Ana Cristina Joaquim
Em 2015, numa aldeia situada ao
sul do hemisfério sul, historicamente nomeada São Paulo de Piratininga,
habitavam algumas espécies de animais selvagens — grande quantidade delas,
diziam alguns, já em vias de extinção — que, por estarem excessivamente
atreladas aos tempos de antanho (em sua maioria, parentes mais ou menos
próximos do caranguejo, mas que destes se distinguiam pela maior extensão
corporal e por prescindirem da água para sua sobrevivência), não eram capazes
de perceber que as palavras haviam ocupado suma importância nos modos todos de
relação implicados na convivência interespécies. Utilizavam-se, portanto, de
grunhidos muito pouco diversificados, que causavam grande irritação naqueles que
a eles eram submetidos.
Neste mesmo ano de 2015, na
aldeia que popularmente ficou conhecida como Paulicéia, Sampa ou Sampã (graças
ao refinamento de três grandes retores do português brasileiro: Mário de
Andrade, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa) — parte do estado
federativo homônimo: o maior representante da lusofonia na América Latina
(irônico?) — surge, entretanto, uma forma altamente elaborada de intervenção,
que aponta justamente para a bestialidade envolvida no desprezo pelas palavras,
ou, o que de alguma maneira é equivalente, no uso da palavra como mídia (meio
ou mero veículo) de um conteúdo completamente destituído de valor para uma
comunidade de proporções tais.
Refiro-me ao primeiro volume dos Cadernos
bestiais, do poeta Claudio Daniel,
publicado pela Editora Lumme nesta famigerada aldeia. Livro incisivamente atual
que vem lembrar à comunidade selvática deste nosso estado paulista, que não
apenas por meio de grunhidos nos expressamos.
A série de 10 poemas antimídia —
um verdadeiro manifesto ético-político — oscila entre o trágico e o cômico da
denúncia, como se entre um e outro houvesse apenas um direcionamento do agudo
olhar. Sobre o trágico, eis algumas das violentas panóplias: "(…) a
morte engole manápulas/ e adensa paisagens-vértebras/ daqueles que não têm nome
daqueles que/ não tem nome nenhum nada além/ de ninguém", "tateando
entre os tufos da fome/ entre os húmus da usura tateando entre", "o
estrondo mudo/ de uma pistola de 9mm"; "Nenhuma hipótese/ de lucidez/
nessa máquina/ para a produção do medo"; "fala para si, solipsista,/
como jargão/ de ofícios militares"; "unhas enegrecidas/ maxilares
arrancados,/ miuçalha de carcaças". Sobre o cômico e o bufo expressionista:
"O Apresentador do Grande Telejornal/ sofre de terríveis/ dores
estomacais./ Tosse./ É impotente./ E peida muito."; "A Colunista do
Grande Jornal Diário/ (…) folheia, na revista nova-iorquina,/ as últimas
criações de Domenico Dolce/ e Stefano Gabbana (…)". Eis a mão impiedosa do
poeta.
Há ainda um último poema da série
antimídia, cuja epígrafe de Ionesco, "Quelle est ma langue?",
coloca a questão poética no centro do interesse; questão com a qual o poeta
debate-se no desenrolar dos ritmos e grunhidos que atravessam o poema: é como
se o poeta sussurrasse em meio a barulhos indistinguíveis, chamando a
atenção dos Anônimos (título do poema que abre o livro), que devem
buscar o poema num esforço de escuta contra toda a algaravia: "(Um
miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão"),
"(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístco?)", "(quem
conhece um grande romancista na Lituânia?)", "letras que são bichos
no escuro letras que/ são lepras de lorpas no escuro", "(…) um
poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia/ sombra da vivissecção.", etc.
Trata-se da metalinguagem muito apropriadamente usada com o propósito de
ressaltar o duplo poder da palavra: arma e escudo contra a selvageria reinante,
contra a linguagem inarticulada, em suma, a guerra contra os meios de
comunicação.
Com fabulação de outras
margens, uma série de breves poemas amorosos-sensuais, este primeiro
volume dos Cadernos se encerra, de modo a oferecer ao leitor esta
outra face da palavra, sua via de exaltação, um direcionamento possível.
Por fim, desde esta Paulicéia
errática, Sampa ou Sampã melodiosa, proponho o movimento circular em direção à
epígrafe (nunca em retrocesso, vale frisar), um atentado contra os caranguejos
selvagens deste brejo ressequido: "Ao Desconhecido/ que sempre muda
tudo".
(Resenha publicada originalmente na revista Germina.)
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