Claudio Daniel
A Bíblia é o grande código da literatura
ocidental, segundo o estudioso Northrop Frye. É o início de toda a nossa
tradição literária. O Cântico
dos Cânticos, por exemplo, traduzido por Haroldo de Campos no livro Éden, publicado pela editora
Perspectiva, é uma das bases de nossa poesia erótico-amorosa, ao lado da lírica
romana e das canções dos trovadores da Idade Média. Já o estilo conciso,
obscuro e paradoxal dos livros sapienciais, como osProvérbios e o Eclesiastes marcaram importantes obras de autores
românticos e simbolistas, como o Blake do Casamento
do Céu com o Inferno, o Novalis de Aurélia e mesmo esse inimigo declarado do
cristianismo que foi Lautréamont, nas sentenças paródicas de suas Poésies. Outro adversário
contumaz da fé cristã, Friedrich Nietzsche, usou o estilo oratório dos profetas
hebreus em seu Assim Falava
Zaratustra, e até Marx, em sua obra mais elaborada, do ponto de vista
literário, que é o 18 Brumário
de Luís Bonaparte, fez várias citações do cânone bíblico, como a conhecida
frase “deixemos que os mortos enterrem os seus mortos”. Se fossemos fazer uma
lista de todos os autores influenciados, de uma maneira ou outra, pela
literatura bíblica, essa lista seria interminável.
Por
isso mesmo, traduzir a Bíblia é uma aventura fascinante, que
representa um mergulho na fonte primordial de nosso imaginário, de nossa
tradição literária e de nossa cultura — ainda que nos afastemos,
voluntariamente, da herança judaico-cristã. O que diferencia as traduções de Haroldo
de Campos daquelas realizadas por outros estudiosos é que ele não foi movido
pela intenção mística ou teológica, mas pelo desejo de recuperar para nós
alguns exemplos mais expressivos da poesia bíblica, muito mais elaborada
e sofisticada do que poderiam imaginar aqueles que só leram as versões
convencionais da escritura.
O
resultado do trabalho titânico desenvolvido pelo poeta são três livros
notáveis: o Qohélet,
tradução do Eclesiastes; Bereshit, com a reimaginação da
primeira história da Gênese e da resposta de Deus a Jó; e por fim
este Éden, publicado
postumamente, que reúne a segunda história da criação, o episódio referente à
torre de Babel e o Cântico dos
Cânticos, atribuído ao rei Salomão. Nesse conjunto admirável de obras, que
formam um tríptico, Haroldo nos mostrou que os textos bíblicos são poemas
riquíssimos, não menos complexos, formalmente, do que um poema de Khlébnikov ou
Mallarmé. Para revelar as cintilâncias da arte verbal bíblica, Haroldo
desprezou a distinção entre prosa e poesia, buscando antes recuperar o ritmo, a
respiração prosódica das linhas, valendo-se para isso de sinais gráficos e de
recursos de espacialização da poesia moderna. Ele não evitou os jogos
paronomásicos, os paralelismos e todos os recursos da função poética que, em
geral, são ignorados nas versões tradicionais. Haroldo buscou hebraizar o
português, criando uma língua quase híbrida, que ao mesmo tempo nos encanta
pela estranheza melódica e apresenta outras possíveis abordagens do texto
original, recuperando significados que estão ausentes em muitas versões. Assim,
por exemplo, ele traduz shamáyim por fogoágua, em vez de céu,
indicando, nesse neologismo, a idéia de uma abóbada celeste formada por uma
espécie de magma. Essa tradução nada tem de arbitrária, já que esh significa
fogo e máyim, água, como
esclarece o tradutor — ou transcriador, como ele preferia ser chamado. O
resultado poético pode ser conferido nas linhas iniciais da Primeira História do Bereshit:
No começar Deus criando / O fogoágua e a terra / E a terra era lodo torvo / e a treva sobre o rosto do abismo / E o sopro-Deus / revoa sobre o rosto da água.
A
estranheza começa pelo uso do infinitivo, No
começar, seguido pelo verbo no gerúndio, Deus
criando. É como se o poeta trouxesse até nós o momento inicial da criação,
descrevendo o inconcebível cenário de elementos que surgem, interagem e se
transformam, na alquimia criadora do cosmo. Esse passado remoto é vivificado
também pelo desenho melódico das linhas, com ênfase nas assonâncias (e a terra era lodo torvo)
e aliterações (revoa sobre o rosto). Já na Segunda História do Gênesis,
presente no livro Éden,
ele recupera o jogo semântico entre adam e adamá,
que traduz como homem-húmus,
coerente com a noção semítica de criação do primeiro humano a partir do pó da
terra. Ao mesmo tempo, Haroldo faz outra aproximação paronomásica entre mulhere húmus, recuperando o jogo que
em hebraico existe entre ish (homem) e isha (mulher). Não se trata
de mero capricho estilístico, mas de uma relação ao mesmo tempo de significante
e de significado, já que a aproximação semântica indica uma relação causal: o
homem veio do pó, e a mulher da costela do homem. Ou, como diz a Segunda História do Gênesis,
na versão haroldiana:
E disse o homem / esta desta vez osso / de meus ossos / e carne de minha carne / A esta chamarei mulher / pois do homem-húmus esta foi tomada.
Outra
recriação notável, agora no livro do Qohélet,
é a da paronomásia havel
havalim, que nós conhecemos, a partir da Vulgata latina, como “vaidade das vaidades”.
Esse é um dos versos mais conhecidos da Bíblia.
Haroldo interpretou de outra maneira a sentença, traduzindo-a como tudo névoa-nada, sendo que havel, em hebraico, tem o
sentido literal de vapor, sopro, e só figurativamente
significa vaidade. Não se
trata apenas de jogo lingüístico, mas, novamente, uma releitura do sentido, já
que a palavra vapor tem um significado mais preciso do que vaidade, e com o conteúdo
figurativo adicional de algo impalpável e efêmero. Assim como, na literatura
budista, os fenômenos são comparados a bolhas de espuma, que surgem e logo caem
na impermanência. Ao optar por tais soluções, Haroldo manteve-se fiel ao
sentido literal, muito mais concreto do que abstrato, e com um ganho maior de
poeticidade, pelo impacto do inusitado. O que surpreende, no entanto, é o modo
como Haroldo fez isso sem abdicar da sonoridade do texto; vale lembrar que ele
utilizou diversas gravações, com professores de hebraico lendo esses poemas em
voz alta, para trabalhar a partir do impacto sonoro do original. A esse
respeito, vale a pena citar um trecho da Primeira
História, do Bereshit:
E Deus disse / que as águas esfervilhem / seres fervilhantes / alma-da-vida / E aves voem sobre a terra / face à face / do céufogoágua. / E Deus criou / os grandes monstros do mar / E toda as almas-de-vida rastejantes / que fervilham nas águas / segundo sua espécie / e todas as aves de pena / segundo sua espécie / E Deus viu que era bom.
Esse relato cosmogônico, história cantada do mundo, é um dos vários
gêneros literários que integram o cânone bíblico. Em outros capítulos desse
livro infinito, encontramos poemas líricos, como o Cântico dos Cânticos (que também integra o Éden), o relato épico, como a
história de Josué e as trombetas de Jericó, o discurso filosófico, como os Provérbios e o Qohélet,
e ainda esse texto insólito, irônico e enigmático que é a resposta de Deus a
Jó, traduzida por Haroldo e incluída no livro Bereshit:
A chuva terá um pai? / Ou quem gerou / as gotas de orvalho? / Do ventre de quem / saiu o gelo? / E a geada do céu / quem a gerou? /; (...) Comandas e os relâmpagos vêm / E te respondem: 'Aqui estamos!' / Quem infundiu / no íbis sabedoria / Ou quem deu ao galo inteligência?
A chuva terá um pai? / Ou quem gerou / as gotas de orvalho? / Do ventre de quem / saiu o gelo? / E a geada do céu / quem a gerou? /; (...) Comandas e os relâmpagos vêm / E te respondem: 'Aqui estamos!' / Quem infundiu / no íbis sabedoria / Ou quem deu ao galo inteligência?
Outro texto de difícil classificação é o episódio da Torre de Babel, incluído no Éden, que é a metáfora
arquetípica do surgimento das línguas e das nações (assim como a Primeira História do Gênese trata do nascimento da dualidade e do
ego, aquilo que os hindus chamam de mundo do samsara).
Novamente, aqui, Haroldo não se contentou com as soluções adocicadas das
versões tradicionais, e fez um poema forte e consistente em português,
descobrindo novos sentidos para formas novas.
Vale citar o fragmento final:
E disse Ele-O-Nome
um povo uno e uma língua-lábio una para todos
e isto só o começo do seu afazer
E agora nada poderá cerceá-los
no que quer que eles maquinem fazer
Vamos baixemos
e lá babelizemos sua língua-lábio
Que não entenda um
a língua-lábio do outro
E os dispersou Ele-O-Nome de lá
sobre a face de toda a terra
E eles cessaram de construir a cidade
Por isso chamou-se por nome Babel
pois lá babelizou Ele-O-Nome
a língua-lábio de toda a terra
E de lá dispersou-os Ele-O-Nome
sobre a face de toda a terra
um povo uno e uma língua-lábio una para todos
e isto só o começo do seu afazer
E agora nada poderá cerceá-los
no que quer que eles maquinem fazer
Vamos baixemos
e lá babelizemos sua língua-lábio
Que não entenda um
a língua-lábio do outro
E os dispersou Ele-O-Nome de lá
sobre a face de toda a terra
E eles cessaram de construir a cidade
Por isso chamou-se por nome Babel
pois lá babelizou Ele-O-Nome
a língua-lábio de toda a terra
E de lá dispersou-os Ele-O-Nome
sobre a face de toda a terra
Convém
ressaltar que Ele-O-Nome é o modo como Haroldo traduz o
intraduzível tetragrama que na Bíblia hebraica representa o nome
impronunciável de Deus, e que em hebraico safa'ehath significa lábio, com o sentido de idioma;
daí a versão haroldiana língua-lábio, que mantém na ambigüidade do
neologismo a duplicidade de sentido do termo original. Sobre o Cântico dos Cânticos, pouco há
o que dizer: é apenas a melhor tradução em português do mais belo poema de amor
da história literária ocidental.
Estimado, me interesó mucha la traducción de Haroldo de La Torre de Babel. Me ha sido imposible encontrar el libro dónde aparece entera, ¿sería posible que postearas las secciones que faltan en tu artículo? Muchísimas gracias!
ResponderExcluirCaro, impossível, porque é um poema longo.
ExcluirNo te preocupes, ya lo he conseguido. Muchas gracias de todas formas
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