O UMBIGO DE DEUS
Parte 1 (A membrana): E
uma mosca não cansava de farejar o cu de uma estátua, o cu de um cristo já
crucificado. E minha cauda não era capaz de espantar o inseto, porque eu nada
sabia sobre o desespero da pedra. Antes da insônia dessa noite eu era matéria
sem memória, um peixe cascudo. Meus olhos nada sabiam dos pássaros suicidas-agonizantes
que nele habitavam. E ninguém podia adivinhar meu sofrimento, ninguém tinha
consciência que eu viveria por cem anos e por cem anos eu seria ridicularizada
porque sentia o falo de Deus apodrecendo minha vagina. Um clitóris-seixo ruindo
do nascimento a morte.
Parte 2 (O ovo e a
origem dos órgãos): Eu não era, porém o réptil amarelo soprou em minha boca
e eu inflei. Rodopiei sobre meu eixo e descobri meus seios. Deitei na cama do
meu carrasco, ele me convenceu que os orifícios-estigmas que eu trazia não eram
regiões abissais, mas fontes de um prazer supremo. Abri a boca e o deixei tocar
na campainha que tremia com qualquer grunhido. Conduzi suas mãos entre minhas
pernas e ele massageou a úvula acima dos pequenos lábios. O meu esfíncter se
rompeu e dele explodiu um sol rubro e fecundo. Ovulo. Coito anal. A humanidade
se expande no interstício entre o ruído e a merda. Na bifurcação do meu novo
corpo, agora apaziguado, um ovo habitava. Uma jararaca de rabo branco ameaçava
o bote.
Parte 3 (O cão trágico
ou o sepulcro do eu): Conheci outros parentes, outros bichos, outros carrascos
e todos dormiram sobre minha puberdade. E todos eles me enganaram desde a
infância, me fazendo acreditar que eu era insubstituível. E passaram-se anos e
eu chorei meus mortos e eles eram velados e encontrei outros homens de rosto
lixado e meus mortos foram cremados e esquecidos, viraram fuligem e seus nomes
não me lembro bem, homo sapiens homo erectus neantherdais homens da pedra
lascada e suas artes, única coisa eterna, agora viraram artes rupestres perdidas
em algum muro-asfalto da cidade. Me fizeram acreditar que eu era o grande cão
emplumado, que a qualquer momento alçaria voo, o bode de chifre de ouro. A
verdade é que eu sou um bode expiatório, o sangue jorrado da vulva pela sodomia
alheia. Tropecei, caí em buracos bem pequenos, cavei para enterrar ossos, o
fêmur do monstro branco que clareava o abismo, o monstro que restou de toda grandeza.
Ele, num dia que arrancava minha pele, me disse: Você é um lindo cão emplumado!
E deslizou a mão sobre meu dorso supostamente alado. Mas no espelho de moldura
alaranjada pregado naquele cubículo, eu reconheci meu carrasco, enquanto um mar
vermelho dividia-me ao meio. Olhei de novo para o pequeno espelho retangular e
vi que eu não passava de um cão vira-lata roendo o osso do eterno retorno.
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