domingo, 6 de outubro de 2013

A QUESTÃO DA RUPTURA DOS GÊNEROS NA LITERATURA LATINO-AMERICANA


Claudio Daniel


Haroldo de Campos publicou em 1976 a primeira edição do volume de ensaios A operação do texto, em que discute temas como a tradução de uma peça de teatro clássica japonesa do século XV (Hagoromo: plumas para o texto), os jogos especulares no poema The raven, de Edgar Allan Poe (O texto-espelho: Poe, engenheiro de avessos), os “poemas da loucura” de Hoelderlin (O texto como descomunicação) e a hipótese de uma escrita barroca que transcende os limites de tempo e espaço (Uma arquitextura do barroco). A simples enumeração do sumário, que inclui ainda O texto como produção (Maiakovski), Diábolos no texto (Saussure e os anagramas) e Do texto macarrônico ao permutacional já é um índice da visão universalista e sincrônica do autor, que pensava a cultura para além dos estreitos limites de nacionalidade, idioma e gênero literário — já na Nota prévia, ele adverte: “em matéria de literatura, é sempre bom colocar-se, de quando em quando, a diacronia em pânico” (CAMPOS, 2013: 11). O volume, hoje um clássico da teoria e da crítica literária brasileira, foi reeditado em 2013 pela editora Perspectiva, com o acréscimo de dois novos ensaios – Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana (publicado originalmente em castelhano, no livro America Latina en su literatura, organizado por César Fernández Moreno. Cidade do México: Unesco, 1972) e Mallarmé no Brasil (publicado originalmente no jornal O estado de S. Paulo, em 26/09/1998). O livro, assim ampliado, recebeu um novo título: A reoperação do texto. É nosso escopo discutir, no presente trabalho, alguns aspectos do ensaio de Haroldo de Campos sobre a ruptura dos gêneros literários, seja pela crescente atualidade no conceito, que se estende desde obras literárias de alto repertório como o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, até a produção cultural voltada ao consumo, seja pelo fato de ser um dos poucos textos em que Haroldo de Campos se ocupa da literatura latino-americana (seu interesse na obra do mexicano Octavio Paz levou-o a traduzir o poema longo Blanco, que publicou, com o acréscimo de ensaios, cartas e resenhas no volume Transblanco, cuja primeira edição saiu em 1986. Convém citar também as traduções que Haroldo de Campos realizou de alguns poemas do livro En la masmédula, do argentino Oliverio Girondo, publicadas na revista Qorpo estranho, do poema A prova de jade, do cubano Lezama Lima, de fragmentos de Trilce, do peruano César Vallejo, sobre quem escreveu o artigo Tributo a César Vallejo, além da tradução de quatro sonetos da mexicana Sor Juana Inés de la Cruz e do diálogo intelectual que manteve com Severo Sarduy, Eduardo Milán, Júlio Cortázar e Néstor Perlongher. A maioria dos trabalhos de Haroldo de Campos sobre a poesia latino-americana foi publicada no livro póstumo O segundo arco-íris branco).


O interesse do poeta e ensaísta brasileiro na questão da ruptura dos gêneros não é apenas conceitual: embora ele comece o seu trabalho apresentando formulações de Jan Mukarovsky, para quem a regulamentação dos textos literários é decorrente do período clássico (“O Classicismo, a culminação da perfeição estética da linguagem, procura atingir a mais estrita obrigatoriedade e a maior generalidade da forma”, in CAMPOS: 2013, 162), e ainda de Benedetto Croce e Hans-Robert Jauss, que desestabilizaram a noção convencional de gênero (Croce, considerando-a “indefensável”, e Jauss, relativizando-a dentro de um “horizonte de expectativas”), a sua estratégia é outra – situar, na poesia brasileira e latino-americana do final do século XIX às primeiras décadas do século XX, as obras mais inovadoras, do ponto de vista da arquitetura formal, como é o caso do poema longo O guesa errante, do poeta romântico brasileiro Joaquim de Sousândrade (1832-1902). A ruptura dos gêneros literários, com efeito, é obra de autores românticos, como Novalis, Hoelderlin, Nerval e Poe, citados por Haroldo de Campos no texto que analisamos, e sobretudo por Goethe, que na segunda parte do Fausto realizou o texto híbrido por excelência, mesclando passagens narrativas, dramáticas, filosóficas e líricas (tema abordado pelo próprio Haroldo de Campos no livro Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, de 1981). A revolução romântica foi analisada por Edmund Wilson em seu livro O castelo de Axel, que assim escreve sobre a mudança de estado de espírito da intelectualidade européia na passagem do classicismo para o romantismo: “De qualquer modo, é sempre como em Wordsworth, a sensibilidade individual, ou como em Byron, a vontade individual, que preocupam o poeta romântico; ele inventou uma nova linguagem para exprimir-lhes o mistério, o conflito e a confusão” (WILSON, 1985: 11).  Conforme o crítico norte-americano, “A arena da Literatura transferiu-se do universo concebido como máquina, da sociedade concebida como organização, para a alma individual” (idem).

Mais adiante, o autor diz:

Toda percepção ou sensação que tenhamos, a cada momento de consciência, é diferente de todas as outras; por conseguinte, torna-se impossível comunicar nossas sensações, conforme as experimentamos efetivamente, por meio da linguagem convencional e universal da literatura comum. Cada poeta tem uma personalidade única; cada um de seus momentos possui seu tom especial, sua combinação especial de elementos. E é tarefa do poeta descobrir, inventar a linguagem especial que seja a única capaz de exprimir-lhe a personalidade e as percepções. (Idem, 22)

A revolução romântica, ao colocar em primeiro plano a subjetividade, contra a tirania da razão, da ciência e da objetividade, desarticulou os alicerces da tradição clássica, e com ela a própria delimitação dos gêneros. “Um dos pontos cruciais no processo de dissolução da pureza dos gêneros e de seu exclusivismo linguístico”, escreve Haroldo de Campos, “foi a incorporação, à poesia, de elementos da linguagem prosaica e conversacional” (CAMPOS, 2013: 166), não apenas no campo vocabular, “mas também no que respeita aos giros sintáticos” (idem). O autor ilustra a sua tese citando poetas irônico-satíricos como Heine, certo Gautier, certo Musset, que abrem caminho para a vertente “coloquial-irônica” do Simbolismo francês – Laforgue, Corbière – e ainda a dicção de Eliot e Pound, nas primeiras décadas do século XX. Outro elemento que abalou a estabilidade das formas clássicas e assinalou novos caminhos criativos foi a irrupção dos mass media, impulsionada pela Revolução Industrial iniciada na segunda metade do século XVIII na Inglaterra. Conforme Haroldo de Campos, “a emergência da grande imprensa desempenha um papel fundamental nos rumos da literatura. A linguagem descontínua e alternativa, característica da conversação, vai encontrar na simultaneidade e no fragmentarismo do jornal o seu desaguadouro natural” (idem, 167). O autor cita uma passagem em que o poeta romântico francês Lamartine faz o seguinte comentário: “O pensamento se difundirá no mundo com a velocidade da luz, instantaneamente concebido, instantaneamente escrito e compreendido até às extremidades do globo”, frase que hoje soa como profecia da era globalizada”. Não terá tempo para amadurecer – para se acumular num livro; o livro chegará muito tarde. O único livro possível a partir de hoje é o jornal” (idem, 168). Mallarmé, por sua vez, escreve Haroldo de Campos, “via na imprensa o ‘moderno poema popular’, uma forma rudimentar do livro enciclopédico e último de seus sonhos, inspira-se nas técnicas de espacialização visual e titulagem da imprensa cotidiana, assim como nas partituras musicais, para a arquitetura de seu poema constelar Un coup de dés (1897)” (idem).

Marshall McLuhan, por sua vez, assinala que a imprensa popular e o telégrafo estão na gênese das obras literárias que solicitam a participação inteligente do leitor:


O significado do mosaico telegráfico em suas manifestações jornalísticas não escapou à mente de E. A. Poe. Ele soube utilizá-lo em duas invenções notáveis: o poema simbolista e a estória de detetive. Ambas estas formas exigem do leitor uma participação do tipo “faça você mesmo” (do-it-yourself). Apresentando uma imagem ou processo incompleto, Poe envolvia seus leitores no processo criativo, de um modo que Baudelaire, Valéry, T. S. Eliot e muitos outros admiraram e procuraram seguir. (in CAMPOS, 2013: 169)


Fragmentação, descontinuidade, analogia, multiplicidade de vozes, sincretismo e cumplicidade criativa do leitor são algumas das palavras-chave que podemos utilizar para definir os textos literários produzidos entre o final do século XIX e início do século XX que marcam a ruptura entre os gêneros literários estabelecidos na época clássica. Enquanto na França essa ruptura é representada por obras como os Petits poèmes em prose de Baudelaire, Igitur e Un coup de dés de Mallarmé, Une saison en enfer e Illuminations de Rimbaud, Les chants de Maldoror de Lautréamont, no Brasil, Haroldo de Campos reivindica o papel de honra para Joaquim de Sousândrade, considerado por muito tempo um poeta “menor” de nosso romantismo e excluído da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido. De acordo com Haroldo de Campos,

Sousândrade vislumbra as mazelas do capitalismo florescente, no seu próprio centro de operações, Wall Street, e as verbera causticamente. É então que, sob a pressão de novos conteúdos, ele apela para novas soluções formais. Antes de Mallarmé, cujo Un coup de dês é de 1897; mais radicalmente do que Poe, cuja poesia, sob muitos aspectos, é ainda convencional, ele se deixa inspirar pelo mosaico telegráfico dos jornais. O episódio do ‘Inferno’ é todo ele uma espécie de teatro sintético feito por um processo de montagem de eventos, com notícias extraídas de periódicos da época, fragmentos históricos e mitológicos, citações, comentários mordazes, tudo isso em diálogos comprimidos, num estilo descontínuo, pontilhados de palavras e frases polilíngues (idem, 173-174)


O Guesa errante, poema longo que Sousândrade escreveu ao longo de três décadas, é diferente de qualquer texto literário publicado na segunda metade do século XIX, seja no Brasil, seja no cenário internacional. Haroldo de Campos observa que “o próprio poeta achava que seu poema não era dramático, nem épico, mas se aproximava antes da narrativa” (idem, 175). Joaquim Serra, contemporâneo do autor maranhense, chamou a obra sousandradina de “Poema-romance”. Haroldo de Campos aceita a definição do Guesa errante como poema épico, com a ressalva de que “não o será no sentido tradicional do gênero, mas apenas na acepção de que ‘inclui história’, como quer Pound” (idem). O poema de Sousândrade estaria situado na mesma insólita categoria que os Cantares do próprio Ezra Pound, ou seja, “uma épica da memória, que engloba elementos narrativos (à maneira byroniana), líricos e dramáticos num mesmo desenho” (idem), antecipando outra “moderna tentativa de renovação da epopéia (ou do poema longo), o Canto General (1950), de Pablo Neruda” (idem).


A análise paradigmal da épica sousandradina é seguida de uma extensa discussão sobre autores do cânone hispano-americano que promoveram a dissolução dos gêneros literários, com destaque para o nicaraguense Ruben Darío (1867-1916), o chileno Vicente Huidobro (1893-1948), os cubanos Lezama Lima (1910-1976) e Severo Sarduy (1937-1993), os argentinos Jorge Luis Borges (1899-1986) e Júlio Cortazar (1914-1984), com entrecruzamentos sincrônicos em que o autor invoca outros protagonistas da literatura brasileira de invenção, como Gregório de Matos, Machado de Assis, Mário e Oswald de Andrade, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, colocando no mesmo patamar a poesia e a prosa de ruptura. Referindo-se a Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, Haroldo de Campos escreve que “são romances em crise, que já não mais conseguem se conter nos lindes do gênero, desprezando o desenvolvimento romanesco habitual em prol de uma contínua dialética irônico-crítica autor-leitor” (idem, 186). A experiência machadiana seria radicalizada nos romances de invenção de Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), e também no Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. “Em ambos os casos”, escreve Haroldo de Campos, “abolem-se os limites entre poesia e prosa de um modo tão desnorteante, que os contemporâneos de mentalidade ‘passadista’ não mais conseguem identificar essas produções, que lhes parecem fruto de ‘paranoia’ ou ‘mistificação’” (idem, 179). O passo seguinte seria dado no Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, que, ao lado do Paradiso (1966), de Lezama Lima, “são livros barrocos: neobarrocos, melhor dizendo. O de Rosa, por suas constantes invenções vocabulares; por seus rasgos sintáticos inovadores; pelo hibridismo léxico (que vai do arcaísmo ao neologismo e à montagem de palavras); pelo confronto oximoresco de barbárie e refinamento” (idem, 183). O romance de Lezama Lima, em comparação com o de Rosa, seria notável “pela metaforização gongorina do cotidiano; pelo prodígio de uma linguagem que é um escândalo romanesco, na medida em que substitui, às convenções de ‘tipo’ do romance realista, com seus requisitos de verossimilhança, a unidade plurifacetada do discurso poético do autor” (idem). A evolução da narrativa experimental teria continuidade no continente latino-americano com obras insólitas como Rayuela (1963), do argentino Júlio Cortázar, Três tristes tigres (1964), do cubano Cabrera Infante, e De donde son los cantantes, do cubano Severo Sarduy (1967), obras marcadas por acentuada “dimensão metalingüística através da paródia (seja nas dicções das personagens, seja no tratamento de materiais textuais os mais diversos, de informes científicos a memórias estrambóticas de visionários de província)” (idem, 190).


A enumeração de títulos e autores no ensaio de Haroldo de Campos tem evidente caráter de paideuma: trata-se de elencar não todos os bons autores da literatura brasileira e latino-americana do final do século XIX até meados da década de 1960, mas apenas aqueles que, de acordo com a perspectiva crítica do autor, colaboraram para a renovação de formas estruturais e estilísticas. Conforme o próprio autor declara: “A não ser que queiramos que os nossos juízos tenham um valor meramente local e não aspiremos ao tribunal mais exigente da ‘literatura universal’, onde não teriam curso, por estarem referidos a índices artificiais” (idem, 170). Nesta linha de raciocínio, “seriam juízos provisórios, fruto duma indulgência consentida, que acabariam por relegar nossas literaturas à condição de meros ‘protetorados’, literaturas ‘menores’, sujeitas a permanente regime de curatela estética” (idem). Os critérios de rigor estabelecidos por Haroldo de Campos – inclusive para a sua projetada Antologia da poesia brasileira de invenção, anunciada já na primeira edição de A operação do texto, não levada a cabo pelo autor, é altamente defensável, mas não isenta de lacunas: no âmbito latino-americano, podemos nos perguntar sobre os motivos da ausência de obras como Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, Concerto barroco, do cubano Alejo Carpentier, A vida breve, do uruguaio Juan Carlos Onetti, e, no âmbito brasileiro, do Missal, de Cruz e Sousa, livro que inaugura, em nossa literatura, o gênero do poema em prosa. De fato, há raríssimas referências ao poeta catarinense na obra ensaística de Haroldo de Campos, e não são elogiosas. No ensaio Texto e história, que abre o volume A operação do texto, escreve o seguinte: “Pedro Kilkerry é o nosso único simbolista radical, de linhagem mallarmaica (Cruz e Sousa, que contaria numa escala taxinômica menos severa, é antes um simbolista moderado, contaminado pelos restos do parnasianismo)” (idem, 19)[1]. Efetivamente, não vamos encontrar, na lírica de Cruz e Sousa, o mesmo grau de fragmentação, desconstrução e montagem encontrados em poemas como Horas ígneas, Harpa esquisita ou Cetáceo, mas encontramos em Broqueis um vocabulário novo, criado por um verdadeiro taumaturgo morfológico: absíntica, nirvânica, tantálico, beethovínica, estradivário,torcicolosamente, entre outros neologismos, mesclados a outros termos, de laivos gongorinos: neblinoso, alampadário, flamívona, alabastrino, espumaroso, empurpuresce. Com esse grimoire de sortilégios e encantações, Cruz e Sousa conduziu aliterações (“suspira, sofre, cisma, sente, sonha”), anagramas (“areia úmida e miúda”), paronomásias (“torvas e turvas”, “gralha, grasma e grulha”), assonâncias (“Das asas serenas”), anáforas (“só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria”) e outras magias semânticas que podem ser colocadas, sem intenção filantrópica, ao lado das construções inusitadas de Kilkerry ou Sousândrade. No caso específico de Missal, escreve Aguinaldo José Gonçalves que “perpassa todas as páginas desta obra um movimento inebriante de imagens simbólicas, mescladas a um total clima de sonho e de sensibilização em várias dimensões”. (GONÇALVES, 1982: 57) O poeta de Nossa Senhora do Desterro seria o autor de “um estilo novo, uma linguagem inédita mais fluida, mais cheia de matiz, plena de alusões mitológicas e de envolvimentos fantásticos” (idem). É possível argumentar que Missal, embora seja uma obra revolucionária em relação ao realismo-naturalismo e à poesia parnasiana, e a despeito de fragmentos de notável modernidade pré-cubista, como Navios (“Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro”), não pode ser comparada, no cenário internacional, a obras de maior voo inventivo, como o Igitur de Mallarmé ou Les chants de Maldoror de Lautréamont; no entanto, essa objeção se torna caduca frente a composições como esta, de Evocações:


Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a imitação da tua Sombra – sombra e silêncio d’espelho, sombra e silêncio refletidos do teu silêncio e da tua sombra, sombra e silêncio reproduzidos d’espelho contra espelho.

(...)

Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento, portanto, vida ingenitamente particular e nova, dirás tu na perfectabilidade da tua visão.

(...)

Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho.
Sempre este espelho – Homero contra este espelho – Virgílio.
Sempre este espelho – Shakespeare, contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante, ou contra este espelho – Hugo.
Sempre este espelho – Flaubert, contra este espelho – Zola, ou contra este espelho – Goncourt. 
Sempre este espelho – Baudelaire, contra este espelho – Poe, contra este espelho – Villiers e contra este espelho – Verlaine. 
Sempre este espelho – Ibsen, contra este espelho

– Maeterlink.


Notável, neste fragmento (Espelho contra espelho) – uma profissão de fé simbolista – o uso de recursos que seriam empregados, cerca de meio século depois, por autores como Gertrude Stein: a repetição hipnótica de frases ou palavras, com mínimas alterações ortográficas, fora de qualquer estrutura identificável de prosa ou poesia; a fratura sintática; o uso dos sinais de pontuação como intervenções de natureza gráfico-visual; a enumeração caótica (no caso, de autores venerados do cânone simbolista, com destaque para autores da linha “sério-estética”, na definição de Edmund Wilson, como Baudelaire e Verlaine, com a incompreensível exclusão de Rimbaud e Mallarmé e dos poetas da linha “coloquial-irônica”, Corbière e Laforgue). Um Cruz e Sousa distante das névoas parnaso-simbolistas, das imagens deliberadamente grotescas, da retórica sentimental, e muito próximo das experimentações semânticas das vanguardas das primeiras décadas do século XX, ainda não devidamente estudado por nossa crítica literária, tão avessa à contribuição simbolista.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BALAKIAN, Ana. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000.

CAMPOS, Augusto de. Re-Visão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CAMPOS, Augusto e Haroldo de. Re-Visão de Sousândrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.

CAMPOS, Haroldo de. A reoperação do texto. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.

CAMPOS, Haroldo de. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010.

GONÇALVES, José Aguinaldo. Cruz e Sousa (publicado na coleção Literatura Comentada). São

Paulo: Abril Cultural, 1982.

WILSON, Edmund. O castelo de Axel. São Paulo: Cultrix, 1985.


 [1] Em contraposição ao severo juízo de Haroldo de Campos sobre o autor de Missal, podemos pensar no comentário mais brando de Augusto de Campos, no livro Re-Visão de Kilkerry: “Hoje, depois que um Cruz e Sousa ou um Alphonsus de Guimarães encontraram, finalmente, o seu lugar ao sol, é preciso que se atente para que a justa retificação da crítica não descambe no vazio galardoamento acadêmico, em prejuízo de uma visão armada e lúcida daquele fértil período de nossa produção poética, com todas as suas implicações e consequências, quer positivas quer negativas. Um fato novo que a sensibilidade atual já pode entrever é a presença de uma vereda solitária e pouco palmilhada pelos ‘poetas maiores’ do movimento, mas de maior importância para a evolução de formas da poesia brasileira. Não quer isto dizer que um Cruz e Sousa e um Alphonsus de Guimarães não tenham contribuído para tal evolução, mas que essa diversa trilha, esse desvio que ora se pode lobrigar, quase clandestino e aparentemente sem saída, no bojo do Simbolismo, é, curiosamente, aquele que irá desembocar na moderna poesia brasileira, encontrando o seu devir histórico.” (CAMPOS, 1985: 19).

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