O escritor argentino Jorge Luiz Borges imaginou uma cidade labiríntica construída
no deserto africano, habitada por imortais reduzidos à condição de trogloditas que
se alimentavam de carne de serpente. Marco Flamínio Rufo, tribuno romano e
narrador da história, conta a sua convivência com essa estranha tribo e a
amizade que travou com um de seus integrantes, o poeta grego Homero, condenado à
imortalidade e a uma existência quase animalesca após beber das águas de um
misterioso rio guardado pelas muralhas da cidade sem nome. Borges descreve a
arquitetura do lugar de modo sucinto, mencionando pirâmides, praças, templos e
torres, detendo-se mais na descrição do labirinto: “Havia nove portas naquele
porão e oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma
câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara
circular igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e
minha ansiedade as multiplicaram”. Nessa cidade de pedra, que parecia “anterior
aos homens, anterior à terra” e construída por deuses “que estavam loucos” não
havia qualquer atividade econômica ou política e os homens, convertidos em
feras, desprovidos de linguagem e da noção de tempo, dedicavam-se à mera
sobrevivência. Este conto, O Imortal,
foi incluído no livro O Aleph,
publicado em 1949, e pode ser lido como uma fábula moral e metafísica que
mistura erudição e ironia para abordar a solidão humana, a necessidade da morte
e do esquecimento.
A ficção de Borges (que inclui outros relatos de cidades e mundos
inventados, como Tlon, Uqbar, Urbius
Tertius) é um dos marcos dessa tradição da literatura moderna
latino-americana: a criação de cidades imaginárias, que são alegorias da
angústia e do absurdo da condição humana. Cem
Anos de Solidão (1967), romance do colombiano Gabriel Garcia Marquez que
narra a saga do coronel Aureliano Buendía na mítica cidade de Macondo, é com
certeza a obra mais conhecida desse gênero, que teve como remotos precursores a
Odisseia de Homero e As viagens de Gulliver, de Jonathan
Swift.
Uma obra notável é Pedro Páramo
(1955), do mexicano Juan Rulfo, cuja ação se passa na cidade abandonada de
Comala, um povoado rural situado próximo às montanhas; lendo esse romance
inusitado, ficamos sabendo que possui um rio, uma igreja, uma área urbananizada
em que ficam as casas e nada mais. O autor faz pouquíssimas alusões a cenários
e ambientes neste romance que é uma sucessão de monólogos e diálogos em que personagens
mortos narram, sem uma ordem cronológica linear, diferentes episódios da vida
de Pedro Páramo, cujo falecimento antecipa a extinção da própria cidade. O uruguaio Juan Carlos Onetti, por sua vez, é
mais generoso na descrição de Santa Maria, cidade portuária que aparece em vários
de seus contos e romances, como A Vida Breve (1950). Lendo este livro fascinante, encontramos referências ao
estaleiro, ao mercado, ao cemitério, a um hotel, bares, restaurantes, praças e
prostíbulos por onde circula Juan María Brausen, personagem atormentado pela
monotonia, angústia e degradação da vida cotidiana. A cidade mitológica criada
por Onetti, não menos terrível e perturbadora que a Comala de Rulfo, desperta a
curiosidade de seus leitores, que podem
se perguntar: como o escritor concebeu essa cidade? Ele desenvolveu um plano
prévio, antes de começar a escrever? Respondendo a uma entrevista para a
Revista Bula, pouco antes de seu falecimento, em 1994, o escritor uruguaio declarou:
“Uma vez fiz um plano de Santa Maria com um amigo, mas era só para movimentar
melhor os personagens. Eu o perdi quando me mudei de Buenos Aires. A mim, se me
ocorre escrever um livro, já tem seu lugar em Santa Maria. Porém,
nunca me propus desenvolver um plano. Ou seja: nunca quis escrever uma saga.
Esse é já um propósito, e eu não poderia escrever com propósitos”.
O escritor mexicano David Toscana, que publicou em 1998 o romance Santa Maria do Circo (cujo título é uma
referência paródica à cidade mítica de Onetti), adotou uma outra estratégia
criativa: “Imaginei o mínimo que uma cidade possa ter no México: praça, igreja e
algumas poucas casas. A imaginação me sugeriu depois que na praça devia existir
a estátua de um herói desconhecido. Perguntei a mim mesmo se queria algum outro
edifício como escola, hospital, algum comércio ou fábrica, e disse que não.
Preferi manter tudo o mais simples possível. No primeiro romance ocupei-me de uma
cidade que no final ficou abandonada; agora quis o processo inverso: uma cidade
abandonada é povoada”, declarou a mim numa entrevista realizada por
e-mail. O romance conta a história de um
grupo de artistas circenses que, ao chegar numa cidade deserta, similar à
Comala de Rulfo, decide permanecer ali e fundar uma nova comunidade, batizada
de Santa Maria do Circo. A troupe é
composta por figuras bizarras como Barbarela, a mulher barbada; Natanael, o
anão; Hércules, o homem forte; Mandrake, o mágico; Fléxor, o contorcionista, e Balo,
o homem-bala, que decidem escolher novos ofícios, mais úteis à construção do
novo mundo. Sendo assim, cada membro do grupo escreve em pedaços de papel as
ocupações que julga essenciais, que depois são misturados na cartola do mágico
e sorteados ao acaso. Barbarela torna-se médica; Balo, general; Natanael, padre, e Hércules,
prostituta. O bizarro dessa cena é relativizado pelo escritor, para quem o
acaso “é o que define quase todas as vidas. São muito poucos os que decidem. Abrir
um papelote do chapéu de um mágico e abrir as páginas do jornal para buscar trabalho
são coisas muito parecidas. (...) O acaso faz com que um taxista dirija um táxi,
posto que quando criança não dizia ‘Quando crescer quero ser taxista’. E no
final a vida se parece un pouco com o circo. Pensemos por exemplo na política;
aí temos palhaços, prestidigitadores, mágicos, cães dançarinos, equilibristas,
domadores, malabaristas e um enorme público que paga muito caro pelo bilhete, ainda
que o espetáculo seja péssimo”.
O fracasso da nova sociedade é inevitável, pela escassez de recursos do
povoado, e após inúmeras peripécias, similares a farsas circenses, os artistas
resolvem abandonar o povoado, acompanhando a caravana de outra companhia
circense que passava pelo local. O dono do circo, Don Estevão, porém, recusa-se
a levar o anão, a mulher barbada e o homem forte, que são abandonados à própria
sorte. Santa Maria do Circo, assim como as cidades míticas criadas por Borges,
Onetti e Rulfo, pode ser entendida como uma vasta alegoria da solidão, do
fracasso e do absurdo que regem as sociedades latino-americanas.
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