domingo, 11 de janeiro de 2009

UM POEMA DE E. M. DE MELO E CASTRO

TEMPO DOS TEMPOS

Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!
Ah! Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!
Se nos tempos houvesse Jazz
o ritmo renovado do Jazz
o ritmo sincopado do Jazz
o ritmo sanguíneo do Jazz.

Se nos tempos da Bíblia
e pelas páginas da Bíblia
e pelos versículos da Bíblia
o sincopado, o rag-time
o humano liberto do Jazz
fossem bíblicas parábolas!

Se nos tempos dos tempos
da Bíblia sincopada de gritos
da Bíblia renovada de espantos
da Bíblia dos mistérios do Homem
da Bíblia tal como é
e do Jazz tal como é!

Nós precisamos de qualquer coisa alarmante
de arrepios vindos das vísceras banais
de confronto de bocas
chegadas de todos os continentes
nós precisamos dos negros
dos brancos, dos comerciantes.

Nós precisamos dos tempos da Bíblia
da placidez de David
e do erotismo divino de Salomão.
Nós precisamos de uma satânica expressão
nós precisamos do Jazz
nós precisamos do Jazz!

Não faz mal que nos tempos da Bíblia
o Jazz não existisse.
Nos nossos tempos há,
tem que haver erotismo e santidade
tem que haver tudo o que houver:
o homem com a sua idade.

Nos nossos tempos necessitamos
de nos sentirmos simplesmente velhos
de vinte séculos de esmagamento
e acreditando na ingenuidade de um nascimento.
Senão estamos perdidos!
Precisamos que tudo, que tudo seja novo.

Precisamos de mulheres, lobos e idealismos.
Precisamos de religiões, ateus e despotismos.
Precisamos de nuvens, noites e lantejoulas.
Precisamos de paixões, precisamos de paixões.
Precisamos de soluções intermédias.
Mas tudo erguido, vivido e destruído de novo!

Precisamos de política.
Precisamos que não haja política.
Precisamos de negras, amarelas e crioulas.
Precisamos de superar as igualdades.
Precisamos da Bíblia.
Precisamos de Jazz.

Ah! Se nos nossos tempos soubermos a Bíblia
de cor na nossa pele, na circulação,
nos músculos e na nossa transpiração.
Se nos nossos tempos em que nada sabemos de nós,
soubermos o Jazz dos negros e das consciências,
o Jazz a ritmar até ao desmaio de morte.

Se nos nossos minutos de existência
não pensarmos em nada, não soubermos de nada
não quisermos nada com todas as ignorâncias divinas.
Se nos nossos segundos de existência
não nos entregarmos a nada
que não sejam os décimos de segundo da existência.

Então sim! A Bíblia terá Jazz!
A Bíblia terá o que sempre teve.
Seremos todos bíblicos.
A Bíblia será bíblica.
A vida inteira será bíblica.
E tudo será bíblico. Tudo será bíblico!

Porque o Homem quis o nada
e quis-se além de si, e a si próprio.
Porque desprezei, desprezaste, desprezamos
o desprezo e não soubemos nada.
Porque depois de um nascimento que era uma vida
pudemos gritar que não nos bastava a vida!

E todas as bocas o dizem
sem dizerem nada.
Todos os olhos o vêem
sem avistarem nada.
Todos os sentidos inominados
todos os milhões de sentidos esquecidos
sabem, na ignorância dos séculos
o sincopado da existência
o sincopado da Bíblia
o rag-time das nossas vidas diárias
do nosso esmagamento diário
e do canto bíblico das noites esfarrapadas.


(Poema do livro Antologia Efémera. Rio de Janeiro: Lacerda Editorial, 2000.)

2 comentários:

  1. Nossa! Eu gostei demais ( jeito mineiro - pq sou mineira - de falar) deste poema.

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  2. Poema gostoso de se ler e para refletir, ao som de... jazz! Graças à bíblia!

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