Guimarães Rosa é um escritor
brasileiro da terceira geração modernista. Seus contos e novelas destacam-se
pelo uso da fala popular, de expressões regionais, mescladas a neologismos,
arcaísmos, palavras indígenas, estrangeiras e ainda por construções inusitadas
de frases, que por vezes se chocam com a própria sintaxe da língua portuguesa,
como notou Haroldo de Campos em seu ensaio A
linguagem do Iauretê. A literatura de Guimarães Rosa revela um conhecimento
profundo do sertão brasileiro, ao mesmo tempo em que dialoga com a cultura
universal, incorporando elementos simbólicos de diferentes épocas e países,
mesclando o real e o fantástico, o erudito e o popular, como observou Berh
Brait. Seu livro de estréia, Sagarana
(1946), já revela a vocação universalista do autor. O título da obra deriva da
palavra saga, que designa as epopéias
escandinavas medievais, e o relato central desse livro, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, tem mesmo um caráter épico,
revelado nos duelos entre jagunços e na jornada mística do protagonista, que
após viver uma existência desregrada, perder a reputação, a casa e a família,
luta para conquistar uma realização espiritual. As histórias reunidas nesse
volume revelam ainda outra característica do autor, que é a recuperação do
universo onírico da cultura popular, o estilo assombroso dos “casos”, que
estará presente em sua obra posterior, especialmente em Primeiras histórias (1962) e Tutaméia
(1967). Conforme observou Costa e Silva, nesses livros de contos o autor
“favoreceu o caso, de enredo curto e cheio de surpresas”. São ficções “que se
querem parecidas a anedotas”, mas que apresentam sempre o “inesperado do
desfecho”. Costa e Silva aponta ainda que, nesses relatos breves, “o sertão
continua vestido de Idade Média, com seus cavaleiros corteses, suas
mulheres-damas que jamais perdem a condição de senhora a quem se serve por
amor, e por quem se guerreia, e para quem se empreende a travessia dos medos”[1].
Nas narrativas de Rosa, porém, os tipos medievais aparecem travestidos de
jagunços, fazendeiros, prostitutas, beatos e loucos. Beth Brait destaca
que os animais aparecem também como personagens, como no conto O burrinho pedrês, o que aproxima os
relatos rosianos das fábulas.
Guimarães Rosa investe na renovação
narrativa, superando as noções clássicas de tempo, espaço e personagem. No
romance Grande sertão: veredas, por
exemplo, a evolução do enredo não segue uma cronologia linear, do tipo
início-meio-fim; os episódios se sucedem de modo aparentemente caótico, sem
obedecer a uma sequência temporal própria do romance realista ou naturalista. O
espaço narrativo é múltiplo, alegórico, não se desenvolve num único local: a
viagem, o movimento, a travessia, é o ambiente em que acontecem as várias narrativas
construídas dentro da história principal. Os personagens principais, Riobaldo e
Diadorim, por sua vez, não têm uma construção psicológica do tipo realista,
regendo-se antes pelo princípio da ambiguidade. Diadorim é a jovem que se
disfarça de jagunço para vingar a morte do pai, evitando o desejo em favor do
ódio, e Riobaldo sente a angústia do amor pelo companheiro, que ele ignora ser
uma mulher, e ainda o dilema metafísico em relação a um suposto pacto que teria
realizado com o demônio, tema fáustico que se prolonga por todo o romance. No Grande sertão, verificamos ainda a
quebra das fronteiras entre os gêneros literários: temos aqui elementos da
poesia, do romance, da epopéia, bem como de formas literárias de diferentes
períodos históricos. Conforme Beth Brait, “a lírica e a narrativa
fundem-se e confundem-se, abolindo intencionalmente os limites existentes entre
os gêneros. Segundo o crítico Alfredo Bosi, na obra desse autor, ‘a
aguda modernidade se nutre de tradições, as mesmas que davam à gesta dos
cavaleiros medievais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco’”[2].
É uma epopeia moderna, em aparente
prosa. Como a Odisséia e Os lusíadas, é um poema longo de viagem,
de navegação, de travessia – palavra que se repete insistente em todo o livro e
lhe anuncia o ponto final. Um peregrinar em guerra, tal qual a Ilíada e a Canção de Rolando, e em
busca da Graça, como A demanda do Santo
Graal e A divina comédia. Nesse livro de Rosa sobre o
mistério e a grandeza feérica do mundo, entrelaçam-se, ao tema da viagem como
missão e destino, o enredo da tentação e do pacto fáustico e o da donzela que
se faz soldado. Tudo a passar-se num sertão que é real e simbólico – as
desmesuradas terras sem lei do interior do Brasil, onde mandavam a audácia e a
coragem, e o mundo todo, e o inexplicável e o irracional, e a bondade e a
maldade, e o destino e o demônio, e o que o homem de si mesmo não sabe, as suas
profundezas”[3].
A literatura de Rosa se aproxima
ainda do chamado realismo mágico latino-americano, especialmente em narrativas curtas como Meu tio, o iauaretê
(do livro Estas estórias), que conta
a metamorfose do protagonista em onça, numa linguagem rica em onomatopéias,
interjeições e termos de origem indígena, ou ainda A terceira margem do rio (do livro Primeiras estórias),
saga de um homem do sertão que abandona a mulher e filhos para viver numa
canoa, sem nunca mais dizer uma única palavra. Porém, ao contrário de autores
como Gabriel Garcia Marques (Cem anos de
solidão), em
Guimarães Rosa há uma unidade intrínseca entre a fabulação e
a linguagem. Haroldo de Campos ressalta que, no conto Meu tio, o iauaretê, Rosa, além de
utilizar “suas costumeiras práticas de deformação oral e renovação do acervo da
língua (...)”, o autor mineiro utiliza um elemento que exerce função ao mesmo
tempo estilística e fabulativa: “a tupinização, a intervalos, da linguagem”[4]. O
uso de termos indígenas, nesse conto sobre a metamorfose de um homem em onça,
não é um elemento decorativo, mas um recurso estrutural do enredo, que “dará à
própria fábula a sua fabulação, à história o seu ser mesmo”[5].
Uma outra característica da obra de Rosa, agora no campo referencial, é a
presença constante do sagrado. A espiritualidade, porém, não assume um caráter
confessional, mas universal, incorporando imagens e símbolos de diferentes
tradições, desde a budista e a taoísta (presentes já em seu livro de poemas Magma, de 1937) até uma visão bastante
pessoal do cristianismo, expressa sobretudo no romance Grande sertão: veredas,
que pode ser considerado um diálogo com o Fausto
de Goethe. A busca da redenção possível, na visão do autor, não exclui o estar
no mundo, nem mesmo a paixão e a luta: é o homem integral que aparece na
metafísica rosiana, o viajante em travessia que não teme a condenação eterna
porque não acredita no mal como um ente absoluto: “Amável o senhor me ouviu,
minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem
soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo, não há! É o que eu digo,
se for... Existe é o homem humano. Travessia”[6].
[1] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas primeiras estórias. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006. p. 11.
[2] BRAIT, Beth (Org). Guimarães Rosa. São Paulo: Nova
Cultural, 1990. p. 140-141. Coleção Literatura Comentada.
[3] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas
primeiras estórias. Primeiras estórias.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 10.
[4] CAMPOS, Haroldo de. A linguagem do
Iauretê. Metalinguagem. São Paulo:
Perspectiva, 2004. p. 60-61.
[6] ROSA, Guimarães. Grande
sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. 613 p.
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