terça-feira, 22 de maio de 2012

UMA CONVERSA COM AUGUSTO DE CAMPOS


Augusto de Campos é um poeta com vocação para o futuro. Na época do “pós-moderno”, que se traduz no retorno a formas neoclássicas ou numa releitura do Modernismo dos anos 30, ele insiste em “desafinar o coro dos contentes”. À margem da margem, recusa o tom confessional e discursivo e insiste na busca da beleza difícil. Com os novos recursos oferecidos pela informática, Augusto vem realizando experiências com a poesia digital, que une a cor, o som, a palavra e o movimento, retomando o ideário da poesia concreta, com mais vigor e rigor. Tradutor incansável, Augusto publicou uma nova coletânea de poesia russa contemporânea, enfocando nomes da vanguarda do início do século, como Maiakóvski e Khlébnikov. A tradução — ou “recriação” — , como ele prefere chamar, é “uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente”. Com o poeta norte-americano e. e. cummings, por exemplo, ele mantém um diálogo de quase quatro décadas, que vem inseminando a sua própria produção. Para os que pensam que a arte poética está exaurida, o poeta sentencia: “Tudo está dito. Tudo é infinito”.   

Confiram abaixo alguns trechos da entrevista que fiz com o poeta, publicada em 1999 no Suplemento Literário de Minas Gerais.

 A crise do verso anunciada por Mallarmé, a seu ver, aponta para o fim da poesia como arte verbal, com a adoção dos meios eletrônicos, ou ainda é possível a experimentação no poema-texto?

— Não acho que a crise do verso aponte para o fim da poesia como arte verbal, mas para um redimensionamento estrutural do poema. Essa reestruturação começou a ser trabalhada de vários modos pelas vanguardas do início do século, mas foi interrompida pela intervenção de duas grandes guerras e de duas ditaduras, a nazista e a stalinista, que perseguiram tenazmente os artistas experimentais e retardaram a evolução. Retomada, sob a inspiração de Mallarmé, pela poesia concreta, na segunda metade do século, essa abertura estrutural continha em germe os pressupostos das linguagens que iriam encontrar o seu "habitat" natural no contexto das novas tecnologias eletrônicas. Nesse contexto, a palavra não deixa de ter lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento. Não há porque excluir o livro ou outros suportes matéricos e textuais, que seguem o seu curso e até se beneficiam da tecnologia digital no processo de sua feitura. O que ocorre é a abertura insopitável para o universo virtual, em situações em que a palavra, potencializada em todos os seus parâmetros, já não cabe no livro. Suponho que haverá ainda, por muito tempo, lugar para aqueles que prefiram trabalhar exclusivamente as poéticas do texto fora do contexto das novas mídias eletrônicas. Por outro lado, insisto em sublinhar, o mero domínio do computador não transforma ninguém, só por só, em grande poeta, e as facilidades da engenharia digital devem preocupar sempre aqueles que a usam. Acima de tudo, a grande arte é sempre difícil. "Sem presumir o que sairá daqui, nada ou quase uma arte", dizia Mallarmé, há um século, no prefácio do Lance de dados, que antecipou todos os lances. E Pound, inventor de tudo: "Beauty is difficult". E Schoenberg, mestre de todos, aos seus alunos: "Eu vim aqui para tornar impossível a vocês compor música". Daí surgiram Anton Webern, Alban Berg e John Cage.

Fale um pouco sobre o seu método de trabalho. Costuma escrever todos os dias? Quando escreve um poema, o que surge primeiro: o assunto, alguma palavra, o design ou algum recurso de linguagem? Tudo é planejado, ou em dado momento entra em ação o acaso?

— Trabalho todos os dias, mas poemas, mesmo, faço muito poucos. Traduzo muito mais poemas alheios do que faço os meus próprios. É uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente. Armazeno informações e me preparo, sem pressa. Mas não planejo racionalmente poemas. Uma forma, uma frase, uma imagem, um fato, uma emoção, uma palavra podem constituir um indício e precipitar um momento de tensão, a partir do qual se desencasula o poema, que, então sim, depois da chispa inicial, pode ser controlado, desenvolvido e aperfeiçoado com o know how adquirido. Não desdenho o acaso, ao qual até já dediquei um poema.

Em Música de invenção, você fez uma ampla abordagem da música experimental do século XX. Aliás, sua preocupação nessa área está presente também em obras como O balanço da bossa, as traduções de Arnaut Daniel e do Pierrot Lunaire e as parcerias com Caetano Veloso. Qual é a importância da música para o seu trabalho poético?

— A importância da música é obviamente muito grande em meu trabalho, que começou sob o signo dela. Antes mesmo do lançamento oficial da poesia concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, três poemas do Poetamenos foram apresentados no Teatro de Arena, num espetáculo que já levava o título de Música e Poesia Concreta, ao lado de Machaut e Webern, em 1955. O trabalho com Cid Campos, no CD Poesia é risco e nos espetáculos do mesmo nome testemunham a continuidade da presença da música em minha atuação poética. Assim como o recente Música de invenção, que tenta alertar para a grande lacuna cultural deste fim de século, que é a paradoxal marginalização da música erudita moderna, da "música contemporânea", uma das mais fascinantes aventuras da criação artística do nosso tempo.



Você publicou uma nova edição, ampliada, dos poemas de cummings, autor que vem traduzindo desde os anos 50. A seu ver, a contribuição de cummings já está esgotada, ou ainda é possível aprender algo de novo com ele?

— cummings está mais vivo que nunca. Sua poesia é mais nova e mais atual do que a maior parte da que se lê hoje, considerando-se que houve nos últimos tempos, a pretexto de "pós-moderno" (na verdade, antes "anti" ou "contra"' moderno, quase sempre) um retrocesso na linguagem poética. cummings concilia liberdade (desmembra e intercepta frases, palavras e sílabas, dinamizando o poema e multiplicando as direções e as dimensões da leitura) e rigor (suas estruturas poéticas obdecem a processos de organização que se opõem às facilidades verbais), o que é raro. Há muito que aprender e que degustar em sua poesia.

Qual é a sua opinião sobre dois movimentos estéticos recentes, o Neobarroco e a Language poetry?

— A meu ver, nem o "Neobarroco" nem a "Language poetry" constituem propriamente movimentos. A expressão "neobarroco" caracteriza antes uma interpretação de certos aspectos estilísticos da linguagem literária do nosso tempo, especialmente da América Latina de língua espanhola. Mas, se se quiser, poder-se-á encontrar estilemas barrocos em Joyce e até na poesia concreta. O grupo da "Language poetry" é mais definido, por ter se concentrado fisicamente em torno de uma revista, cujo primeiro número apareceu em 1978, mas não tem a envergadura de um movimento. Chamou a atenção para a materialidade da palavra, no contexto da poesia norte-americana, mas essa preocupação já fora explicitada, com maior nitidez e amplitude, em teoria e prática, pela poesia concreta, desde a década de 50. Acho a maioria dos poetas ligados à revista muito prejudicada pela opacidade da "escrita não-referencial", derivada dos "botões tenros" de Gertrude Stein, e muito ingurgitada de algaravia crítica. Ainda assim, a ênfase na materialidade do texto fez do grupo, no mínimo, um pólo de discussão relevante no âmbito da poesia norte-americana contemporânea.

Tudo está dito? Ou ainda há o que dizer, em poesia?

— Tudo está dito. Tudo é infinito.

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