quinta-feira, 26 de setembro de 2013

UM POEMA DE HORÁCIO COSTA


PARA SER LIDO NO MÍNIMO DUAS VEZES 

Ó mil vezes cristal afortunado,
Alpe luzido, luminar nevado!

Frei Jerônimo Baía

Não há anjos neste quarto mas é como se houvesse.
Descrevâmo-lo, então:
um cubo de dois metros e trinta de lado
por algo mais de altura, ainda assim
as paredes estão forradas
com damasco cor de sangue e dourado
em faixas verticais,
as rubras decoradas em dévoré
com imagens como as dos xales de Paisley
simétricas e duplicadas,
só que mais barrocas ainda,
parecendo corações de barriga para cima
unidos por motivos florais sucessivos.
As outras faixas, mormente ouro-velho,
possuem um motivo geométrico
laxamente losangular
que de perto assemelha-se
a “v”s com uma lágrima
gentilmente pousada
no ângulo interno da letra.
Pelo chão o carpete imita
um roseiral bizarro pelo qual pisássemos:
rosas beges de dois tons repetem-se
num padrão diagonal,
unidas por suaves folhas verdes
não menos bitonais,
do meio das quais surgem
alternadamente
outras rosas bege-claro e mais claro,
apenas que menores,
tudo isso sobre um fundo
igualmente bordô.
As esquinas das paredes deste quarto
têm cordões dourados, à diferença do rodapé,
feito com o mesmo carpete de rosas
de fictiva pigmentação,
ritmicamente maiores e menores.
A única janela, alta, de duas folhas,
está protegida por um cortinado

vitoriano, outrossim, que consta
de um tecido tricolor, de tonalidades
tinto, rosa velha e áurea,
disposto verticalmente,
porém amarrado à direita e à esquerda
com cordões cor de messe
que levam a dois pingentes
como espanadores de ponta cabeça,
também jalnes e esmaecidos.
Esta cortina de fora é debruada
com mini pompons
em forma de caracol:
tudo aqui remete à imagética
dos Doges. Por detrás
de tal cascata, e por debaixo
do pequeno baldaquino
rubro com pois creme
que disfarça a caixa da persiana de correr
-cujo controle é automático
desde um botão na cabeceira da cama,
ponto branco circundado
por uma moldura de latão BTicinopois, por debaixo dessa cascata,
dizia, de tecido rebrilhante,
escorre, singelo, um cortinado branco,
como de voil só que sintético
e sujo como estas baixas nuvens
venezianas.


O efeito geral é havermos entrado
para habitá-la e sem prévio aviso
uma caixa criada por algum
Christian Lacroix sem sentido
de paródia ou charme, por exemplo
um modista de algum dos grotões
de algum grande império tropical,
quem, sendo íntimo e confidente
da usineira viúva do local,
tivesse decidido decorar a sua villa
de tal forma que ela gastasse muito
com os detalhes mais mínimos,
para fazer-se mui polpudas comissões
em lojas de europeus nomes.


Devo dizer que o teto é bicolor
branco e sangue-de-boi? o centro
é branco, mas entre a superfície engessada
e o contorno, vá lá: magenta, sim, magenta,
há como que uma onda contínua de gesso
a terminar em pequenas volutas
que remetem aos rocailles
dos tempos de Casanova,
a cada ângulo do quadriforme
formato.
Devo ainda dizer que deslocado
a uma das laterais desse teto
pende um lustre aparatoso,
sobre o qual a vista pausa?
- redondo no centro num semicírculo invertido
como o do Senado Federal em Brasília,
de seu fuste branco saem cinco braços e,
claro, nos intervalos entre eles
há grande folhas de acanto de vidro leitoso
e com pigmentação de chuva de ouro:
como se Júpiteres eternamente engravidassem Dânaes
neste Murano barato.


Escrevo debaixo de tal luminária
sentado sobre o leito estreito
cuja cabeceira lhe é o dobro maior
e vem laqueada em branco com buquês
de margaridas cor de malva
e também azuizinhas, dispostos
pelas neobarrocas, multiplicantes reentrâncias,
assim como os criados-mudos, o pequeníssimo
escritório e a cadeira Marie-Thérèse
forrada em veludo celeste, que se reflete
no único espelho
amplo e bisotado,
suspenso a uma altura que também duplica
a garrafa pet de água oligomineral
-que domina o tampo de vidro da mesinha
como se um campanile a alguma maquete
de piazza comunal-, o copo de plástico,
o televisor de dezessete polegadas
e que não funciona, tudo isso
jacente sobre o sobrecarregado
diminuto móvel utilitário:
por isso, disse, escrevo sem apoio
que não o deste caderno sem pauta.



Resulta
este tratado de estética quer.
o lado de lá deste cubo pitoresco,
este ready-made à la Duchamp redivivo
e identificado no correr dos dias que correm,
neste alucinante cubo pós-silogístico,
está o mundo com suas oposições:
pombas machos e fêmeas, água e neve,
dias felizes ou infelizmente vividos
e pequeníssimos pátios onde os seres
quando conseguem, cultivam jardins
ou a erva daninha, o êxtase
e a loucura e há gente boa
e gente má, e políticos...
Vc
queria ser cool e minimalista, pois não?
poucas pinceladas, um hai-kai?
com a confortável segurança
de um leitor que manejasse o bisturi
da leitura como se experiente obstetra, não é?


Pois conte comigo, serei o teu guia,
ainda que não ofereça nenhuma
motosserra para desbastar a floresta
do teu tatear o texto que o extravasa
como uma zuppa di pesce, bollito misto ou bagna caôda
a escorrerem para fora do caldeirão
e cujas receitas são abscônditas e se perdem no escuro dos tempos...
Ainda assim, conheces a minha simpatia,
vem do grego sympathikós,
que só para ti cozinho semelhantes
ingredientes.
Porém, leia este poema de novo,
no mínimo duas vezes.

Não há anjos neste quarto mas é como se houvesse.


Veneza 28-30 I 010

(Poema do livro BERNINI. São Paulo: Demônio Negro, 2013)

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