabelecidas, bem como os conflitos entre imaginação e realidade, indivíduo e mundo. Nesse aspecto, é possível aproximá-la de pensadores como o francês Jean-Paul Sartre, que investigou a natureza da existência humana como um resultado de nossas escolhas e ações.

Todos esses elementos conceituais e estéticos já estão presentes no livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, publicado em 1944, que recebeu na época comentários elogiosos de críticos como Antonio Candido e Álvaro Lins, que saudaram a renovação trazida pela autora a nossas letras. Em seu artigo No raiar de Clarice Lispector, publicado no mesmo ano que o romance, Candido já se referia à “exploração vocabular” e à “aventura da expressão” da autora, capaz de “estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e inexprimíveis”[1]. Álvaro Lins, por sua vez, aponta nesse livro a influência de autores de língua inglesa do início do século XX, como Virgínia Woolf e James Joyce, em especial pelo uso do monólogo interior (discurso da personagem na primeira pessoa, em que ela faz um mergulho introspectivo em direção a seus sentimentos, idéias ou experiências vividas. Ao contrário do monólogo exterior, este não é pronunciado, como se o personagem conversasse consigo mesmo). Com efeito, o título do livro é uma frase do romance Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, que também assina a epígrafe da obra. No entanto, segundo a própria autora, na época em que escreveu o livro, ela não conhecia a obra do escritor irlandês, aceitando o título e a epígrafe como sugestões apresentadas por Lúcio Cardoso, que leu os originais do romance antes da publicação. Ainda que não tenha ocorrido influência direta, são nítidas as afinidades estilísticas entre Clarice Lispector e James Joyce, não apenas no campo semântico mas também na quebra da linearidade fabulatória do tipo início-meio-fim pela fragmentação e descontinuidade da narrativa.  

Perto do Coração Selvagem é um romance urbano e psicológico, em contraste com a ficção regionalista e social dominante na época. O livro, dividido em duas partes, conta a história de Joana desde a sua infância até o início da vida adulta. Poucos fatos surgem ao longo dessa trajetória: a perda dos pais de Joana, sua adoção pela tia, o roubo de um livro pela menina, que provoca a sua transferência para um internato, o casamento com Otávio e a separação do marido, após descobrir seu adultério. A maneira como Clarice Lispector constrói e desenvolve sua ficção, porém, é diferente da fabulação tradicional, alternando o monólogo interior com a descrição de ocorrências da vida da personagem quando criança e adulta, inserindo o passado no presente e vice-versa, rompendo ainda com as fronteiras entre imaginação e realidade. Este tipo de narrativa, que não está centrada numa história linear, de feitio realista, causou estranheza inclusive a Álvaro Lins, que na época julgou a obra inacabada, opinião hoje não endossada pela crítica, que considera a fragmentação como uma das maneiras de se construir um relato. Alfredo Bosi faz um interessante paralelo entre a literatura de Clarice Lispector e o conceito de obra aberta do italiano Umberto Eco, que se aplica a obras literárias ou artísticas cuja estrutura formal permite múltiplas leituras e interpretações. A estrutura da obra aberta questiona a própria definição dos gêneros literários como categorias distintas, uma vez que o romance pode assimilar recursos da poesia, do ensaio ou do drama, por exemplo, em formas híbridas. A esse respeito, Alfredo Bosi fala numa “invenção mitopoética, que tende a romper com a entidade tipológica ‘romance’, superando-a no tecido da linguagem e da escritura, isto é, no nível da própria matéria da criação literária”. A prosa de Clarice Lispector, como a de Guimarães Rosa, na opinião desse crítico, “entendem renovar por dentro o ato de escrever ficção”, diferindo das linhas tradicionais da prosa romanesca na medida em que estas “situam o processo literário antes na transposição da realidade social e psíquica do que na construção de uma outra realidade”[2].

A criação de um mundo próprio pela linguagem, que não se limita a retratar os acontecimentos exteriores, é uma definição que pode ser aplicada a diversos romances posteriores da autora, e em especial A Paixão Segundo G. H. (1964), um longo monólogo em que a narradora faz um mergulho em si mesma, buscando entender a sua identidade, a sua relação com os outros, as razões para existir, amar, estar no mundo. Subitamente, ela resolve abrir o quarto da empregada, que se demitira, como se explorasse uma outra dimensão, diferente da sua, e ali se depara com uma barata, que provoca a sensação previsível de asco e medo. Contemplar o inseto, porém, torna-se um desafio para a narradora, que encontra ali a oportunidade de demonstrar uma atitude inesperada, corajosa, que simbolize uma mudança em sua vida: e ela come a barata, vencendo a repulsa. A Paixão Segundo G. H. é um livro em fluxo contínuo, sem divisão em capítulos, que começa com seis travessões seguidos de uma frase começada em letras minúsculas (“estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”) e termina de modo similar, com uma frase interrompida seguida de igual número de travessões, representando, na própria materialidade da escrita, o estado de espírito da personagem, o seu fluxo incessante de pensamentos e sensações, que não obedecem a uma lógica linear. Já em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Clarice Lispector narra em terceira pessoa a história de Loreley, professora primária que abandona a casa dos pais no interior fluminense e muda-se para o Rio de Janeiro, onde se envolve em várias relações amorosas frustradas até conhecer Ulisses, com quem terá um envolvimento mais profundo. Os nomes dos personagens deste romance não foram escolhidos por acaso: Loreley, no folclore germânico, é uma sereia que seduz os pescadores com seus cantos, e Ulisses, na mitologia grega, é o herói que após lutar na guerra de Tróia retorna a sua terra natal, Ítaca, e durante a viagem marítima pede aos marinheiros que o amarrem ao mastro do navio, para que ele possa resistir ao canto das sereias. O título da narrativa, por sua vez, remete à Educação Sentimental de Flaubert e outras obras romanescas do século XIX que tinham como tema o aprendizado do amor, suas penas, alegrias e artimanhas nos jogos de sedução.

Água Viva, publicado em 1973, é talvez o livro mais denso e enigmático de Clarice Lispector. O enredo do romance poderia ser resumido à história de uma pintora que inicia um quadro e resolve escrever para o antigo amante (numa conjunção entre a arte e o amor, dois temas básicos da autora). Porém, praticamente não há ações exteriores nesse monólogo fragmentário, elíptico, musical, quase abstrato, que se aproxima da linguagem do poema em prosa (“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica”). As referências simbólicas ao útero, à placenta, ao líquido amniótico, por sua vez, permitem uma leitura de ordem psicanalítica, que tem orientado alguns dos estudos sobre a obra de Clarice Lispector. A Hora da Estrela (1977), último livro que publicou em vida, parece o romance mais singular na obra da autora, exatamente por se afastar das características que manteve ao longo de quase todo o seu trabalho criativo. O romance, que foi adaptado para o cinema por Suzana Amaral, conta a saga de Macabéa, datilógrafa nascida em Alagoas que migra para o Rio de Janeiro, onde conhece Olímpico de Jesus, também nordestino, com quem vive uma relação amorosa decepcionante. Após consultar-se com uma vidente, que prevê um futuro feliz para Macabéia, ela morre num acidente, atropelada por um luxuoso Mercedez-Bens, símbolo da ostentação da prosperidade material. Em contraste com os seus romances anteriores, em que a dimensão individual se sobrepõe à social, A Hora da Estrela retrata a pobreza e a marginalização das classes populares num cenário urbano, mantendo porém o trabalho artístico com a linguagem.

Clarice Lispector também é notável contista, tendo publicado oito livros com histórias curtas, em que se destacam Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964) e Felicidade Clandestina (1971). A autora explora a ironia e o humor negro, mostrando o absurdo do cotidiano e das relações humanas, como no conto intitulado Uma Galinha (incluída em Laços de Família), em que os sentimentos de compaixão e solidariedade de uma criança pelas aves domésticas logo se transformam em seus opostos, a indiferença e crueldade (alegoria que pode ser estendida ao campo social, tanto na esfera política quanto na familiar ou na do ambiente de trabalho). A arte narrativa de Clarice Lispector, especialmente nas histórias curtas, adota por vezes recursos da fantasia e da fábula, que não obedecem às normas da verossimilhança (ou seja, o retrato realista de pessoas, cenários e situações), como acontece no conto A Menor Mulher do Mundo (também de Laços de Família), que conta as aventuras de uma pigméia do Congo Central que media apenas 45 centímetros. Descoberta pelo explorador francês Marcel Pretre, ela é batizada de Pequena Flor e levada para a Europa, onde causa perplexidade pela sua diferença radical em relação aos padrões biológicos e culturais do chamado mundo civilizado. Esta é também uma abordagem irônica do tema tradicional do amor impossível, uma vez que a relação entre a pigméia e o explorador europeu é irrealizável. Em A Legião Estrangeira (1964), Clarice Lispector reúne contos e crônicas que depois seriam republicados, com acréscimos, no livro Felicidade Clandestina (1971). Os temas básicos da autora, como a solidão, a busca da verdade, o amor, a angústia, estão presentes aqui, ao lado de outros, como o da velhice. No conto Viagem a Petrópolis, por exemplo, a personagem Margarida não tem consciência de sua situação de abandono, que irá descobrir, de forma cruel, ao longo da narrativa. A obra de Clarice Lispector, por sua riqueza estética e referencial, é uma das mais importantes realizações da literatura brasileira do século XX. 



[1] In Campos, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004, 184.

[2] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976, 442.

Um comentário:

  1. Muitíssimo significativo ler alguém destacando com tanta propriedade do teor filosófico na obra da Lispector. ;)

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