Clarice
Lispector é autora de contos e romances de temática existencial e psicológica,
em que o centro narrativo está na investigação do mundo interior das
personagens, e em especial o das figuras femininas, com poucas ações exteriores
e enredo reduzido ao mínimo. É uma obra em que as noções convencionais de
tempo, espaço e movimento dramático, essenciais a uma estética de cunho
realista, como a praticada por autores da década de 1930, como Jorge Amado, Rachel
de Queiroz ou José Lins do Rego, cedem vez a um outro tipo de discurso,
construído com base nas sensações, memórias e pensamentos do personagem,
articulados numa prosa densa, elaborada, que se aproxima da linguagem poética,
pelo uso que faz da metáfora, da sinestesia e de toda sorte de recursos imagéticos
e sonoros. A autora não se preocupa apenas com os significados, mas também com
os significantes, ou seja, com o valor artístico das palavras. A originalidade
de Clarice Lispector foi registrada por Alfredo Bosi em sua História
Concisa da
Literatura Brasileira, onde ele a coloca ao lado de Guimarães Rosa como os
principais renovadores de nossa prosa narrativa. É preciso apontar também a
dimensão filosófica da obra da escritora, que se apresenta na tensão entre a
liberdade de escolha das personagens e as convenções morais ou sociais
estabelecidas, bem como os conflitos entre imaginação e realidade, indivíduo e
mundo. Nesse aspecto, é possível aproximá-la de pensadores como o francês
Jean-Paul Sartre, que investigou a natureza da existência humana como um resultado
de nossas escolhas e ações.
Todos
esses elementos conceituais e estéticos já estão presentes no livro de estreia
de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, publicado em 1944,
que recebeu na época comentários elogiosos de críticos como Antonio Candido e Álvaro
Lins, que saudaram a renovação trazida pela autora a nossas letras. Em seu
artigo No raiar de Clarice Lispector,
publicado no mesmo ano que o romance, Candido já se referia à “exploração
vocabular” e à “aventura da expressão” da autora, capaz de “estender o domínio
da palavra sobre regiões mais complexas e inexprimíveis”[1].
Álvaro Lins, por sua vez, aponta nesse livro a influência de autores de língua
inglesa do início do século XX, como Virgínia Woolf e James Joyce, em especial
pelo uso do monólogo interior (discurso da personagem na primeira pessoa, em
que ela faz um mergulho introspectivo em direção a seus sentimentos, idéias ou
experiências vividas. Ao contrário do monólogo exterior, este não é
pronunciado, como se o personagem conversasse consigo mesmo). Com efeito, o
título do livro é uma frase do romance Retrato
do Artista Quando Jovem, de Joyce, que também assina a epígrafe da obra. No
entanto, segundo a própria autora, na época em que escreveu o livro, ela não
conhecia a obra do escritor irlandês, aceitando o título e a epígrafe como
sugestões apresentadas por Lúcio Cardoso, que leu os originais do romance antes
da publicação. Ainda que não tenha ocorrido influência direta, são nítidas as
afinidades estilísticas entre Clarice Lispector e James Joyce, não apenas no
campo semântico mas também na quebra da linearidade fabulatória do tipo
início-meio-fim pela fragmentação e descontinuidade da narrativa.
Perto do Coração Selvagem é um romance
urbano e psicológico, em contraste com a ficção regionalista e social dominante
na época. O livro, dividido em duas partes, conta a história de Joana desde a
sua infância até o início da vida adulta. Poucos fatos surgem ao longo dessa
trajetória: a perda dos pais de Joana, sua adoção pela tia, o roubo de um livro
pela menina, que provoca a sua transferência para um internato, o casamento com
Otávio e a separação do marido, após descobrir seu adultério. A maneira como
Clarice Lispector constrói e desenvolve sua ficção, porém, é diferente da fabulação
tradicional, alternando o monólogo interior com a descrição de ocorrências da
vida da personagem quando criança e adulta, inserindo o passado no presente e
vice-versa, rompendo ainda com as fronteiras entre imaginação e realidade. Este
tipo de narrativa, que não está centrada numa história linear, de feitio
realista, causou estranheza inclusive a Álvaro Lins, que na época julgou a obra
inacabada, opinião hoje não endossada pela crítica, que considera a
fragmentação como uma das maneiras de se construir um relato. Alfredo Bosi faz
um interessante paralelo entre a literatura de Clarice Lispector e o conceito
de obra aberta do italiano Umberto Eco, que se aplica a obras literárias ou
artísticas cuja estrutura formal permite múltiplas leituras e interpretações. A
estrutura da obra aberta questiona a própria definição dos gêneros literários
como categorias distintas, uma vez que o romance pode assimilar recursos da
poesia, do ensaio ou do drama, por exemplo, em formas híbridas. A esse
respeito, Alfredo Bosi fala numa “invenção mitopoética, que tende a romper com
a entidade tipológica ‘romance’, superando-a no tecido da linguagem e da
escritura, isto é, no nível da própria matéria da criação literária”. A prosa
de Clarice Lispector, como a de Guimarães Rosa, na opinião desse crítico,
“entendem renovar por dentro o ato de escrever ficção”, diferindo das linhas
tradicionais da prosa romanesca na medida em que estas “situam o processo
literário antes na transposição da realidade social e psíquica do que na construção de uma outra realidade”[2].
A
criação de um mundo próprio pela linguagem, que não se limita a retratar os
acontecimentos exteriores, é uma definição que pode ser aplicada a diversos
romances posteriores da autora, e em especial A Paixão Segundo
G. H. (1964), um longo monólogo em que a narradora faz um mergulho em si
mesma, buscando entender a sua identidade, a sua relação com os outros, as
razões para existir, amar, estar no mundo. Subitamente, ela resolve abrir o
quarto da empregada, que se demitira, como se explorasse uma outra dimensão,
diferente da sua, e ali se depara com uma barata, que provoca a sensação
previsível de asco e medo. Contemplar o inseto, porém, torna-se um desafio para
a narradora, que encontra ali a oportunidade de demonstrar uma atitude
inesperada, corajosa, que simbolize uma mudança em sua vida: e ela come a
barata, vencendo a repulsa. A Paixão
Segundo G. H. é um livro em fluxo contínuo, sem divisão em capítulos, que
começa com seis travessões seguidos de uma frase começada em letras minúsculas
(“estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”) e termina de
modo similar, com uma frase interrompida seguida de igual número de travessões,
representando, na própria materialidade da escrita, o estado de espírito da
personagem, o seu fluxo incessante de pensamentos e sensações, que não obedecem
a uma lógica linear. Já em
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Clarice
Lispector narra em terceira pessoa a história de Loreley, professora primária
que abandona a casa dos pais no interior fluminense e muda-se para o Rio de
Janeiro, onde se envolve em várias relações amorosas frustradas até conhecer
Ulisses, com quem terá um envolvimento mais profundo. Os nomes dos personagens
deste romance não foram escolhidos por acaso: Loreley, no folclore germânico, é
uma sereia que seduz os pescadores com seus cantos, e Ulisses, na mitologia
grega, é o herói que após lutar na guerra de Tróia retorna a sua terra natal,
Ítaca, e durante a viagem marítima pede aos marinheiros que o amarrem ao mastro
do navio, para que ele possa resistir ao canto das sereias. O título da
narrativa, por sua vez, remete à Educação
Sentimental de Flaubert e outras obras romanescas do século XIX que tinham
como tema o aprendizado do amor, suas penas, alegrias e artimanhas nos jogos de
sedução.
Água Viva, publicado em 1973, é talvez o
livro mais denso e enigmático de Clarice Lispector. O enredo do romance poderia
ser resumido à história de uma pintora que inicia um quadro e resolve escrever
para o antigo amante (numa conjunção entre a arte e o amor, dois temas básicos
da autora). Porém, praticamente não há ações exteriores nesse monólogo
fragmentário, elíptico, musical, quase abstrato, que se aproxima da linguagem
do poema em prosa (“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia,
grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de
separação mas é grito de felicidade diabólica”). As referências simbólicas ao
útero, à placenta, ao líquido amniótico, por sua vez, permitem uma leitura de ordem
psicanalítica, que tem orientado alguns dos estudos sobre a obra de Clarice
Lispector. A Hora da Estrela (1977),
último livro que publicou em vida, parece o romance mais singular na obra da
autora, exatamente por se afastar das características que manteve ao longo de
quase todo o seu trabalho criativo. O romance, que foi adaptado para o cinema
por Suzana Amaral, conta a saga de Macabéa, datilógrafa nascida em Alagoas que
migra para o Rio de Janeiro, onde conhece Olímpico de Jesus, também nordestino,
com quem vive uma relação amorosa decepcionante. Após consultar-se com uma vidente,
que prevê um futuro feliz para Macabéia, ela morre num acidente, atropelada por
um luxuoso Mercedez-Bens, símbolo da ostentação da prosperidade material. Em
contraste com os seus romances anteriores, em que a dimensão individual se
sobrepõe à social, A Hora da Estrela
retrata a pobreza e a marginalização das classes populares num cenário urbano,
mantendo porém o trabalho artístico com a linguagem.
Clarice
Lispector também é notável contista, tendo publicado oito livros com histórias
curtas, em que se destacam Laços de Família
(1960), A Legião Estrangeira (1964) e
Felicidade Clandestina (1971). A autora explora a ironia e o humor negro,
mostrando o absurdo do cotidiano e das relações humanas, como no conto
intitulado Uma Galinha (incluída em Laços de Família), em que os sentimentos
de compaixão e solidariedade de uma criança pelas aves domésticas logo se
transformam em seus opostos, a indiferença e crueldade (alegoria que pode ser
estendida ao campo social, tanto na esfera política quanto na familiar ou na do
ambiente de trabalho). A arte narrativa de Clarice Lispector, especialmente nas
histórias curtas, adota por vezes recursos da fantasia e da fábula, que não
obedecem às normas da verossimilhança (ou seja, o retrato realista de pessoas,
cenários e situações), como acontece no conto A Menor Mulher do Mundo (também de Laços de Família), que conta as aventuras de uma pigméia do Congo
Central que media apenas 45 centímetros. Descoberta pelo explorador francês
Marcel Pretre, ela é batizada de Pequena Flor e levada para a Europa, onde
causa perplexidade pela sua diferença radical em relação aos padrões biológicos
e culturais do chamado mundo civilizado. Esta é também uma abordagem irônica do
tema tradicional do amor impossível, uma vez que a relação entre a pigméia e o
explorador europeu é irrealizável. Em A
Legião Estrangeira
(1964), Clarice Lispector reúne contos e crônicas que depois seriam
republicados, com acréscimos, no livro Felicidade
Clandestina (1971). Os temas básicos da autora, como a solidão, a busca da
verdade, o amor, a angústia, estão presentes aqui, ao lado de outros, como o da
velhice. No conto Viagem a Petrópolis,
por exemplo, a personagem Margarida não tem consciência de sua situação de
abandono, que irá descobrir, de forma cruel, ao longo da narrativa. A obra de
Clarice Lispector, por sua riqueza estética e referencial, é uma das mais
importantes realizações da literatura brasileira do século XX.
Muitíssimo significativo ler alguém destacando com tanta propriedade do teor filosófico na obra da Lispector. ;)
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