sábado, 4 de abril de 2015

POEMAS DE OSWALD DE ANDRADE



CÂNTICO DOS CÂNTICOS PARA FLAUTA E VIOLÃO

 oferta

Saibam quantos este meu verso virem
Que te amo
Do amor maior
Que possível for


canção e calendário

Sol de montanha
Sol esquivo de montanha
Felicidade
Teu nome é
Maria Antonieta d' Alkmin
No fundo do poço
No cimo do monte
No poço sem fundo
Na ponte quebrada
No rego da fonte
Na ponta da lança
No monte profundo
Nevada
Entre os crimes contra mim
Maria Antonieta d' Alkmin

Felicidade forjada nas trevas
Entre os crimes contra mim
Sol de montanha
Maria Antonieta d'Alkmin

Não quero mais as moreninhas de Macedo
Não quero mais as namoradas
Do senhor poeta
Alberto d'Oliveira
Quero você
Não quero mais
Crucificadas em meus cabelos
Quero você

Não quero mais
A inglesa Elena
Não quero mais
A irmã da Nena
Não quero mais
A bela Elena
Anabela
Ana Bolena
Quero você

Toma conta do céu
Toma conta da terra
Toma conta do mar
Toma conta de mim
Maria Antonieta d'Alkmin

E se ele vier
Defenderei
E se ela vier
Defenderei
E se eles vierem
Defenderei
E se elas vierem todas
Numa guilanda de flechas
Defenderei
Defenderei
Defenderei

Cais de minha vida
Partida sete vezes
Cais de minha vida quebrada
Nas prisões
Suada nas ruas
Modelada
Na aurora indecisa dos hospitais

Bonançosa bonança.


convite

Escuta este verso
Qu'eu fiz pra você
Pra que todos saibam
Qu'eu quero você


imemorial

Gesto de pudor de minha mãe
Estrela de abas abertas
Não sei quando começaste em mim
Em que idade
Em que eternidade
Em que revolução solar
Do claustro materno
Eu te trazia no colo
Maria Antonieta d'Alkmin


Te levei solitário
Nos ergástulos vigilantes da ordem intraduzível
Nos trens de subúrbio
Nas casas alugadas
Nos quartos pobres
E nas fugas


Cais da minha vida errada
Certeza do corsário
Porto esperado
Coral caído
Do oceano
Nas mãos vazias 
Das plantas fumegantes


Mulher vinda da China
Para mim
Vestida de suplícios
Nos duros dorsos da amargura
Para mim
Maria Antonieta d'Alkmin


Teus gestos 
Saíram dos borralhos incompreendidos
Que tua boca ansiosa
De criança repetia
Sem saber
Teus passos subiam
Das barrocas desesperadas 
Do desamor
Trazias nas mãos
Alguns livros de estudante
E os olhos finais de minha mãe


alerta

Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade.


fabulário familiar

Se eu perdesse a vida
No mar
Não podia hoje
T'a ofertar
Os nevoeiros, as forjas, os Baependis


acalanto

Acuado pelos moços de forcado
Flibusteiro
Te descobri

Muitas vezes pensei que a felicidade sentasse à minha mesa
Que me fosse dada no locutório dos confessionários
Na hipnose das bestas-feras
No salto mortal das rodas-gigantes
Ela vinha intacta, silenciosa
Nas bandas de música
Que te anunciavam para mim
Maria Antonieta d'Alkmin

Quando a luta sangrava
Nas feridas que sangrei
C'o alfinete na cabeça te deixei
Adormecida
No bosque
T'embalei
Agora te acordei 


relógio

As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão


compromisso

Comprarei
O pincel
Do Douanier
Pra te pintar
Levo
Pro nosso lar
O piano periquito
E o Reader's Digest
Pra não tremer
Quando morrer
E te deixar
Eu quero nunca te deixar
Quero ficar
Preso ao teu amanhecer


dote

T'ensinarei
o segredo onomatopaico do mundo
Te apresentarei
Thomas Morus
Federico García Lorca
A sombra dos enforcados
O sangue dos fuzilados
Na calçada das cidades inacessíveis
Te mostrarei meus cartões postais
O velho e a criança dos Jardins Públicos
O tou-tou de dançarina sobre um táxi
Escapados ambos da batalha de Marne
O jacaré andarilho
A amadora de suicídios
A noiva mascarada
A tonta do teatro antigo
A metade da Sulamita
A que o palhaço carregou no carnaval
Enfim, as dezessete luas mecânicas
Que precederam teu uno arrebol


marcha

Todos virão para teu cortejo nupcial
A princesa Patoreba
Coroada de foguetes
A Senhora Dona Sancha
Que todos querem ver
O tagolomango
E seus mortos mastigados
Nas laboriosas noites processionais

Todos comparecerão
O camarada barbudo
O bobo-alegre
O salvado de diversos pavorosos incêndios
O frade mau
O corretor de cemitérios
E onde estiver
O Pinta-Brava
Meu irmão
Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé
Não quero sombra de cera
Nem noite branca de reza
Quero o velório pretoriano
De Sócrates
Não o bestiário
De Casanova
Não quero tochas
Não quero vê-las
Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé
O tio da América
A igreja da Aparecida
O duomo de Milão
O trem, a canoa, o avião
Tudo darei às mesas anatômicas
Do mastigador d'entranhas


himeneu

Para teu corpo
Construirei o dossel
Abrirei a porta submissa
Ligarei o rádio
Amassarei o pão


black-out

Girafas tripulantes
Em paraquedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
Nem borboletas
Nem açucenas
A carne apenas
Das anêmonas
Na espingarda 
Do peixe-espada
Transcontinental ictiossauro
Lambe o mar
Voa, revoa
A moça enastra
Enforca, empala
À espera eterna
Do Natal


mea culpa, lear

Na hora do fantasma
Entre corujas
Jocasta soluçou
O palácio de fósforo
Múltiplas janelas
Desmaiou 

-Por que calaste o sino
 Meu filho, filho meu!
-Dei, dei, dei
-Onde puseste os reinos e as vitórias
 Que minha estranha serenidade prometia?
-Era usurpação. Paguei
-Passaste fome?
-Muitas vezes comi as marés de meu cérebro


encerramento e gran-finale

Nada te sucederá
Porque inerme deste o teu afeto
No soco do coração
Te levarei
Nas quatro sacadas fechadas
Do coração
Deixarei de ser o desmemoriado das idades de ouro
O mago anterior a toda cronologia
O refém de Deus
O poeta vestido de folhagem
De cocos e de crânios
Alba
Alfaia
Rosa dos Alkmin
Dia e noite do meu peito que farfalha

Ao teu lado
Terei o mapa-múndi

Em minhas mãos infantes
Quero colher
O fruto crédulo das semeaduras
Darei o mundo
A um velho de juba
A seu procurador mongol
E a um amigo meu
Com quem pretenderam
Encarcerar o sol

Viveremos
O corsário e o porto
Eu pra você
Você pra mim
Maria Antonieta d'Alkmin

Para lá da vida imediata 
Das tripulações de trincheira
Que hoje comigo
Com meus amigos redivivos
Escutam os assombrados
Brados da vitória
De Stalingrado


São Paulo, dezembro de 1942.


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