Antônio Moura
Uma das mais marcantes definições
de arte que conheço é também bastante conhecida de muitos, trata-se do célebre
postulado do Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, em que afirma que “a arte
é o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma
mesa de dissecação”. A força dos
elementos díspares reunidos num mesmo espaço e nesta frase é a mais próxima
tradução daquilo que, a meu ver, faz a força da arte, a união de contrários
para a explosão de novos sentidos. Este choque de opostos gera o impacto
necessário para fazer a linguagem acordar, levantar de súbito como que num
susto e recobrar a vida, a energia vital que havia desaparecido ou estava
adormecida por baixo dos panos do entorpecedor discurso mercadológico. Este
acordar da linguagem faz também acordar o leitor, que, também, de súbito, se
ergue através de suas emoções, sua memória, seu pathos e seu ethos.
Ao abrir os Cadernos bestiais, Lumme Editor, 2015, de Claudio Daniel, temos a
sensação do encontro entre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre a mesa
de dissecação de Ducasse. Isso acontece
de maneira mais contundente, principalmente, por causa do primeiro poema da coletânea,
chamado Anônimos. Nele, um certo
número de diferentes realidades encarnadas através de vários personagens se
encontram e se conflitam numa espécie de
cinema fragmentado em que ainda se acrescenta uma tipo de voz em surdina, onde
frases paralelas aparecem entre parênteses, como uma forma de coro surreal que
evoca e aproxima realidades distantes daquela que se desenrola, digamos, no
corpo principal do poema. Uma realidade banal que vai se transformando num
estado de coisas absurdo, como, às vezes, parece ser o estado cotidiano do
mundo em que vivemos e não percebemos. Leiamos um trecho inicial do poema Anônimos:
Há
um louco na rua.
(Os
livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos)
Um
policial pede os seus documentos.
(Há três ou quatro especialistas em língua
suméria.)
O
louco entrega-lhe um tijolo.
(Uma tribo na Ásia Central escreve seus
livros sagrados nos ventres de mulheres anãs.)
Para, mais adiante, finalizar:
A
mulher gorda ataca o louco com um sapato.
(Quem conhece um grande romancista da
Lituania?)
O
Cinegrafista do Grande Telejornal filma todo episódio para exibir no horário
nobre.
(Há indícios de vogais e consoantes em teus
pequenos lábios.)
Logo
surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de
seguros e tem inicio uma pancadaria.
(Poucos são capazes de ler as mensagens
ocultas no interior das nozes.)
O livro divide-se em três
secções: Infernais fungos de papiro,
(Intermezzo) e Fabulação de outra margem.
Na primeira parte está o já citado poema acima e a série de poemas intitulados Antimídia, que vão do numero I até o
número X. Aqui estamos diante aquilo que muitos costumam chamar de uma poesia
participativa. Termo que acho vago e impreciso já que toda poesia, toda poesia
de verdade é, de certa forma, participativa de alguma esfera da realidade, seja
ela política, social, lírica ou metafísica, já que, assim como o visível, o
invisível também é parte constituinte da existência. Mas vamos aqui nos
restringir a esfera de participação, digamos, na falta de melhor termo,
sócio-política. Costumo dizer que fazer poesia engajada, aliás, não só poesia,
mas arte que, de forma geral, é chamada de participativa ou engajada, é um
grande risco por tratar-se de uma matéria muito difícil de modelar. Nestes
casos o autor sempre corre o risco de enveredar pela simples propaganda
ideológica, pelo discurso panfletário, mas, são os ossos do ofício, assim como
na lírica corre-se o outro risco de se derramar e cair no confessional. No caso
dos Cadernos bestiais, nos poemas Antimídia, o autor consegue caminhar
equilibradamente sobre uma lâmina em que não se deixa sucumbir apenas pelo
discurso, mas, que ao contrário, o constrói com bases plenamente fincadas no
terreno fértil da poesia, onde a metáfora, a ironia, o estranhamento, a
surpresa e o ritmo estão presentes, não permitindo que a linguagem, o que
muitas vezes acontece nesses casos, torne-se elemento de viés mais
antropológico e sociológico do que estético. Em seus poemas dessa ordem Claudio
dispara sua mira certeira contra os usos e abusos de uma sociedade doente, mas
o seu gatilho, a sua arma continua sendo feita do material fundido da poesia.
Mas, melhor do que falar do objeto é mostrar o objeto. O poema Antimídia VIII que corrobora plenamente
o que há pouco foi dito e que faço questão de transcrever alguns trechos:
A Colunista do Grande Jornal Diário
equilibra-se
nos indispensáveis
saltos Christian Louboutin
para analisar os fatos políticos
com distanciamento crítico
e
objetividade jornalística.
Mais adiante o poema , num humor sardônico, evidencia o contraste:
Entre
um e outro gole de cherry brandy
folheia,
na revista nova-iorquina,
as
últimas criações de Domenico Dolce
e
Stefano Gabana, inimagináveis
nessa
selva selvagem de mortos de fome.
Para, enfim, finalizar:
Ela
acredita na Divina Providência,
no
Destino, nas Forças Vivas da Nação.
E
aplica suavemente gotas aromáticas
(Ralph
Lauren) em sua nuca,
enquanto
espera pela Vinda de seu Führer.
A terceira parte do livro, (Intermezzo), constitui-se de um único
poema chamado Cabeça de Não, dedicado
“a meninada da Batucada Popular Carlos Marighella”, em que parece operar-se uma
fusão entre o combatente e o lírico, que virá em seguida, na terceira e última
parte da obra, dando, dessa forma, uma organicidade ao livro. Um poema onde a
revolta se apresenta de forma compassiva e comovente, construído numa concisão,
numa economia de recursos, como se o próprio poema se apoiasse num material
léxico precário, numa linguagem sem fartura, exígua, quase esquelética, como
que para torna-se semelhante ao próprio objeto de sua fala, os mal nutridos, os
mal aceitos. Eis um trecho:
Cabeça
de negro –
não
entra –
cabeça
de branco –
entra
–
cabeça
de pobre –
não
entra –
cabeça
de nobre –
entra
–
cabeça
de pardo –
não
entra –
cabeça
de podre –
entra
(...)
Há, por fim, uma última e
especialíssima parte deste livro que, na verdade constitui-se em uma unidade, Fabulação de outra margem, que, como o
próprio intertítulo aponta levará o leitor para um outro lado de tudo que foi
lido/vivido até agora. Esta outra margem é o lirismo, onde, ao cruzá-lo, vamos
nos encontrando com explosões de luminosidade, lembrando, por vezes, as súbitas
imagens luminosas de Tristan Tzara, que, não por acaso, assina a epígrafe desta
secção do livro. Mas um lirismo que em nenhum momento faz concessões ao
edulcoramento, ao meramente confessional, pois nesta série de pequenos poemas
sob o único de título de Cantiga, o
lirismo contem “a ferocidade no limiar da noite”, para citar um dos próprios
poemas. Um lirismo, onde a experiência vivida ou imaginária transforma-se em
uma espécie de jubileu da linguagem, encarnando poeticamente uma celebração
perplexa da beleza, da arte e do amor diante do imenso vazio que nos cerca.
Porém,
a delícia
de
caminharmos lado a lado,
sem
destino, nessa terra ignorada,
quando
lagartos devoram cicatrizes
e
então, mais uma vez,
você
é para mim um anjo, e eu sua sombra.
Agora, curiosamente, quando estou
prestes a terminar de escrever este texto, o gato de estimação, o Nhõnho, a
quem já dediquei um poema em um dos meus livros, vem e, felinamente,
misteriosamente, debruça-se sobre o Cadernos
bestiais que está aberto ao meu lado. Debruça-se e olha fixamente para as
páginas abertas, dando a nítida impressão de o estar lendo. É a poesia que
atrai poesia.
Belém, 14 de julho de 2015.
(Resenha publicada originalmente na revista Zunái.)
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