sábado, 19 de outubro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (III): GUIMARÃES ROSA




Guimarães Rosa é um escritor brasileiro da terceira geração modernista. Seus contos e novelas destacam-se pelo uso da fala popular, de expressões regionais, mescladas a neologismos, arcaísmos, palavras indígenas, estrangeiras e ainda por construções inusitadas de frases, que por vezes se chocam com a própria sintaxe da língua portuguesa, como notou Haroldo de Campos em seu ensaio A linguagem do Iauretê. A literatura de Guimarães Rosa revela um conhecimento profundo do sertão brasileiro, ao mesmo tempo em que dialoga com a cultura universal, incorporando elementos simbólicos de diferentes épocas e países, mesclando o real e o fantástico, o erudito e o popular, como observou Berh Brait. Seu livro de estréia, Sagarana (1946), já revela a vocação universalista do autor. O título da obra deriva da palavra saga, que designa as epopéias escandinavas medievais, e o relato central desse livro, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, tem mesmo um caráter épico, revelado nos duelos entre jagunços e na jornada mística do protagonista, que após viver uma existência desregrada, perder a reputação, a casa e a família, luta para conquistar uma realização espiritual. As histórias reunidas nesse volume revelam ainda outra característica do autor, que é a recuperação do universo onírico da cultura popular, o estilo assombroso dos “casos”, que estará presente em sua obra posterior, especialmente em Primeiras histórias (1962) e Tutaméia (1967). Conforme observou Costa e Silva, nesses livros de contos o autor “favoreceu o caso, de enredo curto e cheio de surpresas”. São ficções “que se querem parecidas a anedotas”, mas que apresentam sempre o “inesperado do desfecho”. Costa e Silva aponta ainda que, nesses relatos breves, “o sertão continua vestido de Idade Média, com seus cavaleiros corteses, suas mulheres-damas que jamais perdem a condição de senhora a quem se serve por amor, e por quem se guerreia, e para quem se empreende a travessia dos medos”[1]. Nas narrativas de Rosa, porém, os tipos medievais aparecem travestidos de jagunços, fazendeiros, prostitutas, beatos e loucos. Beth Brait destaca que os animais aparecem também como personagens, como no conto O burrinho pedrês, o que aproxima os relatos rosianos das fábulas.
  
Guimarães Rosa investe na renovação narrativa, superando as noções clássicas de tempo, espaço e personagem. No romance Grande sertão: veredas, por exemplo, a evolução do enredo não segue uma cronologia linear, do tipo início-meio-fim; os episódios se sucedem de modo aparentemente caótico, sem obedecer a uma sequência temporal própria do romance realista ou naturalista. O espaço narrativo é múltiplo, alegórico, não se desenvolve num único local: a viagem, o movimento, a travessia, é o ambiente em que acontecem as várias narrativas construídas dentro da história principal. Os personagens principais, Riobaldo e Diadorim, por sua vez, não têm uma construção psicológica do tipo realista, regendo-se antes pelo princípio da ambiguidade. Diadorim é a jovem que se disfarça de jagunço para vingar a morte do pai, evitando o desejo em favor do ódio, e Riobaldo sente a angústia do amor pelo companheiro, que ele ignora ser uma mulher, e ainda o dilema metafísico em relação a um suposto pacto que teria realizado com o demônio, tema fáustico que se prolonga por todo o romance. No Grande sertão, verificamos ainda a quebra das fronteiras entre os gêneros literários: temos aqui elementos da poesia, do romance, da epopéia, bem como de formas literárias de diferentes períodos históricos. Conforme Beth Brait, “a lírica e a narrativa fundem-se e confundem-se, abolindo intencionalmente os limites existentes entre os gêneros. Segundo o crítico Alfredo Bosi, na obra desse autor, ‘a aguda modernidade se nutre de tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros medievais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco’”[2]

É uma epopeia moderna, em aparente prosa. Como a Odisséia e Os lusíadas, é um poema longo de viagem, de navegação, de travessia – palavra que se repete insistente em todo o livro e lhe anuncia o ponto final. Um peregrinar em guerra, tal qual a Ilíada e a Canção de Rolando, e em busca da Graça, como A demanda do Santo Graal e A divina comédia. Nesse livro de Rosa sobre o mistério e a grandeza feérica do mundo, entrelaçam-se, ao tema da viagem como missão e destino, o enredo da tentação e do pacto fáustico e o da donzela que se faz soldado. Tudo a passar-se num sertão que é real e simbólico – as desmesuradas terras sem lei do interior do Brasil, onde mandavam a audácia e a coragem, e o mundo todo, e o inexplicável e o irracional, e a bondade e a maldade, e o destino e o demônio, e o que o homem de si mesmo não sabe, as suas profundezas”[3]. 
  
A literatura de Rosa se aproxima ainda do chamado realismo mágico latino-americano, especialmente em narrativas curtas como Meu tio, o iauaretê (do livro Estas estórias), que conta a metamorfose do protagonista em onça, numa linguagem rica em onomatopéias, interjeições e termos de origem indígena, ou ainda A terceira margem do rio (do livro Primeiras estórias), saga de um homem do sertão que abandona a mulher e filhos para viver numa canoa, sem nunca mais dizer uma única palavra. Porém, ao contrário de autores como Gabriel Garcia Marques (Cem anos de solidão), em Guimarães Rosa há uma unidade intrínseca entre a fabulação e a linguagem. Haroldo de Campos ressalta que, no conto Meu tio, o iauaretê, Rosa, além de utilizar “suas costumeiras práticas de deformação oral e renovação do acervo da língua (...)”, o autor mineiro utiliza um elemento que exerce função ao mesmo tempo estilística e fabulativa: “a tupinização, a intervalos, da linguagem”[4]. O uso de termos indígenas, nesse conto sobre a metamorfose de um homem em onça, não é um elemento decorativo, mas um recurso estrutural do enredo, que “dará à própria fábula a sua fabulação, à história o seu ser mesmo”[5]. Uma outra característica da obra de Rosa, agora no campo referencial, é a presença constante do sagrado. A espiritualidade, porém, não assume um caráter confessional, mas universal, incorporando imagens e símbolos de diferentes tradições, desde a budista e a taoísta (presentes já em seu livro de poemas Magma, de 1937) até uma visão bastante pessoal do cristianismo, expressa sobretudo no romance Grande sertão: veredas, que pode ser considerado um diálogo com o Fausto de Goethe. A busca da redenção possível, na visão do autor, não exclui o estar no mundo, nem mesmo a paixão e a luta: é o homem integral que aparece na metafísica rosiana, o viajante em travessia que não teme a condenação eterna porque não acredita no mal como um ente absoluto: “Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo, não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia”[6].





[1] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas primeiras estórias. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 11.


[2] BRAIT, Beth (Org). Guimarães Rosa. São Paulo: Nova Cultural, 1990. p. 140-141. Coleção Literatura Comentada.

[3] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas primeiras estórias. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 10.

[4] CAMPOS, Haroldo de. A linguagem do Iauretê. Metalinguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 60-61.

[5] ______ . A linguagem do Iauretê. Metalinguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 60-61.


[6] ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. 613 p.

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