Claudia
Roquette-Pinto é uma poeta que dialoga com a fotografia, as artes visuais, o
cinema, com a poética de autores como Paul Celan, Novalis e René Char, despertando
no leitor uma sensação de encantamento pela sutileza de seus jogos de
linguagem. A mitologia pessoal da autora, uma das vozes mais criativas da
poesia brasileira contemporânea, é bastante eclética, incluindo desde temas tradicionais
da poesia lírica como o tempo, o amor, a viagem, a morte, até pequenos retratos
brutalistas da violência urbana no Rio de Janeiro e de guerras que marcaram a
história do final do século XX, como o conflito em Saravejo (“Quando a vi, ali,
distraída / na escada do ônibus escolar, / nada me preparou para as suas pernas
abertas, / no meio a flor dilacerada / repetindo, entre as coxas, / o buraco da
bala no peito: / um dois pontos insólito”, lemos no poema Em Saravejo, do livro Margem de manobra). A poesia de Claudia
Roquette-Pinto é densa, por vezes enigmática, e revela uma autora que sabe
fazer o que quiser com as palavras. Seu livro de estreia, Os dias gagos, foi publicado em 1991, com texto de apresentação de
Paulo Henriques Britto, que destaca a sensibilidade musical e a qualidade
plástica dos poemas da jovem autora, que constrói estranhas arquiteturas
verbais, cheias de sinestesias e metáforas (“engole o que há de doce nos
metais”, “o cobre entristece como praias”, “um álcool que rimava com veneno”).
O próprio título do livro é uma figura de linguagem, a prosopopeia, que consiste na atribuição de qualidades humanas (como
a gagueira) a objetos inanimados ou seres irracionais (no caso, a percepção
subjetiva do tempo, presente também na temática de muitas peças do volume). Em Os dias gagos, Claudia Roquette-Pinto subverte
o soneto usando diferentes sequências estróficas (adotando inclusive o soneto
inglês, em que os 14 versos comparecem num único bloco, sem divisão estrófica),
linhas com medidas métricas diferentes, rimas imprevistas e inusitadas (jazz / pontapés, si / eclipse, city / zíper) e uma
sintaxe elíptica, recortada, que já prenuncia suas obras da maturidade. Saxífraga (título extraído de um poema
de William Carlos Williams), publicado em 1993, é um livro bem diferente e
revela o amadurecimento da poeta, que já tem pleno domínio da construção
poética. Conforme escreve Carlito Azevedo na “orelha” do livro, “tal como
Williams e os ‘objetivistas’ em geral, Claudia pratica em seus poemas uma
operação que consiste em isolar os objetos de seu contexto original, que os
banaliza, para observá-los (e dá-los a ver) em sua inteira estranheza, coisa-em-si”. Porém, adverte o autor, “Claudia é mais barroca e
vertiginosa em seu trato com as palavras; nela, a raridade da imagem e o
preciosismo do vocábulo cumprem a missão de explicitar nuances irredutíveis à
fala prosaica”. Um bom exemplo da poética de Saxífraga é o poema submerso:
“olho: peixe-olho que / desvia a mão enguia / a pele lisa a / te o umbigo e
logo / a flora de onde aflora / (na virilha) o / barbirruivo a / ceso bruto an
/ fíbio: glabro”, que tematiza a relação erótica, transfigurada em episódio
aquático (o que recorda a pintura maneirista e barroca e sua paixão pelo
monstruoso ou grotesco).
Zona de sombra, publicado em 1997, é um
dos livros mais expressivos de Claudia Roquette-Pinto e tem como epígrafe versos
de Paul Celan (“Dê também sentido ao seu dito: dê-lhe a sombra”). O livro é
ilustrado com reproduções de esculturas de Cristina Rogozinski, que dialogam
com o caráter plástico de várias composições do volume, como fósforo, colar, seixo, poemas em
prosa ou narrativas líricas construídas como um diário de sensações (“ela segue
dormindo na borda do lençol o que a acalenta não são flores – senão aquelas
mínimas rosas, pontas buliçosas de falanges a afiar seus instrumentos”, lemos
em fósforo). A peça mais curiosa do
livro talvez seja no éden, em que a
autora faz um strip-tease cheio de
humor negro: “peça a ela que se desnude / começa pelos cílios / segue-se ao
arame dos / utensílios diários / (...) é preciso que se arranque toda a face /
deixar que os olhos descansem / lado a lado com os sapatos / na camurça
oscilante / de um quarto”.
Corola, publicado em 2000, desloca o
foco de interesse da imagem para a música do pensamento. É um livro mais
pessoal e reflexivo, embora não caia no mero confessionalismo: a poeta se
expressa como enigma e labirinto: “desço no poço do silêncio / que em gerúndio
vara madrugadas / ora branco (como lábios
de espanto) / ora negro (como cego,
como / medo atado à garganta) / segura
apenas por um fio, frágil e físsil / ínfimo ao infinito”. Não por acaso, o
livro presta homenagem a Novalis (“cada pequena curva / tatua as idéias na
superfície ácida”, escreve Claudia), poeta-filósofo alemão, cuja lírica não é
menos enigmática. Margem de manobra, título mais recente da poeta, publicado em 2005,
traz uma lírica renovada, que sem abdicar do artesanato da linguagem volta sua
atenção para a realidade social brasileira e os fatos que acontecem no mundo.
Assim, por exemplo, em Santa Teresa,
peça concisa e afiada como a lâmina de uma navalha: “Azul explosivo / verde
lancinante / e o sol, onipresente, / halo / na cabeça da mulher escalpelada”. O
lirismo não está ausente nessa obra, apesar de tantas referências à violência
urbana carioca, a conflitos em Saravejo, no Tibete e no Vietnã: o tema amoroso
é habilmente reinventado em peças como Os
amantes sob os lírios, que dialoga com a pintura de Marc Chagall, e Kit e Port, refabulação do filme O céu que nos protege, de Bertolucci. A beleza ainda é possível, parece nos dizer a
autora, mesmo no centro vertiginoso do caos.
(Artigo publicado na edição de julho da revista CULT, acompanhado de poemas inéditos e fotos de Claudia Roquette-Pinto)
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