Eduardo Milán
A poesia
latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma
acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de
expressão. Em termos gerais, o retorno a um passado canônico (ou seja, aos
séculos dourados pela tradição: o XVI e o XVII) implica a fuga de um presente
caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos,
especialmente em sua aura, que auguravam uma tranquilidade espiritual
dependente de um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam
formas poéticas claramente tipificadas: o romance, a lira, o soneto etc., cuja
emergência em um tempo preciso supunha o surgimento de uma nova maneira de
poetar. Essa novidade, claro, supunha também uma carga crítica em relação ao
repertório formal da época.
Bem: a
novidade destas formas e sua carga crítica implícita estão agora perdidos para
sempre. E como o grau de novidade está perdido, o que tais formas comportam é a
possibilidade de retornar transparentes e veicular motivos e temas já altamente
codificados na poesia ibero-americana: o amor, a morte, o tempo, temas que
supõem uma caligrafia maiúscula. Na verdade, o retorno às formas canônicas do
passado, dada a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade. Uma
a-formalidade que só é possível pelo estado atual do mundo: perda da fé na
história como motor de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas como
históricas, o cessar do devir temporal, motivos caros a uma ideologia dominante
que tem seu fundamento no chamado “pensamento débil”, que por sua vez joga na
oposição os chamados discursos legitimadores e totalizantes. A a-formalidade,
produto por sua vez da intemporalidade que subscreve a presentificação de todos
os tempos interagindo agora, último golpe da negação da História, está em
conflito direto com a idéia de evolução das formas em arte, idéia muito cara à
modernidade, que sustentou o pensamento estético das vanguardas históricas.
Se todas as
formas em sua máxima abertura são possíveis é porque cessou o conceito de
evolução formal, de não repetição, de mudança. De um ponto de vista teórico, o
perigo que alimenta o diálogo atual entre estética e realidade é o retorno à
idéia luckacsiana da arte como reflexo da realidade, que tem seu apoio original
no conceito aristotélico de mímesis ou norma mediadora, norma que, no diálogo
arte — mundo, sustenta uma clara subordinação do primeiro ao segundo. As
variantes à norma ficariam assim abolidas e condenadas como degeneração da
idéia de “o que está no ar” ou da idéia do “espírito da época”, rumos
igualmente totalitários.
Por sua vez, a
busca de novos meios de expressão tem, a meu modo de ver, duas possibilidades:
o entroncamento com uma tradição libertária, que na lírica hispano-americana
foi fundada por Darío e se cristaliza com as vanguardas (Huidobro, Vallejo, o
primeiro Neruda, Girondo), ou então o resgate das margens deixadas pela
vanguarda em sua tentativa de lançar as bases de um koiné, ou língua única: o
detalhe, o matiz, a diferença, a variante dentro da variante, tudo o que, em
último caso, não nega uma tradição libertária, senão que, pelo contrário, tende
à sua correção, e, ao corrigi-la, amplificá-la. A primeira possibilidade conta
com o apoio do repertório formal da vanguarda (fragmento, simultaneidade,
colagem etc.). a segunda inclui um elemento muito em voga neste momento e
relativamente novo na poesia do século: a narração. À primeira vista, a
narração ocupa na poesia o lugar de flanco, da margem, frente ao repertório
canônico da vanguarda, daí que a incursão no elemento narrativo na poesia
latino-americana atual possa supor, em si mesma, uma alternativa. Porém,
vejamos como o elemento narrativo pode ser ideologicamente usado no marco do
cânone estético da assim chamada pós-modernidade, termo tentador para nomear os
tempos que correm. A narração está ligada diretamente à idéia ou à necessidade
de um vínculo com a tradição. E aqui começa o problema, o titubeio, a
contradição. Com efeito, ligar-se a quê, a qual passado temos direito, de que
tradição se trata?
Se bem que,
creio eu, foi a perda da fé nos motivos fundadores da vanguarda que
praticamente obrigou muitos poetas latino-americanos atuais a uma incursão
narrativa, também é certo que a estética do fragmento, pedra-de-toque do repertório
formal vanguardista, cessou de imperar estilisticamente não por falta de
coincidência ou de isomorfismo com uma idéia de um mundo estilhaçado (o mundo
contemporâneo), senão por um relativo esgotamento preceitual. Porém, este
preceito ou cânone segue correspondendo formalmente a um estado do mundo, o
qual, é preciso dizer, não mudou muito, além do campo ideológico. Isto parece
corroborar a suspeita de que a derrocada das utopias alcançou também o
território da arte com força inusitada.
O fragmento ou
sua estética parecem haver correspondido a um grau zero cultural, a um pé no
limite, depois do qual toda possibilidade de continuação suporia o abismo ou,
em termos poéticos, o silêncio. Chegando a esse ponto, algo parece estar claro;
o que existe atualmente como problema na poesia é o deslocamento entre uma
forma idônea para oferecer o mundo, a fragmentária, e o deslizamento do recheio
desta forma, o presente, rumo a outro tempo mais distante, mais seguro e mais
canônico: o passado. E o que produziu esse deslocamento, a meu modo de ver, é a
evaporação do correlato histórico da forma fragmentária, ou seja, as
possibilidades de mudança social. Agora, claro, esse retorno, essa retirada ou
esse desejo de unir-se com uma tradição, tudo o que implica voltar ao passado,
supõe alguns perigos. Implica um começar de novo ou, ao menos, uma reescritura.
Em A imagem histórica da Ilíada, Rudolf Borchardt adverte:
“Não há
diferença entre o espírito de uma tradição destruída e o de uma conservada.
Toda tradição está destruída. Os motivos decisivos estão sempre perdidos,
inclusive quando aparentemente foram transmitidos.”
Esta afirmação
de Borchardt povoa de cruzes nosso olhar ao passado e nos coloca,
aparentemente, no descampado, na desolação. Como tentar uma dura tarefa de
resgate se não se sabem nem sequer o que se vai resgatar?
A política
estética da pós-modernidade absorve essa consciência do passado. Partindo da
base que os laços com o passado estão rompidos definitivamente, vai buscar ali
os cumes eufóricos desse tempo, os momentos de maior prestígio — não os de
maior temperatura estética — e, em um efeito de mímesis atemporal, “recupera”
para o presente os momentos de opulência de um tempo que já nada tem a ver com
o passado, nem com o presente que derive dele. Deste modo, se des-historiciza o
passado e, em conseqüência, também o presente. Se instala assim um novo cânone
que dá brilho ao passado em virtude da perda da aura do presente e de uma cega
perda da fé no futuro, por considerar este tempo já perfeitamente conhecido em
seus distintos graus de erro. O futuro, para esta posição tão precisamente
ideológica, corresponde à já provada impossibilidade de uma verdadeira mudança no
campo social e, ao mesmo tempo, ao silêncio da escritura. Porém, o que supõe em
verdade esta recorrência ao passado prestigioso e seguro é uma abolição
temporal e, por isso mesmo, uma estética da simultaneidade (todos os tempos e todas as formas
estão aqui etc.). Ocorre algo mais grave ainda: se apaga assim, de um só
golpe, o próprio conceito de tradição. A tradição deixa de ser um produto, um
devir, um tecido, e a história perde seu efeito narrativo ao transformar-se em
“estágios de tempo”, em cristalizações que já não se ligam entre si. Desta
maneira o fragmento, desprendido de seu contexto estético, passa a ser a forma
da história. Finalmente, aqui aparece a função da narração: ela se torna o
recurso para encadear um tempo que não cessa de voltar para si mesmo. o relato,
a arte de narrar, passa a adquirir o sentido da história que, por sua vez, se
esvazia de significado. A narração poética corre, por último, o risco de ser a
forma legitimadora de um discurso histórico vazio.
Ante esse
panorama entrópico que resulta da emergência de todas as formas por
considerá-las possíveis neste momento histórico e a utilização ideológica da
narração como substituto simulado da história, cabe fazer, pelo menos, uma
pergunta: sob que ótica ou sob que padrão crítico pode julgar-se, hoje em dia,
um poema? A emergência de todas as formas interagindo, aliada a uma negação do
tempo e da história, supõe, à primeira vista, uma forma de inocência que, por
sua vez, comporta um tipo de olhar inédito em relação à origem. Porém, uma das
características do poeta moderno, isto já se disse mil vezes, é sua situação paradoxal
frente à modernidade: ao mesmo tempo que é um agudo crítico da modernidade,
recupera para si seu legado mais válido, que é, justamente, a crítica, tanto de
sua linguagem como do mundo. É isto que, em última instância, está em jogo
agora: o esquecimento ou a permanência da função crítica do poeta. A meu modo
de ver, frente ao impasse atual por que atravessa a poesia latino-americana, o
poeta deve ser mais lúcido do que nunca. A batalha contra o novo — como gostava
de dizer Leminski — é uma guerra perdida. E o novo passa hoje por uma
revalorização do passado. Revalorização, não retorno. E revalorização implica
uma re-historicização, um dar ao César do passado o que é do César do presente.
Quero dizer: a única possibilidade de re-historicizar o passado é vê-lo com os
olhos de hoje, posição muito contrária à simulação pós-moderna, que pretende, a
pretexto da intemporalidade, ver o passado com os olhos do passado, o que, em
última instância, implica o fim da tradição. Esta última posição, no que diz
respeito à poesia, tem a ver com a utilização das formas do passado. A
utilização de uma forma como o soneto, por exemplo, tal qual era usado por
Quevedo ou por Lope de Vega, pode constituir, em algum lugar, uma maneira de
homenagear uma forma em seu momento de esplendor. Porém, certamente constitui,
sem dúvida, para mim, mais uma maneira de homenagear uma fachada do que uma
forma integral. Só posso argumentar em relação ao que foi dito antes com uma
pergunta: se a vida é imprevisível, incerta e aleatória, por que deve a poesia
representar uma forma de máxima estabilidade?
Por que a
poesia deve tender à cristalização do movimento? Diz Buckminster Fuller: “Eu
não trato de imitar a natureza, mas de seguir os mecanismos que a regem”. O que
importa aqui é a palavra mecanismo. O que as formas fixas tendem a deter é
justamente o mecanismo da vida, que é fluxo e devir. Pretender negar o fluir da
vida é mais uma concessão à visão pura sobre a vida, uma negação da consciência
e o relegamento do poeta à categoria de ser inocente, concessão ao pior
espírito romântico. Por último, o recurso à forma fixa resulta ser, por mais
paradoxal que pareça, um privilégio do conteúdo sobre a forma, pela crença de
que o conteúdo pode, por si mesmo, modificar a forma. A melhor poesia ocidental
indica o contrário.
Tudo o que foi
dito anteriormente implica um parti pris.
Em suas reflexões sobre o Tractatus, em 1929, Wittgenstein dizia que o ético
consistia em “arremeter contra os limites da linguagem”. Arremeter, profanar,
transformar. Em termos poéticos isso implica ir além das formas fixas e contra
toda pureza tentar a criação de uma mestiçagem formal que só pode nos levar a
um conceito da forma como transitória. Nessa transitoriedade estaria situado o
entroncamento com a tradição libertária de nossa poesia, a tradição crítica,
sem temor ao pretenso esgotamento do repertório formal da vanguarda. Sem temor
a esse outro fantasma que percorre a poesia atual: o silêncio. De qualquer
maneira, como diz Jabès, “se escreve sempre sobre o fio do nada”. Do contrário,
os ventos da intemporalidade que sopram diariamente em nossa poesia podem
acabar com ela. Poesia: questão de futuro.
Tradução: Claudio Daniel
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