CARTOGRAFIAS POÉTICAS DE MICHELINY VERUNSCHK
Micheliny Verunschk, poeta pernambucana nascida em Recife,
publicou em 2003 o livro Geografia íntima do deserto, que despertou a
atenção de críticos literários como João Alexandre Barbosa pelo despojamento e
secura semântica, quase cabralina, indicada já no título do volume. A palavra deserto invoca os sentidos de aridez,
exílio, abandono; campo de silêncio e de ausência, recorda ainda a página em
branco de Mallarmé e o labirinto infinito sonhado por Borges, leitor das noites
árabes. Some-se a este pequeno inventário o paralelo geográfico com o sertão,
quadro vivo da exclusão e do desalento. Finalizo aqui as citações, talvez
inúteis, que me ocorreram ao pensar no título do livro de estreia de Micheliny
Verunschk, que viveu a maior parte de sua infância e adolescência na cidade de
Arcoverde, no sertão pernambucano. O deserto está presente não apenas no
título, mas em diversas composições da coletânea, não raro com outros
significados imprevistos: é o corpo do amante, o sentimento de desolação e o
inverso do mar e da cidade, zonas inscritas na distância. Assim, lemos numa das
peças: “Teu nome é meu deserto / e posso senti-lo / incrustado no meu próprio
território. Como uma pérola / ou um gesto no vazio. / Como o amargo azul / e
tudo quanto há de ilusório”. (A presença dolorosa
do deserto). A partir daqui, podemos encontrar uma das possíveis chaves de
leitura para essa obra densa e incomum: o exercício consciente da alucinação
via escritura. Claro, não se trata do
maravilhoso rebuscado (e um pouco gratuito) de Gabriel Garcia Marquez, mas de
um imaginário consistente, alcançado com rigoroso jogo de esquadros. Intuição
lírica, mas geométrica, construída em linhas precisas, quase metálicas.
Difícil, nesta obra, não encontrar registros da jornada pessoal, da vivência da
autora na fronteira física do sertão de Pernambuco (trata-se, como bem diz o
título, de uma geografia íntima), mas
os elementos históricos (narrativas do eu e do mundo, e ainda da história inventada)
são transmutados com sábia alquimia para se obter o ouro mestiço e raro de um
barroco sutil, inenfático. O exagero retórico cede lugar a um cultivo refinado
do paradoxo, que mistura humor negro e sensualidade em grafias plásticas de um
quase expressionismo. Essa veia criativa aflora em algumas das peças mais
impactantes do volume, que causam o encanto da surpresa pelo acabamento
inusitado das figuras verbais. Assim, por exemplo, neste poema: “Eles vestiam /
suas roupas sujas / e saíram de casa. / E suas mãos / se desmanchando / em
linhas de sangue. (...) / Eles não sabiam / mas estávamos lá. / Bebemos em
silêncio / o sêmen ainda quente do morto” (O
que dizem os grassóis sobre a morte).
Em seu livro de estreia, a autora revela proximidade com a melhor tradição
modernista — aquela que vai de Oswald de Andrade e Murilo Mendes a João Cabral
de Melo Neto — mas também com a poesia visionária de língua alemã, sobretudo
Rilke, Trakl e Celan. A esse respeito, gostaria de citar, para efeito de
comparação, o Salmo de Trakl (diverso
na arquitetura, mas próximo ao feeling,
ao estado de espírito da escrita poética): “A estranha irmã aparece de novo nos
sonhos maus de alguém. / (...) Vermes gotejam das suas pálpebras amareladas. /
(...) Na sua cova, o mago branco brinca com suas cobras. / Silenciosos sobre o
Calvário abrem-se os olhos dourados de Deus” (tradução de Paulo Quintela). O
paralelo entre a poesia excêntrica de Micheliny Verunschk (no sentido
etimológico da palavra, “fora do centro”) com a estética expressionista é ainda
mais visível em seu segundo título publicado, O observador e o nada, publicado no mesmo ano que a Geografia íntima do deserto mas com uma
concepção estrutural bem diversa: é um poema longo, com versos mais extensos,
narrativos, beirando a prosa, em que a autora mergulha em seus pesadelos e
traduz a sensação de horror em linhas substantivas, ásperas, furiosas, como
estas: “O meu rio rasga o leito da terra / descobrindo cadáveres muito antigos,
/ fosforescentes. / Corro dentro de mim. Me revolvo em estertores, leviatã
costurado de cadáveres”. O violento antilirismo do poema, suas imagens
brutalistas, podem remeter, numa primeira leitura, a referências como Gottfried
Benn, o Kafka de A metamorfose, a
Clarice Lispector de A paixão segundo G.
H., o João Cabral de O cão sem plumas
ou Augusto dos Anjos, cultor por excelência da mutilação, da decomposição, da
náusea e do bestiário de vermes. O poema de Micheliny Verunschk, no entanto,
tem uma dicção personalíssima, como se a poeta fizesse uma autópsia de si
mesma, revelando seus medos, desejos e ódios num jorro espontâneo, de música
áspera e assimétrica: “E eu gostaria de ser aquela flor pútrida / visitada por
morcegos e outros pequenos ávidos. / Flor branca, / de carne podre, / rio
leitoso alimentando a mínima vida / ou ao menos poder beber da espuma / como um
qualquer / dos meus afogados”.
A cartografia da noite,
publicado em 2010, incorpora em seu título um outro deserto: a noite, espaço
ilimitado de escuridão e ausência, mas também metáfora do amor e da morte. Os
temas trabalhados pela autora neste volume são os seus motes obsessivos,
registrados no conjunto de sua obra: memória, infância, silêncio, infecção,
territórios, tormentos; o espectro metafórico também traz as imagens
recorrentes de insetos, mapas, flores,
sangue, animais e livros, mas a arquitetura é ainda mais consisa e elíptica:
“Abre a sua guarda / e os leões colidem, / esfomeados. / Hostes e dentes, / o
seu nome é Legião.” (Coliseu). A
autora adensa a sua partitura poética de modo inventivo e pessoal, sem cair no
fácil minimalismo praticado no período – poemas verticais, com as linhas em
espaço duplo, poucos verbos, sempre no infinitivo, e ligeiras perturbações na
sintaxe. A escrita poética de Micheliny Verunschk não é suscetível de cair na
diluição de procedimentos de escolas exatamente por causa de sua sinceridade,
da fidelidade às obsessões de sua mitologia particular, em que a imaginação
erótica produz linhas como estas: “Esta noite, / jardim de serpentes / que me
devoram os pés, / vai gerar o amante. Ele, / sem nome ou tessitura, / ateará
agulhas em brasa / e uma única palavra / sobre o meu torso. / Fere-me de asas,
sim? / Cega-me / e em torno de mim / apenas o real, / mar de estanho” (Tatuagem). Micheliny Verunschk é, sem favor, uma das
autoras mais originais e consistentes da poesia brasileira contemporãnea.
(Artigo publicado na edição de setembro/2013
da revista CULT)
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