quinta-feira, 16 de agosto de 2012

POESIA: QUESTÃO DE FUTURO



Eduardo Milán

A poesia latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de expressão. Em termos gerais, o retorno a um passado canônico (ou seja, aos séculos dourados pela tradição: o XVI e o XVII) implica a fuga de um presente caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos, especialmente em sua aura, que auguravam uma tranquilidade espiritual dependente de um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam formas poéticas claramente tipificadas: o romance, a lira, o soneto etc., cuja emergência em um tempo preciso supunha o surgimento de uma nova maneira de poetar. Essa novidade, claro, supunha também uma carga crítica em relação ao repertório formal da época.

Bem: a novidade destas formas e sua carga crítica implícita estão agora perdidos para sempre. E como o grau de novidade está perdido, o que tais formas comportam é a possibilidade de retornar transparentes e veicular motivos e temas já altamente codificados na poesia ibero-americana: o amor, a morte, o tempo, temas que supõem uma caligrafia maiúscula. Na verdade, o retorno às formas canônicas do passado, dada a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade. Uma a-formalidade que só é possível pelo estado atual do mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas como históricas, o cessar do devir temporal, motivos caros a uma ideologia dominante que tem seu fundamento no chamado “pensamento débil”, que por sua vez joga na oposição os chamados discursos legitimadores e totalizantes. A a-formalidade, produto por sua vez da intemporalidade que subscreve a presentificação de todos os tempos interagindo agora, último golpe da negação da História, está em conflito direto com a idéia de evolução das formas em arte, idéia muito cara à modernidade, que sustentou o pensamento estético das vanguardas históricas.

Se todas as formas em sua máxima abertura são possíveis é porque cessou o conceito de evolução formal, de não repetição, de mudança. De um ponto de vista teórico, o perigo que alimenta o diálogo atual entre estética e realidade é o retorno à idéia luckacsiana da arte como reflexo da realidade, que tem seu apoio original no conceito aristotélico de mímesis ou norma mediadora, norma que, no diálogo arte — mundo, sustenta uma clara subordinação do primeiro ao segundo. As variantes à norma ficariam assim abolidas e condenadas como degeneração da idéia de “o que está no ar” ou da idéia do “espírito da época”, rumos igualmente totalitários.

Por sua vez, a busca de novos meios de expressão tem, a meu modo de ver, duas possibilidades: o entroncamento com uma tradição libertária, que na lírica hispano-americana foi fundada por Darío e se cristaliza com as vanguardas (Huidobro, Vallejo, o primeiro Neruda, Girondo), ou então o resgate das margens deixadas pela vanguarda em sua tentativa de lançar as bases de um koiné, ou língua única: o detalhe, o matiz, a diferença, a variante dentro da variante, tudo o que, em último caso, não nega uma tradição libertária, senão que, pelo contrário, tende à sua correção, e, ao corrigi-la, amplificá-la. A primeira possibilidade conta com o apoio do repertório formal da vanguarda (fragmento, simultaneidade, colagem etc.). a segunda inclui um elemento muito em voga neste momento e relativamente novo na poesia do século: a narração. À primeira vista, a narração ocupa na poesia o lugar de flanco, da margem, frente ao repertório canônico da vanguarda, daí que a incursão no elemento narrativo na poesia latino-americana atual possa supor, em si mesma, uma alternativa. Porém, vejamos como o elemento narrativo pode ser ideologicamente usado no marco do cânone estético da assim chamada pós-modernidade, termo tentador para nomear os tempos que correm. A narração está ligada diretamente à idéia ou à necessidade de um vínculo com a tradição. E aqui começa o problema, o titubeio, a contradição. Com efeito, ligar-se a quê, a qual passado temos direito, de que tradição se trata?

Se bem que, creio eu, foi a perda da fé nos motivos fundadores da vanguarda que praticamente obrigou muitos poetas latino-americanos atuais a uma incursão narrativa, também é certo que a estética do fragmento, pedra-de-toque do repertório formal vanguardista, cessou de imperar estilisticamente não por falta de coincidência ou de isomorfismo com uma idéia de um mundo estilhaçado (o mundo contemporâneo), senão por um relativo esgotamento preceitual. Porém, este preceito ou cânone segue correspondendo formalmente a um estado do mundo, o qual, é preciso dizer, não mudou muito, além do campo ideológico. Isto parece corroborar a suspeita de que a derrocada das utopias alcançou também o território da arte com força inusitada.

O fragmento ou sua estética parecem haver correspondido a um grau zero cultural, a um pé no limite, depois do qual toda possibilidade de continuação suporia o abismo ou, em termos poéticos, o silêncio. Chegando a esse ponto, algo parece estar claro; o que existe atualmente como problema na poesia é o deslocamento entre uma forma idônea para oferecer o mundo, a fragmentária, e o deslizamento do recheio desta forma, o presente, rumo a outro tempo mais distante, mais seguro e mais canônico: o passado. E o que produziu esse deslocamento, a meu modo de ver, é a evaporação do correlato histórico da forma fragmentária, ou seja, as possibilidades de mudança social. Agora, claro, esse retorno, essa retirada ou esse desejo de unir-se com uma tradição, tudo o que implica voltar ao passado, supõe alguns perigos. Implica um começar de novo ou, ao menos, uma reescritura. Em A imagem histórica da Ilíada, Rudolf Borchardt adverte:

“Não há diferença entre o espírito de uma tradição destruída e o de uma conservada. Toda tradição está destruída. Os motivos decisivos estão sempre perdidos, inclusive quando aparentemente foram transmitidos.”

Esta afirmação de Borchardt povoa de cruzes nosso olhar ao passado e nos coloca, aparentemente, no descampado, na desolação. Como tentar uma dura tarefa de resgate se não se sabem nem sequer o que se vai resgatar? 
A política estética da pós-modernidade absorve essa consciência do passado. Partindo da base que os laços com o passado estão rompidos definitivamente, vai buscar ali os cumes eufóricos desse tempo, os momentos de maior prestígio — não os de maior temperatura estética — e, em um efeito de mímesis atemporal, “recupera” para o presente os momentos de opulência de um tempo que já nada tem a ver com o passado, nem com o presente que derive dele. Deste modo, se des-historiciza o passado e, em conseqüência, também o presente. Se instala assim um novo cânone que dá brilho ao passado em virtude da perda da aura do presente e de uma cega perda da fé no futuro, por considerar este tempo já perfeitamente conhecido em seus distintos graus de erro. O futuro, para esta posição tão precisamente ideológica, corresponde à já provada impossibilidade de uma verdadeira mudança no campo social e, ao mesmo tempo, ao silêncio da escritura. Porém, o que supõe em verdade esta recorrência ao passado prestigioso e seguro é uma abolição temporal e, por isso mesmo, uma estética da simultaneidade (todos os tempos e todas as formas estão aqui etc.). Ocorre algo mais grave ainda: se apaga assim, de um só golpe, o próprio conceito de tradição. A tradição deixa de ser um produto, um devir, um tecido, e a história perde seu efeito narrativo ao transformar-se em “estágios de tempo”, em cristalizações que já não se ligam entre si. Desta maneira o fragmento, desprendido de seu contexto estético, passa a ser a forma da história. Finalmente, aqui aparece a função da narração: ela se torna o recurso para encadear um tempo que não cessa de voltar para si mesmo. o relato, a arte de narrar, passa a adquirir o sentido da história que, por sua vez, se esvazia de significado. A narração poética corre, por último, o risco de ser a forma legitimadora de um discurso histórico vazio.       

Ante esse panorama entrópico que resulta da emergência de todas as formas por considerá-las possíveis neste momento histórico e a utilização ideológica da narração como substituto simulado da história, cabe fazer, pelo menos, uma pergunta: sob que ótica ou sob que padrão crítico pode julgar-se, hoje em dia, um poema? A emergência de todas as formas interagindo, aliada a uma negação do tempo e da história, supõe, à primeira vista, uma forma de inocência que, por sua vez, comporta um tipo de olhar inédito em relação à origem. Porém, uma das características do poeta moderno, isto já se disse mil vezes, é sua situação paradoxal frente à modernidade: ao mesmo tempo que é um agudo crítico da modernidade, recupera para si seu legado mais válido, que é, justamente, a crítica, tanto de sua linguagem como do mundo. É isto que, em última instância, está em jogo agora: o esquecimento ou a permanência da função crítica do poeta. A meu modo de ver, frente ao impasse atual por que atravessa a poesia latino-americana, o poeta deve ser mais lúcido do que nunca. A batalha contra o novo — como gostava de dizer Leminski — é uma guerra perdida. E o novo passa hoje por uma revalorização do passado. Revalorização, não retorno. E revalorização implica uma re-historicização, um dar ao César do passado o que é do César do presente. Quero dizer: a única possibilidade de re-historicizar o passado é vê-lo com os olhos de hoje, posição muito contrária à simulação pós-moderna, que pretende, a pretexto da intemporalidade, ver o passado com os olhos do passado, o que, em última instância, implica o fim da tradição. Esta última posição, no que diz respeito à poesia, tem a ver com a utilização das formas do passado. A utilização de uma forma como o soneto, por exemplo, tal qual era usado por Quevedo ou por Lope de Vega, pode constituir, em algum lugar, uma maneira de homenagear uma forma em seu momento de esplendor. Porém, certamente constitui, sem dúvida, para mim, mais uma maneira de homenagear uma fachada do que uma forma integral. Só posso argumentar em relação ao que foi dito antes com uma pergunta: se a vida é imprevisível, incerta e aleatória, por que deve a poesia representar uma forma de máxima estabilidade?  

Por que a poesia deve tender à cristalização do movimento? Diz Buckminster Fuller: “Eu não trato de imitar a natureza, mas de seguir os mecanismos que a regem”. O que importa aqui é a palavra mecanismo. O que as formas fixas tendem a deter é justamente o mecanismo da vida, que é fluxo e devir. Pretender negar o fluir da vida é mais uma concessão à visão pura sobre a vida, uma negação da consciência e o relegamento do poeta à categoria de ser inocente, concessão ao pior espírito romântico. Por último, o recurso à forma fixa resulta ser, por mais paradoxal que pareça, um privilégio do conteúdo sobre a forma, pela crença de que o conteúdo pode, por si mesmo, modificar a forma. A melhor poesia ocidental indica o contrário.

Tudo o que foi dito anteriormente implica um parti pris. Em suas reflexões sobre o Tractatus, em 1929, Wittgenstein dizia que o ético consistia em “arremeter contra os limites da linguagem”. Arremeter, profanar, transformar. Em termos poéticos isso implica ir além das formas fixas e contra toda pureza tentar a criação de uma mestiçagem formal que só pode nos levar a um conceito da forma como transitória. Nessa transitoriedade estaria situado o entroncamento com a tradição libertária de nossa poesia, a tradição crítica, sem temor ao pretenso esgotamento do repertório formal da vanguarda. Sem temor a esse outro fantasma que percorre a poesia atual: o silêncio. De qualquer maneira, como diz Jabès, “se escreve sempre sobre o fio do nada”. Do contrário, os ventos da intemporalidade que sopram diariamente em nossa poesia podem acabar com ela. Poesia: questão de futuro.

Tradução: Claudio Daniel



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