sexta-feira, 6 de setembro de 2013

RETRATO DO ARTISTA




CARTOGRAFIAS POÉTICAS DE MICHELINY VERUNSCHK

Micheliny Verunschk, poeta pernambucana nascida em Recife, publicou em 2003 o livro Geografia íntima do deserto, que despertou a atenção de críticos literários como João Alexandre Barbosa pelo despojamento e secura semântica, quase cabralina, indicada já no título do volume. A palavra deserto invoca os sentidos de aridez, exílio, abandono; campo de silêncio e de ausência, recorda ainda a página em branco de Mallarmé e o labirinto infinito sonhado por Borges, leitor das noites árabes. Some-se a este pequeno inventário o paralelo geográfico com o sertão, quadro vivo da exclusão e do desalento. Finalizo aqui as citações, talvez inúteis, que me ocorreram ao pensar no título do livro de estreia de Micheliny Verunschk, que viveu a maior parte de sua infância e adolescência na cidade de Arcoverde, no sertão pernambucano. O deserto está presente não apenas no título, mas em diversas composições da coletânea, não raro com outros significados imprevistos: é o corpo do amante, o sentimento de desolação e o inverso do mar e da cidade, zonas inscritas na distância. Assim, lemos numa das peças: “Teu nome é meu deserto / e posso senti-lo / incrustado no meu próprio território. Como uma pérola / ou um gesto no vazio. / Como o amargo azul / e tudo quanto há de ilusório”. (A presença dolorosa do deserto). A partir daqui, podemos encontrar uma das possíveis chaves de leitura para essa obra densa e incomum: o exercício consciente da alucinação via escritura.  Claro, não se trata do maravilhoso rebuscado (e um pouco gratuito) de Gabriel Garcia Marquez, mas de um imaginário consistente, alcançado com rigoroso jogo de esquadros. Intuição lírica, mas geométrica, construída em linhas precisas, quase metálicas. Difícil, nesta obra, não encontrar registros da jornada pessoal, da vivência da autora na fronteira física do sertão de Pernambuco (trata-se, como bem diz o título, de uma geografia íntima), mas os elementos históricos (narrativas do eu e do mundo, e ainda da história inventada) são transmutados com sábia alquimia para se obter o ouro mestiço e raro de um barroco sutil, inenfático. O exagero retórico cede lugar a um cultivo refinado do paradoxo, que mistura humor negro e sensualidade em grafias plásticas de um quase expressionismo. Essa veia criativa aflora em algumas das peças mais impactantes do volume, que causam o encanto da surpresa pelo acabamento inusitado das figuras verbais. Assim, por exemplo, neste poema: “Eles vestiam / suas roupas sujas / e saíram de casa. / E suas mãos / se desmanchando / em linhas de sangue. (...) / Eles não sabiam / mas estávamos lá. / Bebemos em silêncio / o sêmen ainda quente do morto” (O que dizem os grassóis sobre a morte). Em seu livro de estreia, a autora revela proximidade com a melhor tradição modernista — aquela que vai de Oswald de Andrade e Murilo Mendes a João Cabral de Melo Neto — mas também com a poesia visionária de língua alemã, sobretudo Rilke, Trakl e Celan. A esse respeito, gostaria de citar, para efeito de comparação, o Salmo de Trakl (diverso na arquitetura, mas próximo ao feeling, ao estado de espírito da escrita poética): “A estranha irmã aparece de novo nos sonhos maus de alguém. / (...) Vermes gotejam das suas pálpebras amareladas. / (...) Na sua cova, o mago branco brinca com suas cobras. / Silenciosos sobre o Calvário abrem-se os olhos dourados de Deus” (tradução de Paulo Quintela). O paralelo entre a poesia excêntrica de Micheliny Verunschk (no sentido etimológico da palavra, “fora do centro”) com a estética expressionista é ainda mais visível em seu segundo título publicado, O observador e o nada, publicado no mesmo ano que a Geografia íntima do deserto mas com uma concepção estrutural bem diversa: é um poema longo, com versos mais extensos, narrativos, beirando a prosa, em que a autora mergulha em seus pesadelos e traduz a sensação de horror em linhas substantivas, ásperas, furiosas, como estas: “O meu rio rasga o leito da terra / descobrindo cadáveres muito antigos, / fosforescentes. / Corro dentro de mim. Me revolvo em estertores, leviatã costurado de cadáveres”. O violento antilirismo do poema, suas imagens brutalistas, podem remeter, numa primeira leitura, a referências como Gottfried Benn, o Kafka de A metamorfose, a Clarice Lispector de A paixão segundo G. H., o João Cabral de O cão sem plumas ou Augusto dos Anjos, cultor por excelência da mutilação, da decomposição, da náusea e do bestiário de vermes. O poema de Micheliny Verunschk, no entanto, tem uma dicção personalíssima, como se a poeta fizesse uma autópsia de si mesma, revelando seus medos, desejos e ódios num jorro espontâneo, de música áspera e assimétrica: “E eu gostaria de ser aquela flor pútrida / visitada por morcegos e outros pequenos ávidos. / Flor branca, / de carne podre, / rio leitoso alimentando a mínima vida / ou ao menos poder beber da espuma / como um qualquer / dos meus afogados”.

A cartografia da noite, publicado em 2010, incorpora em seu título um outro deserto: a noite, espaço ilimitado de escuridão e ausência, mas também metáfora do amor e da morte. Os temas trabalhados pela autora neste volume são os seus motes obsessivos, registrados no conjunto de sua obra: memória, infância, silêncio, infecção, territórios, tormentos; o espectro metafórico também traz as imagens recorrentes de insetos,  mapas, flores, sangue, animais e livros, mas a arquitetura é ainda mais consisa e elíptica: “Abre a sua guarda / e os leões colidem, / esfomeados. / Hostes e dentes, / o seu nome é Legião.” (Coliseu). A autora adensa a sua partitura poética de modo inventivo e pessoal, sem cair no fácil minimalismo praticado no período – poemas verticais, com as linhas em espaço duplo, poucos verbos, sempre no infinitivo, e ligeiras perturbações na sintaxe. A escrita poética de Micheliny Verunschk não é suscetível de cair na diluição de procedimentos de escolas exatamente por causa de sua sinceridade, da fidelidade às obsessões de sua mitologia particular, em que a imaginação erótica produz linhas como estas: “Esta noite, / jardim de serpentes / que me devoram os pés, / vai gerar o amante. Ele, / sem nome ou tessitura, / ateará agulhas em brasa / e uma única palavra / sobre o meu torso. / Fere-me de asas, sim? / Cega-me / e em torno de mim / apenas o real, / mar de estanho” (Tatuagem).  Micheliny Verunschk é, sem favor, uma das autoras mais originais e consistentes da poesia brasileira contemporãnea.

(Artigo publicado na edição de setembro/2013 da revista CULT)


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