segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CADERNOS BESTIAIS, A LINGUAGEM FUNDIDA DA POESIA


 
















Antônio Moura

Uma das mais marcantes definições de arte que conheço é também bastante conhecida de muitos, trata-se do célebre postulado do Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, em que afirma que “a arte é o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”.  A força dos elementos díspares reunidos num mesmo espaço e nesta frase é a mais próxima tradução daquilo que, a meu ver, faz a força da arte, a união de contrários para a explosão de novos sentidos. Este choque de opostos gera o impacto necessário para fazer a linguagem acordar, levantar de súbito como que num susto e recobrar a vida, a energia vital que havia desaparecido ou estava adormecida por baixo dos panos do entorpecedor discurso mercadológico. Este acordar da linguagem faz também acordar o leitor, que, também, de súbito, se ergue através de suas emoções, sua memória, seu pathos e seu ethos. 

Ao abrir os Cadernos bestiais, Lumme Editor, 2015, de Claudio Daniel, temos a sensação do encontro entre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre a mesa de dissecação de Ducasse.  Isso acontece de maneira mais contundente, principalmente, por causa do primeiro poema da coletânea, chamado Anônimos. Nele, um certo número de diferentes realidades encarnadas através de vários personagens se encontram e se conflitam  numa espécie de cinema fragmentado em que ainda se acrescenta uma tipo de voz em surdina, onde frases paralelas aparecem entre parênteses, como uma forma de coro surreal que evoca e aproxima realidades distantes daquela que se desenrola, digamos, no corpo principal do poema. Uma realidade banal que vai se transformando num estado de coisas absurdo, como, às vezes, parece ser o estado cotidiano do mundo em que vivemos e não percebemos. Leiamos um trecho inicial do poema Anônimos:

Há um louco na rua.

 (Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos)

Um policial pede os seus documentos.

 ( três ou quatro especialistas em língua suméria.)

O louco entrega-lhe um tijolo.

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres anãs.)

Para, mais adiante, finalizar:

A mulher gorda ataca o louco com um sapato.

(Quem conhece um grande romancista da Lituania?)

O Cinegrafista do Grande Telejornal filma todo episódio para exibir no horário nobre.

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem inicio uma pancadaria.

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)

O livro divide-se em três secções: Infernais fungos de papiro, (Intermezzo) e Fabulação de outra margem. Na primeira parte está o já citado poema acima e a série de poemas intitulados Antimídia, que vão do numero I até o número X. Aqui estamos diante aquilo que muitos costumam chamar de uma poesia participativa. Termo que acho vago e impreciso já que toda poesia, toda poesia de verdade é, de certa forma, participativa de alguma esfera da realidade, seja ela política, social, lírica ou metafísica, já que, assim como o visível, o invisível também é parte constituinte da existência. Mas vamos aqui nos restringir a esfera de participação, digamos, na falta de melhor termo, sócio-política. Costumo dizer que fazer poesia engajada, aliás, não só poesia, mas arte que, de forma geral, é chamada de participativa ou engajada, é um grande risco por tratar-se de uma matéria muito difícil de modelar. Nestes casos o autor sempre corre o risco de enveredar pela simples propaganda ideológica, pelo discurso panfletário, mas, são os ossos do ofício, assim como na lírica corre-se o outro risco de se derramar e cair no confessional. No caso dos Cadernos bestiais, nos poemas Antimídia, o autor consegue caminhar equilibradamente sobre uma lâmina em que não se deixa sucumbir apenas pelo discurso, mas, que ao contrário, o constrói com bases plenamente fincadas no terreno fértil da poesia, onde a metáfora, a ironia, o estranhamento, a surpresa e o ritmo estão presentes, não permitindo que a linguagem, o que muitas vezes acontece nesses casos, torne-se elemento de viés mais antropológico e sociológico do que estético. Em seus poemas dessa ordem Claudio dispara sua mira certeira contra os usos e abusos de uma sociedade doente, mas o seu gatilho, a sua arma continua sendo feita do material fundido da poesia. Mas, melhor do que falar do objeto é mostrar o objeto. O poema Antimídia VIII que corrobora plenamente o que há pouco foi dito e que faço questão de transcrever alguns trechos: 

A Colunista do Grande Jornal Diário
equilibra-se
nos indispensáveis
saltos Christian Louboutin
para analisar os fatos políticos
com distanciamento crítico
e objetividade jornalística.

Mais adiante o poema , num humor sardônico, evidencia o contraste:

Entre um e outro gole de cherry brandy
folheia, na revista nova-iorquina,
as últimas criações de Domenico Dolce
e Stefano Gabana, inimagináveis
nessa selva selvagem de mortos de fome.


Para, enfim, finalizar:

Ela acredita na Divina Providência,
no Destino, nas Forças Vivas da Nação.
E aplica suavemente gotas aromáticas
(Ralph Lauren) em sua nuca,
enquanto espera pela Vinda de seu Führer.


A terceira parte do livro, (Intermezzo), constitui-se de um único poema chamado Cabeça de Não, dedicado “a meninada da Batucada Popular Carlos Marighella”, em que parece operar-se uma fusão entre o combatente e o lírico, que virá em seguida, na terceira e última parte da obra, dando, dessa forma, uma organicidade ao livro. Um poema onde a revolta se apresenta de forma compassiva e comovente, construído numa concisão, numa economia de recursos, como se o próprio poema se apoiasse num material léxico precário, numa linguagem sem fartura, exígua, quase esquelética, como que para torna-se semelhante ao próprio objeto de sua fala, os mal nutridos, os mal aceitos. Eis um trecho:

Cabeça de negro –

não entra –

cabeça de branco –

entra –

cabeça de pobre –

não entra –

cabeça de nobre –

entra –

cabeça de pardo –

não entra –

cabeça de podre –

entra

(...)

Há, por fim, uma última e especialíssima parte deste livro que, na verdade constitui-se em uma unidade, Fabulação de outra margem, que, como o próprio intertítulo aponta levará o leitor para um outro lado de tudo que foi lido/vivido até agora. Esta outra margem é o lirismo, onde, ao cruzá-lo, vamos nos encontrando com explosões de luminosidade, lembrando, por vezes, as súbitas imagens luminosas de Tristan Tzara, que, não por acaso, assina a epígrafe desta secção do livro. Mas um lirismo que em nenhum momento faz concessões ao edulcoramento, ao meramente confessional, pois nesta série de pequenos poemas sob o único de título de Cantiga, o lirismo contem “a ferocidade no limiar da noite”, para citar um dos próprios poemas. Um lirismo, onde a experiência vivida ou imaginária transforma-se em uma espécie de jubileu da linguagem, encarnando poeticamente uma celebração perplexa da beleza, da arte e do amor diante do imenso vazio que nos cerca.

Porém, a delícia
de caminharmos lado a lado,
sem destino, nessa terra ignorada,
quando lagartos devoram cicatrizes
e então, mais uma vez,
você é para mim um anjo, e eu sua sombra.


Agora, curiosamente, quando estou prestes a terminar de escrever este texto, o gato de estimação, o Nhõnho, a quem já dediquei um poema em um dos meus livros, vem e, felinamente, misteriosamente, debruça-se sobre o Cadernos bestiais que está aberto ao meu lado. Debruça-se e olha fixamente para as páginas abertas, dando a nítida impressão de o estar lendo. É a poesia que atrai poesia.

Belém, 14 de julho de 2015.


(Resenha publicada originalmente na revista Zunái.)

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