terça-feira, 14 de agosto de 2012

NO VERSO DO REVERSO: AS IMAGENS DA FERA BIFRONTE


Susanna Busato

Poesia como mistério. Código a ser decifrado. Um reverso. Uma fera. Bifronte.

Enigmática, a esfinge pergunta ao poeta: “quem és tu?”. A investida do poeta dá-se com outra pergunta devastadora: “Quem me escreve?”. Rasgar a tal pergunta em outras tantas, construir atalhos e vias de acesso no terreno arenoso e labiríntico de que é feita a poesia, desconfiar de si e fingir perder-se para, na vã tentativa, ser resgatado pela própria dicção, eis a presença atônita do poeta, caminhando como um ser amaldiçoado, pelas veredas dos versos que cava no ritmo das imagens que projeta como prismas de si mesmo.

É assim que a poesia de Cláudio Daniel, em seu livro Fera Bifronte, vai dando corpo a esse ser de corpo incerto que assombra o sujeito: a poesia como “fera”, como “animal metafísico”, que “desliza aspereza até abolição de vocábulos”. Que no branco que anuncia (ameaça de sua presença), “sua mandíbula, / aberta como fenda sexual / interrogante”, insulta o poeta e o leitor antes de devorá-los: “Insulta-nos, a insaciada, / antes de castrar nossos olhos”.

Poesia como um corpo que se metaforiza em fera, que espreita o poeta “na sombra / de uma esquina / com sua capa cerimonial, / sua guadanha, / ávida por envolver-me / em lascívia”, e da qual o poeta se esquiva como um “nômade africano”, que também a ameaça: “Se ela vier buscar-me / neste poema, / não encontrará / a carne tensa, palatável, / apenas a efígie / de um perpétuo / fugitivo”.

Ser um fugitivo faz do sujeito, na poesia de Cláudio Daniel, ser a imagem poética da busca, e, consequentemente, sua poesia torna-se o lugar dessa busca e a protagonizadora de si mesma. Ao encenar a fuga, o sujeito tece a poesia como desejo do encontro com essa fera, para enfrentá-la naquilo que o poeta acredita ser sua existência: presença maldita, atávica, visceral, que habita o homem e que o degenera por instá-lo no mistério, “uma erótica de lâminas”. Eis aqui a imagem da sedução presente nesse corpo-a-corpo com a poesia, da qual o poeta não se aparta, muito embora dela procure refugiar-se em vão, pois dele ainda resta a “efígie / de um perpétuo / fugitivo”, como vem a dizer ao final do livro, como epílogo momentâneo a esse movimento labiríntico de procuras e fugas, que constrói a saga de Fera Bifronte.

Seria essa uma loucura erótica envolvendo a trajetória desse sujeito alucinado? Pode ser. Não consigo perceber uma separação radical entre loucura erótica e loucura poética. E em se tratando dos labirintos que os versos tecem, eu diria que a erótica está na natureza de uma semântica de vísceras e animais de pequenos que podem inspirar asco, ou de compleição mais severa, como baratas, formigas, lagartos, mexilhões, peixes, mariposas, borboletas, corvos, touros, grous, escaravelhos, cadelas; elementos atávicos como fósseis, ossos, e membros do corpo como cabeças, omoplatas, caralhos, testículos, falanges, mandíbula, cutículas, tetas. Elementos esses que instauram a presença do corpo no poema, um corpo que procura uma dicção poética para fazer perpetuar a palavra que se busca no âmbito dessa linguagem que lhe dá presença formal. Uma semântica que se desenvolve por via do paradigma do grotesco das angulações da carne do sujeito que habita o universo metafísico do poema.

Ao ler Fera Bifronte, a força semântica das palavras me leva a perseguir uma trajetória de fuga da própria semântica. O que é paradoxal, pois, ao construí-la, vai o sujeito dessa trajetória no poema percebendo-a como a trajetória de uma “anti-realidade”, ou seja, da própria poesia, que o impele a defrontar-se com ela, expressando seu horror pela descrição do modo como a concebe na realidade surreal das imagens que constrói nesse caminho. Essa realidade como “anti-”, como oposta à realidade que acreditamos como segura, revela-se numa aparição que beira o grotesco na descrição eminentemente visual que predomina na dicção deste sujeito ameaçado. A visualidade das imagens está ligada a uma construção poética que prima por levar para o plano do sintagma um paradigma que dribla o leitor pelas figuras que tece ao longo dos versos. Figuras que, justapostas, vão construindo uma metáfora infinita em cromatismos e formas geométricas de percepções particulares, sensações do sujeito que adentra um território estranho.
       

O sujeito vai buscar, nos referentes do mundo, o material para resgatar o sentido outro das coisas. O sentido dos referentes é obnubilado, pois tais referentes entram num jogo metafórico de presença e ausência, ou seja, estão lá mas não são eles mesmos, pois fazem parte de uma enumeração de sensações que emanam do sujeito e que procuram por todas as formas fazer representar a tensão ou o caos em que o sujeito se revela descentrado. Percebe-se o trabalho minucioso com a linguagem de modo a entretecer as figuras que brotam desta realidade num jogo labiríntico, a fim de, por um processo caótico de sobreposição, eclodir a procura do sujeito pela poesia e por si próprio. Seu encontro (mais feito de desencontros e incertezas) se dá no labirinto dos versos, “no extravio das hipóteses, / expansão de territórios / fermentando fêmures / (ruínas de um vocabulário; / escura caligrafia / rasurando crânios). // desfoliante na curva do vento, / onde o leão do labirinto / recifra-se em ecos.//”, como asseveram os versos de “Escrito em osso”.
      

Interessante como a poesia de Cláudio Daniel vai nos fornecendo os caminhos, íngremes evidentemente, para a sua fera se expor aos poucos. O procedimento metalingüístico avança, a cada passo de sua dicção, ao encontro dessa fera, que também se aproxima e invade o cenário, este cada vez mais hermético e retorcido por uma semântica nada fácil. Há ecos de um preciosismo retórico nesta poesia, aliado a uma busca metafísica por dizer o mundo, o que é relido aqui diante de uma linguagem que performatiza o seu próprio caos. Essa obscuridade semântica aproxima-se de um barroco intrincado, que tem na figura do labirinto a rede necessária para propor ao leitor as coordenadas de um enigma. Postar-se barrocamente nesse labirinto é encenar uma retórica de um discurso poético que se deseja oposto a uma poesia fácil, comunicante de circunstâncias, de sentimentos e certezas. O jogo labiríntico das imagens procura resgatar do cotidiano das palavras uma dicção regeneradora dos conteúdos (ou desconstrutora dos mesmos). A saída encontrada por essa semântica intrincada tem como eixo o princípio da dialética barroca, relida pela poesia contemporânea como um traço que resgata não somente o barroco em si, mas também os desdobramentos que a poesia dos simbolistas franceses, por exemplo, construíram para a modernidade: fragmentação do discurso, correspondência de opostos, comparações inusitadas, reflexão sobre a composição poética, exotismo como forma de atingir metafisicamente uma outra realidade, presença do grotesco e do erótico como elementos que metaforizam o revés das coisas, no intuito de instaurar o caos necessário para uma nova percepção do presente. Por mais que o preciosismo vocabular predomine na linguagem poética de Fera Bifronte, não há como não perceber uma consciência perceptiva para o agora do sujeito, um agora agonizante, porque obcecado pelo olhar irônico que rasura a paisagem dos referentes do mundo, oferecendo no lugar a rusticidade da expressão poética que recusa, paradoxalmente, a semântica.
      

Eis o que declaram os versos do poema “Escrito em osso”: “Fósseis argumentos / Esqueléticas grafias / Autofágica página / Inescrita, devoluta. //. Este poema propõe ao leitor um jogo gráfico, em que, num processo intercalado, as estrofes são escritas em itálico e também em tipo redondo. Como compreender essa alternância? Se nos atentarmos à sintaxe dos versos, perceberemos o uso de sintagmas nominais na sua maioria, o que traz para o poema uma dicção mais apartada, mais objetiva, de natureza descritiva que apela para a construção imagético-visual dos elementos que enumera, cuja concretude é de difícil percepção. Eis a razão da excessiva descrição imagética desse “algo” inefável, que só se corporifica no rol das imagens. De forma geral, na poesia de Fera Bifronte, o caráter da imagem é uma faca de dois gumes: encena o objeto, dando-lhe corpo; e oblitera nosso contato direto com ele, que se desloca o tempo todo, pois sua natureza líquida, “leprosa”, como “falange deslabiada contradição / entre memória e mundo”, movimenta-o para a coreografia tecida pelo sintagma irresoluto muitas vezes. O hermetismo da poesia aqui é alcançado e é inevitável.
       

A alternância de fontes gráficas no poema “Escrito em osso” pode sugerir um jogo de vozes. Um processo conhecido já na poesia barroca como labiríntico e permutatório na sua estrutura, aparece aqui numa configuração semelhante na qual as estrofes podem ser lidas linearmente, como aparecem na sequência do poema, ou ainda alternadamente, numa leitura em que as estrofes em tipo itálico podem ser lidas em conjunto, separadamente das estrofes em tipo redondo, em qualquer ordem. Essa possibilidade é dada também pela notação breve de cada estrofe, que prima pelo uso de sintagmas nominais. A “ação”, ou “sequência”, que daria o movimento à leitura das estrofes, encadeando-as numa progressão até o fim, e que é fruto da própria intervenção do leitor nessa ordem que a página impressa dá ao poema, é interrompido. Ao ler o poema, o leitor busca o referente, numa operação inevitável, fruto de um automatismo da língua, do olhar e de um dizer com fins pragmáticos. Ao se deparar com os versos que remetem para si próprios (“autofágica página / inescrita, devoluta.//”), o sentido da leitura já é dado, o início do poema é deslocado: o gesto autoreflexivo da escrita, que se questiona desde o início e que se percebe vazio: “Extinção de estrela ou / mudez do mar.//”. E que percebe na própria escrita o dado humano que a contradiz como verdade e automação: “Pois toda história humana / É um volume fechado / De cíclica desleitura.//”.
       

O que o poema deseja, então? Trazer à tona o sujeito ciente do caos de toda escrita? Leiam-se as “palavras desventradas / da cadela, sons fecais / em hinos de desmemória.//” propostas como uma dicção estranha, enraizada num desejo de releitura da escrita poética, alegorizada aqui como um ser monstruoso, mítico, que atordoa o poeta. Eu diria que, ciente do caos, o sujeito propõe o seu jogo numa semântica que se compraz: “no extravio das hipóteses, / expansão de territórios / fermentando fêmures // (ruínas de um vocabulário;/ escura caligrafia / rasurando crânios). // desfoliante na curva do vento, / onde o leão do labirinto / recifra-se em ecos.// (...)”.
       

A mesma configuração labiríntica se percebe no procedimento de permutação e experimentação dos sentidos, que ocorre nos poemas de “Estudos de anti-realidade”, de “Linhas” e do par “Orum” e “Muro”, poemas escritos em espelho, sendo a configuração do primeiro a imagem refletida do segundo, que tem a sua estrutura original numa ordem mais desmembrada, em estrofes numeradas.
       

A pergunta que faço agora é: como o sujeito se posiciona diante dessa escrita que procura “(destrinchar o mapa celeste / com cálculos e equações / até o nada absoluto.)” ? O sujeito adentra essa atmosfera subterrânea e obscura das imagens e se autodeclara: “sou espectro de mim.”; “sou alimária de mim”; “ sou descosturado de mim”. Este sujeito aproxima-se da linguagem obcecado pelo exotismo e pela abstração das imagens, recuperando um universo poético necessário para a tessitura de seu embate com a poesia. Eis a saga a que nos referíamos; uma saga que se resolve em Fera Bifronte pelo viés da imagem de uma ossatura lingüística e de uma semântica rochosa, hermética e autofágica.
       

O desenho poético que se instaura na obra, portanto, elege um discurso que se pauta por uma erótica da dicção, cujos meandros, ou labirintos das imagens por rotas prescritas pela sintaxe fraturada, organizam a persona deste ser que persegue e é perseguido pelo objeto de sua obsessão amorosa, o qual contempla na sua forma os traços. É pela dicção do poema que a poesia performatiza essa erótica da forma que se busca como amante. A imagem da fera de duas caras, como bem relembra o poeta E. M. de Melo e Castro, no posfácio ao livro, traz na sua natureza o mito de Janus, o deus romano que simboliza a dialética das idéias. Esse ser bifrontal anima a poesia (se não for ela mesma) que entorna no poeta a dialética do ser poeta, o que lhe confere o status de amaldiçoado, pois vive o plano da busca por deslindar a escrita como representação da rarefação dos sentidos. Rarefação da semântica das palavras, eu diria.
       

Isso em parte contempla a desmesurada dimensão das imagens que vão construindo uma semântica rara na obra, que parte de um preciosismo vocabular cujo hermetismo envolve de mistério essa busca que se transforma em fuga manifesta ao final do livro. São as dimensões de espaço e tempo que se aninham na dicção do poeta, no poema “Muro”, por exemplo: “Aqui começa / o lento processo / da supuração. // Até consumir todo o olhar, / e desfazer a pele / obsoleta. // Até a desaparição do mar,/ apenas um eco / guardado / no relógio.// Esse “lento processo” de supurar, de consumir e ceifar, que vai aparecendo no poema, envolve um tempo responsável pelo fazer desse olhar do poeta, cuja dimensão espacial vai se constituindo aos poucos por via de elementos inusitados: “figuras retorcidas, no muro, / sombras de árvores- / anãs.// Um espaço que tem no grotesco de sua expressão imagética o tom de um universo em caos, miríade de “antigas amputações”. Um espaço feito de resíduos, de tempos, de fragmentos de corpos que amputam o sentido: “Porque nada mais faz sentido, / disse com a língua, / os mamilos, / os genitais.// Os primeiros versos do poema Muro trazem para nós a estranheza desse universo: “Uma voz cega, trevos roxos e essa aspereza ceifando,/ ceifando.” É desse “muro” construído pelo poeta, ponte que obstrui e oblitera seu caminho, que surge uma: “Folha / amarela / de um álbum vegetal - / dali a fera salta, / está saltando; / dali a fera canta, / está cantando.” Seu cantar não transfere mais sentido, mas, dialeticamente, irrompe para uma outra ação que promete mudança de rota: “Então, alguma coisa / mudou isso / - folha de relva / cai no asfalto, / um cão late / para sua sombra -.” O leitor atento a esse acontecimento/promessa de mudança de rota encontra-se com a série “Enigmas”.

O poema “Enigma (I)” traz o silêncio figurativizado por um labirinto imagético onde sol, minério ou casulo, imagens que remetem à vida são negadas pela presença do silêncio, espaço que metafisicamente constrói no poema uma abertura em espelho para uma propagação de imagens possíveis que nascem do “occipital do neblí” (osso que aloja o órgão da visão do falcão), imagem que se sobrepõe ao que seria óbvio, “a metáfora / de uma estrela.”, desinventando-a. Esse processo especular propaga uma outra metáfora: desinventar metáforas é criar outras, pois ao negar a invenção da metáfora “de uma estrela”, cria-se uma janela para o objeto expandir-se em outras.
       

Na série “Enigma”, o poema/poeta se busca na escrita, questionando a voz que escreve nele a “desmesurada escrita de ninguém” (Enigma III). A transformação na fome é o mote, aliás, de todo o livro, cuja poesia se busca nas imagens oníricas, singulares, enigmáticas, que se manifestam em estruturas sintagmáticas que, “abolindo delicadezas” (Enigma II), reinventa um tempo multiplicando o mistério da realidade pelas forças de um prisma, que é o próprio poema concebido como uma dessimetria óssea ou como uma “paisagem de linhas / retorcidas” que é absorvida pela “autofágica garganta” do poema.
       

Assim são os versos da série “Prisma”. Cinco prismas-poemas expandem os versos num processo de permutação de palavras, criando imagens outras, relativizando um dizer as coisas, assumindo literalmente que: “tudo é um jogo / de ossos / como saltar / à corda, / piscar / os olhos, / remoer / a canção. / tudo é cinema / mental.” (“Prisma II”). Em “Prisma I”, a série dos versos dizem que “toda palavra / é um labirinto / (retrocita / corvo lunar), / (subreptício réptil / foge / entre folhas).” Em “Prisma III”, retoma-se a sequência num deslocamento sintagmático: “tudo / é cinema / mental, / praias / e palavras, / pilhas de ossos / odres. / alguma porta / ou nenhuma, / esta / ou aquela, esse caminho, / qual caminho?”. Pergunta que ecoa em “Prisma IV”, como “este caminho, / nenhum caminho / (tudo) / (é labirinto), / entre piçarras / e rudimentos / de papoulas, /”; e que termina em “Prisma V” num ritmo que acentua na aceleração dos versos curtos e na alternância tônica das vogais fechadas em /e/ e /a/ e em /u/ e /i/, formando rimas que soam a contundência do discurso, que afirma que “tudo / o que escrevo / tudo / o que escavo / tudo / o que escuto / tudo / o que escarro / tudo o que esqueço / me deslinda, / desatina, / desafina, / desarvora, / desenflora, / entre amarelos / e lanugens, / entre larvais / e mentais, / entre o que / pensa / e o que / sente, / entre o que / mente / e o que / muda, / entre o que / canta / e o que / encanta, / entre / mundo / e nada.”
       

A série “Prisma” elabora aquilo a que faz menção no corpo dos poemas: projeta prismaticamente as palavras em combinações outras, como num jogo de dados, cujas relações vão construindo o próprio sentido da relativização dos sentidos. O processo permutatório e combinatório, de extração barroca, fazem emergir no plano da sintaxe dos poemas sua natureza lúdica, cuja única certeza no espaço movediço em que “retrocita / labirintos”; em que o estar “entre” (“entre fetos / e rudimentos / de búfalo, / entre cristais / e um agudo senso / de coágulo”) é condição para que a imagem surja obnubilada, pois o processo em que se encontra é o de representar o processo caótico em que o sujeito se insere: o de estar submerso e submetido às razões da própria poesia, essa “fera” que habita o próprio poeta e a linguagem.
       

Fera Bifronte traça, enfim, um roteiro que perfaz o percurso imagético de uma linguagem que se faz poesia na medida em que o sujeito, frente à imagem da fera que inaugura o livro, traz, logo em seguida, em “Escrito em osso” uma dicção que metalinguisticamente alude a duas dimensões: a de uma memória de escrita, espécie de fóssil presente; e a de um sujeito que se submete a perscrutar na sua língua interna os espectros de si mesmo. Espectros que se transformam em imagem agônica, de um mundo em caos.

       
Nos poemas, o plano do sintagma constrói um roteiro da relação do poeta com a poesia. Do poema que abre o livro, “Fera”, o sujeito descreve a essência por meio de imagens visuais e cromáticas, cuja geometria assimétrica nos sugere uma grotesca figura, estranha, que já anuncia para o leitor a linguagem de “asperezas”, de figuras “assimétricas”, de “enigmas” de que é feita: “Animal metafísico desliza aspereza até abolição de vocábulos. / Uivos óticos; / patas enviesadas; / fileiras assimétricas de vértebras, / códices de enigmas ósseos.”

       
A “dessimetria óssea” a que nos referimos não é apenas uma imagem, mas um procedimento sintático-semântico que gera os filamentos do verso, cujo ritmo dá forma à visualidade da trajetória e dos objetos que se insurgem para o sujeito como elementos simbólicos da própria poesia: a serpente e a flor, por exemplo.
       

À maneira de uma escrita em labirinto, a poesia de “Linhas”, por sua vez, vai construindo um movimento “dificultoso” que expõe a dinâmica da escritura. Não há como não perceber a reflexão crítica sobre a linguagem poética, feita do tecer constante do discurso que se autodevora em projeções de linhas/versos, que se realocam buscando seu sentido num processo de permuta que vai promovendo semioses.
       

O sentido das linhas está no próprio procedimento: “no espaço expandido [do verso]”, “em sequência infinita”, a partitura do poema reinventa o tempo, “multiplicando mistérios / e sentidos” nas “linhas [que] atravessam cores em planos precisos”. Interessante o jogo de montagem a que está submetida a escritura, retomando um procedimento de natureza barroca que tem como função repensar o próprio código. A metalinguagem ressoa e avança no entrelaçamento com a função poética da linguagem que reagrupa os versos na “máquina lírica” da poesia de Fera Bifronte.
       

Como a linguagem consegue tecer uma semântica labiríntica, envolvendo o leitor numa trilha de surpresas, de realidades surreais, vertiginosas e violentas na sua ácida e árida paisagem de animais e imagens voláteis de facas afiadas? Uma anti-realidade é tecida por uma ironia ao já conhecido para oferecer a contraparte de um sujeito que expõe sua percepção bifrontal do mundo, seu faro/falo de fera. E o que viria a ser essa forma bifrontal de perceber e ser percebido pelo leitor? Há na poesia de Fera Bifronte a construção de imagens inusitadas que singularizam a percepção e que constroem um espaço espacializante de formas pouco nítidas e rarefeitas. Alguns exemplos temos em: “só o silêncio duplicado em orquídea” (de “Enigma I”); “minha fome vertebrada” (em “Rapto”); “a contradição de um crustáceo” (em “Caranguejo”); “Em branco aniquilar” (em “Fera” 1); “faz do breu uma erótica de lâminas” (em “Fera” 2).
       

As construções dos núcleos sintático-semânticos vão criando esferas fechadas e cuneiformes, para me valer da imagem da cunha, instrumento de dilaceração do material do artista para sulcar nele um espaço, uma forma, assim como o escultor usa o seu cinzel, dobrando e redobrando a superfície da pedra; assim como o poeta, por via sintática e sonora, vai redesenhando o material lingüístico que retira do mundo e lhe devolve com todas as arestas das quais o próprio mundo é feito. Ou seja, a realidade é submetida a um estudo que entrevê nela uma anti-realidade. Ou ainda, uma realidade que pensamos conhecer, mas que se apresenta estranha pela focalização fotocinematográfica de seus elementos mais evidentes. A série “Gabinetes de curiosidades” revela um “horror show” irônico no elemento semântico “shop” que acompanha a artificialidade (implícita no valor de compra dos objetos inseridos nesses espaços) das imagens do sexo (onde surge “um singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais”), do animal como “pet” (onde “Pandas traficados de Pequim jogam dados com lagartixas da Ucrânia”) e da presença humana ironicamente descrita por um recorte metonímico e uma construção metafórica que estranham a obviedade no espaço de um “coffee shop” (onde “Cabeças de executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras”) .
       

Em “Fera Bifronte”, o jogo poético é armado logo no início e convida o leitor a participar de seus percalços imagéticos, de seu tom surreal e simbólico das figuras que encenam uma gestualidade quase mítica, inaugurando uma “anti-realidade”, um universo que se oferece como resposta quase que violenta a uma realidade mais circunstancial. Talvez pudéssemos dizer que a fera que nasce logo no início do livro performatiza a crise de uma realidade da qual o poeta procura escapar para retornar a ela por seus interstícios, deflagrando nela sua violenta presença para o sujeito que no poema a nomeia como um “cinema insano / que alguns chamam / realidade”.
       

O adensamento do enigma para o sujeito revela-se em silêncio, em um não-dito ainda; revela-se também como o desejo por descobrir algo que permanece sob a “capa” da realidade, do referente imediato do mundo. Talvez por isso as imagens desse enigma se presentifiquem no poema por figuras que aludem a um universo subterrâneo, surreal, de onde surgem “incisões, talvez sombras, / tão híbridas que vociferam; / lupinas alinhadas abolindo / delicadeza; guturais, / obcecando / lúpulo”. Esse universo desconhecido é percebido grotescamente na sua violenta aparição para o sujeito e para o leitor: uma “desmesurada escrita de ninguém”, uma “fome obscura” em que o próprio poema se transfigura. Eis o verso em seu reverso de fera.

(Resenha publicada no site Cronópios)

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