Vicente Huidobro (1893-1948) é o Colombo
da nova poesia na América Latina. Depois da renovação modernista de Rubén Darío
nas letras castelhanas, coube ao poeta chileno dar o passo seguinte, assimilando
os recursos formais do futurismo, do
cubismo e do surrealismo de maneira original e ousada. Em Poemas Árticos e Equatorial
(ambos de 1918), ele incorporou as "palavras em liberdade" de
Marinetti, suprimiu os sinais de pontuação, trabalhou a collage e o caligrama à maneira de Apollinaire, em grafismos icônicos que
estão na gênese da poesia visual.
Em Temblor de Cielo (1931), ensaiou
um poema em prosa construído como uma sequência de flashes, de imagens
alucinadas que recordam a pintura de Chagall. Sua obra central, no entanto, é Altazor (1931), um poema longo em sete
cantos em que o poeta operou a gradual desconstrução do texto, sinalizando a
dissolução do pensamento e da linguagem — e, portanto, da consciência — no caos
do barbarismo tecnizado contemporâneo. Essa é uma elegia à orfandade espiritual
do homem moderno, o cântico da "Queda", após o pecado original:
lírica sísmica, feita de abalos e rupturas.
Huidobro dedicou-se a este poema-limite,
redigido primeiro em francês e depois em espanhol, de 1919 a 1931; é, assim, um work in progress desenvolvido entre as
duas guerras mundiais. Alguns críticos censuram em Altazor uma suposta descontinuidade, a falta de unidade entre as
partes, pela diversidade estilística; o Canto I, o mais extenso, com cerca de
700 versos, é discursivo, fluente, ao passo que nos Cantos seguintes o discurso
vai sendo dilacerado, com o emprego de neologismos, palavras-montagem,
onomatopéias, até a fragmentação fonética e a irrupção do
"transmental" (ou zaúm) no
Canto VII. Essa aparente "desordem" na estrutura textual do poema
revela, justamente, o seu princípio normativo e ideológico: a coisificação do
caos, da quebra, da ruptura. Altazor,
assim como Trilce, de Vallejo, e os Cantos, de Pound, é uma sucessão de epifanias,
de mementos, uma montagem de ideogramas em profusão.
Conforme Bernardo Ruiz, "ao longo de
cada Canto se desenvolverão sete diferentes temas: no primeiro, a Queda; no
segundo, a Mulher; o Suicídio é o terceiro. A Separação, a Morte e a Noite
compõem o quarto Canto, enquanto o quinto descreve o Além e a consciência: o
transmundo. Finalmente, os dois últimos Cantos descrevem a aniquilação dos
sentidos e da consciência, quer dizer, da linguagem". Altazor tem como subtítulo "A viagem em pára-quedas",
indicando desde aqui o tema da viagem como queda, precipitação. A angústia do
personagem, conforme Guillermo Sucre, é "a impossibilidade de uma
aspiração ao absoluto", pela morte de Deus (anunciada por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra ). Em sua solidão
existencial e metafísica, abalada ainda pela guerra e pela ausência de uma
utopia, ele encontra refúgio na Mulher amada e posteriormente, na Morte: a
dissolução, na Noite, de toda consciência . O desejo de aniquilamento, de
mergulhar no Vazio original anterior à Criação (um tema caro ao romantismo
alemão, de Novalis a Wagner), se manifesta esteticamente na fraturamento dos
corpos verbais. A destruição, porém, tem a sua contraparte dialética, que é a
criação de uma nova linguagem _ e, portanto, de uma nova realidade — a partir
da remodelagem das partículas semânticas, numa quase que nova língua.
Essa tendência inicia-se no Canto V
("Não há tempo a perder”), em que Huidobro transforma substantivos em verbos e
verbos em substantivos; altera a função e o gênero dos objetos e das palavras;
cria neologismos pela amálgama de termos (“mandolina” + "ventania" =
"mandonia"); tece sequências rítmicas
de paronomásias a partir dessas recombinações semânticas (“La goloniña/
La golongira/ La golonlira" etc) ; e introduz, já no Canto IV, o tema
"zaúm", à maneira de Khlébnikov: "Uiu uiui/ Tralalí tralalá/ Aia
ai ai aaia i i". O Canto V dá continuidade a essa progressiva dilapidação
do sentido nas rimas monocórdicas da seção central do Canto: "Molino de
viento / Molino de aliento/ Molino de cuento/ Molino de intento". Porém, é
nos Cantos VI e VII que a dissolução/reconstrução verbal chega a seu ponto
máximo. Aqui, Huidobro realiza plenamente o ideário do Criacionismo, que ele
formulou pela primeira vez no manifesto Non
Serviam, lido no Ateneo de Santiago em 1914: “Podemos criar novas realidades
num mundo nosso, num mundo que espera sua fauna e flora próprias". Das
ruínas da lógica verbal fraturada, ele ergue um novo edifício, estranho, irreal, inquietante, desafiadoramente belo.
Essa arquitetura prometeica tem
início no Canto VI. Essa seção do poema
sugere uma irrupção de imagens, de ideogramas justapostos ("Vento flor/
seda cristal lento seda"). O discurso é abolido; não há verbos nem
sintaxe; o poeta pulveriza a relação causa-efeito e a sucessão início-meio-fim,
usando de uma lógica sincrônica; não há sujeito, nem ação, nem objeto. O texto
todo é construído como uma tapeçaria, um mosaico ou mandala, em que o
encadeamento de substantivos, de idéias-coisas recriadas ("cristal olho
cristal seda cristal nuvem") oferece a contemplação do sagrado: a
epifania. Esse aspecto de eternidade é reforçado pela ausência de qualquer
noção de espaço-tempo. Huidobro, "antipoeta e mago", faz da poesia a
sucessora da religião como mediadora entre os homens e o eterno.
O Canto VI é construído numa rigorosa estrutura musical.
Conforme René da Costa, "ao pronunciá-lo, percebemos padrões rítmicos da
poesia tradicional (...). O octassílabo e a repetição de fórmulas
características do romance servem como unificadores do ritmo, criando a ilusão
de poesia". Essa “ilusão” refere-se, sem dúvida, ao efeito paródico criado
pelo poeta, que, ao adotar uma melodia de inspiração folclórica, insinua um lirismo
impossível em um texto tão abstrato quanto este. De todo modo, essa seção do
poema, se é "estranha", "bizarra", "incompreensível",
ainda "parece" poesia. O golpe de misericórdia é dado no Canto VII, em que Huidobro destrói
a ilusão lírica e disseca a palavra em fonemas e letras, recombinando-as em
neologismos impronunciáveis. Neste Canto, Huidobro se aproxima dos experimentos
dadaístas e da linguagem transmental, ao mesmo tempo em que, pelo rigor
arquitetônico na disposição espacial, pelo uso do princípio do ideograma na
construção das palavras-valise e pela tessitura sonora polifônica, antecipa
processos da poesia concreta.
O Canto VII começa com um jogo de vogais
que recorda a onomatopéia e a linguagem das crianças: "Ai aia aia/ ia ia
ia aia ui". Aqui, ele utiliza apenas três letras (a, i, u),
combinando-as de quatro modos diferentes
(Ai, aia, ia, ui). Em seguida, prossegue a ladainha infantil, similar à
linguagem das histórias em quadrinhos: "Tralali/ Lali/ Lalá". Chamar isto de poesia, para alguns, seria uma
afronta. De fato, há aqui uma bufoneria paródica que dessacraliza a
"seriedade" da poesia, pela incorporação/transformação do banal, como
Joyce faria, mais tarde, no Finnegans
Wake. Após essa "introdução", o texto evolui numa seqüência de palavras-montagem
construídas a partir de fonemas de substantivos e sons abstratos inventados
pelo autor: "monluztrela" (montanha + luz + estrela),
"eternauta" (éter + nauta), "ululacente" (ulular + sufixo
ente) etc. O próprio nome "Altazor", diga-se de passagem, é uma
palavra composta: "alto" + "azor" (açor). O final do poema
remete ao tom infantil do início:
"Lalali/ io ia/ i i i o/ Ai a i ai a i i i i o ia", em que o
espaçamento entre as vogais e sílabas indica as pausas na leitura.
Apesar da aparente
incomunicabilidade do texto, que não possui qualquer nexo lógico em termos
cartesianos, o que surpreende é a sua capacidade de oferecer múltiplas
possibilidades de leitura. É uma obra aberta que, em sua extrema concisão
(apenas 65 linhas, divididas em duas páginas), concentra o máximo de informação
com o mínimo de recursos. Em Huidobro, como em Joyce e Cummings, há uma
inflação de significados. Esse aparente paradoxo do comunicável/incomunicável,
aliás, é o emblema de toda a poesia de invenção, desde Mallarmé até os dias de
hoje. Como sempre, o “incomunicável” torna-se "comunicável" após ser
ingerido/digerido pela indústria cultural e retransmitido, diluído, como
produto de cultura de massa ("mó, num pa tro pi"). O tabu se
transforma em totem.
(1992)
Nenhum comentário:
Postar um comentário