ANTICABEÇA
(II)
Lona podre, nacos de carne, torsos caindo;
escuras mariposas (stukas) caindo;
sirenes, uma canção.
Bater nos cornos do céu, capricórnio adoece
em luzes de urina; olhos blindados; cano de fuzil apontado para a lua.
Esferas ou cilindros de cérberos; o aço
grunhe; rajadas de agni; fogos-fátuos; bocas lanhadas por detritos.
Há um pássaro de três cabeças, e um só canto;
uma jovem nua flutua no céu.
Emily pediu um livro (borboleta voando) de gravuras coloridas (sonhada por um chinês), com capa veludosa (desejada por um gato) e marcador de páginas (com bigodes de mandarim).
Ela, que ama peônias, biombos, nanquins, e
sonha ser enfermeira num grande hospital em Berlim.
Ela, que ama o verde mar de gaivotas, e a
prata que cintila nas peças do aparelho de chá.
Isso foi há quanto tempo? Havia um piano de
cauda e lenços brancos, pedaços de carneiro e o pôr-do-sol.
Agora, só há o verde-prata, ou verde-escuro,
verde-panther; na boca do dragão.
(Como
um livro) (de figuras) (metálicas;) (imagens) (d’esqueletos) (turvos;) (surdos) (espectros) (em sarabanda,) (invernal.)
Palavras zumbem na mente; difícil caminhar
com o peso do mundo. Este é um tempo sombrio, tempo da impureza, do branco
mesclado ao amarelo.
Lao Tzu rumou para o Sul, montado num touro,
búfalo ou grou. O guarda da fronteira pediu-lhe sua inútil sabedoria.
CARANGUEJO
Aquática paisagem, faixas de areia e uma
seqüência de morros, horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e
mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma cabeça decepada. A velha
senhora inglesa lê o Herald Tribune
com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalípticas. Há um
furacão nas ilhas Fidji. Esferas planas
surgem no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento aposentado em
Kansas conversa com os peixes. Não há nada que seja realmente absurdo. Tudo
está escrito em algum lugar, nas Tábuas
de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano dos Mortos. Há quem diga
que a espuma no oceano é uma linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento
dos astros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos. Tudo isso ignoro, não me diz respeito;
palavras são detritos como algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das
águas. Eu só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha carapaça
vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da dúvida, para encontrar
minha fábula. Eu sou a imagem deste enigma, a contradição de um crustáceo.
GABINETE
DE CURIOSIDADES
I — SEX
SHOP
Tufos
pretos e umbigo impreciso na fresta vertical em colunata.
Cílios
escamosos como minipeixes e uma arcada bélica verde-oliva na cabeça, à maneira
pontilhista dos marines.
Pulseiras e
argolas multiplicam-se nos braços e mamilos, simulando a efígie de uma rainha
nigeriana.
O corte
súbito no tronco impede a visão dos delicados pés, lacuna compensada pelo
desbocado rubim de lábios fechados em til.
Os adereços
da deusa mutilada completam-se com brincos de prata em forma de agulha, para a
adequada perfuração de Romeu.
E um
singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais.
II — PET
SHOP
Pandas
traficados de Pequim jogam cartas com lagartixas da Ucrânia.
Estufas com
modernos sistemas de refrigeração e luz ambiental abrigam um casal de
anfisbenas.
Há remédios
contra pulgas e doenças de pele para o dragão de Komodo.
Na
prateleira de cosméticos há um pó-de-arroz especial para lacraias.
A vendedora
de imensos peitos brancos e um curto vestido dark informa os clientes sobre os hábitos
noturnos de morcegos e pelicanos,
Com a
esperada dedicação de quem ama o seu ofício.
Aceitamos
todos os cartões de crédito e os animais, como seus donos, devem ser castrados.
COFFEE
SHOP
Revistas de fitness fumam cigarrilhas de canela importadas
da Indonésia.
Faces
sóbrias e ponderadas como repolhos avaliam o crescimento do superávit primário.
Há um
minúsculo globo ocular na xícara de café expresso.
Tortas de
queijo e presunto têm selos de qualidade internacionais e as embalagens dos
produtos passam por leitura ótica.
Há um nariz
disfarçado no topo da palmeira de plástico.
Nossa
missão é atingir e superar as expectativas dos clientes, diz a gerente de
marketing (no seio esquerdo, ela tatuou uma pítia da Groenlândia).
Há uma boca
retorcida no elegante toalete do café, com peças sanitárias de primeira linha e
secadores de mãos automáticos.
Cabeças de
executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras.
toda
palavra / é um labirinto / (recrocita / corvo lunar), / (sub-reptício réptil /
foge / entre folhas). / cristal negro, / búfalo negro,/ palavra enegrecida / em
sons guturais, / espectros / de si mesmos. / flor de abril / acende música, /
amarelo, / amarelo, / até lavoura / de fetos. / há uma anã / estrangulada / na
rua aurora; /há um relógio de ponto / que só anda / para trás; / a dentadura /
de clotilde; / o gosto amargo / do café. / tudo é / um cinema / mental, /pilhas
de ossos- / palavras, /extintas praias, / labirinto / de cores / alteradas. /
poema: / forma de ver / o escuro / que há no mundo / e em mim. / palavras caem
/ (fuligem),/ restos de canção: / ou abrir a porta: / entre seios / e
rudimentos / de agrimensura, / entre o mistério / e um agudo / senso de beleza,
/ vago perfume / de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto. /
nenhuma porta / (deslinde) / desatino;/ nenhuma / ou essa / que se fecha. / ou
aquela, / qual,/ ou esta porta,/ este caminho,/ não há caminho./ restilo
/ de alvura / ou lanugem, / lúnula:/ peixes, / entre unhas.
PRISMA II
olho-de-corvo;
/ um, crocita; / dois, arranha; / três, escurece; / quatro, engasga, / tropismo
/ de piçarras. / cristal negro, / búfalo negro, / palavra enegrecida / em urros
/ de lacraias. / sons vegetais, / sons minerais, / sons fecais, / dissociados /
de sentido. / recrocita / réptil/ em folha / lunar, / sub-reptício / acende /
música / até lavoura / de restos: / há um relógio / estrangulado / e uma
anã / fazendo ponto / numa esquina / da rua aurora. /tudo é um jogo / de
ossos / como saltar / à corda, / piscar / os olhos, / remoer / a canção. / tudo
é cinema / mental. / entre seios / e rudimentos / de mariposas, /entre o
mistério / e um agudo / senso / de extinção, / dessangrar / a beleza /
(fuligem) / até um vago / perfume / de papoulas; / ou abrir a porta: /
não há caminho, /nenhum / ou este / que se fecha, / tudo é labirinto, /
(deslinde) / desatino. /alvura, / lunário / de lúnulas: / unhas, / entre peixes.
PRISMA
III
até / dessangrar
/ peixes, / entre unhas. / pilhas / de palavras / rotas, / restos / de canção:
/ flor / de abril / em amarelo, / para ver / o enigma / no mundo / e em mim. /
recrocita / labirinto / lunar, / corvo / de fetos / alterados. / há o gosto /
amargo / do relógio, / uma anã / que só anda / para trás / e clotilde /
estrangulada / num café / da rua aurora. / tudo é mental, / mariposas / ou
seios, / pétalas / ou música, /rudimentos / de mistério / e mistério. / todo
labirinto / é uma palavra / do deslinde / ao desatino /(sub-reptício réptil /
foge / entre lúnulas). / cristal negro, / praia negra,/ papoula enegrecida / em
sons larvais / até lavoura / de fétidos./ havia uma pedra, / havia uma
rosa, / havia um abismo. /tudo / é cinema / mental, / praias / e palavras, /
pilhas de ossos / podres. / alguma porta / ou nenhuma, / esta / ou aquela, /
esse caminho, / qual caminho? / entre um senso / agudo / de extinção / e
rudimentos / de lanugem, / entre o restilo / e o séqüito /de lêmures, /todo
enigma / é incapaz /de abolir / o silêncio .
PRISMA IV
cristal
negro, / réptil negro, / sub-reptícia / anã negra / (amarga) / entre folhas./
flor de abril / recrocita / olho- / de-búfalo:/ unhas traçam / a
agrimensura / do escuro, / acendem lúnulas / de lacraias / até tropismo / de
fetos / (para ver) (a beleza) / (que há no mundo) / (e em mim). / nenhuma porta
/ ou esta / que se abre, / esta / que se fecha, / este caminho, / nenhum
caminho / (tudo) / (é labirinto). / entre piçarras / e rudimentos / de
papoulas, / entre seios / e um agudo / senso / de alvura, / lavoura / de
auroras / alteradas. / (pedra) / (é um jogo) / (como saltar) / (abismos), /
(piscar) / (os ossos,) / (remoer) / (a rosa,) / (cinema) / (mental) / (ou
séquito) / (de desatinos). / um, dissocia / mariposa;
/ dois, coagula / lunário;
/ três, escurecem / larvais,
/ restilo / de cores / abolidas. / tudo é mistério, / deslinde / de lanugens /
até dessangrar / palavras- / peixes.
PRISMA V
lêmures /
lavoram / lúnulas, / recrocita / labirinto / (abismo) / (de espectros). / esta
porta / que se abre, / prosa / de corvos, / esta porta / que se fecha, / rosa /
de répteis, / não há caminho, / tudo é caminho; / flor de abril / escurece /
relógios / até dessangrar / a anã / em tropismo / de lacraias. / tudo / é um jogo
/ amargo / como saltar / os ossos, / piscar / palavras, / traçar / na pedra /
sub-reptício / urro / (para ver) / (o mistério) / (que há no mundo) / (e em
mim). / entre fetos / e rudimentos / de búfalo, / entre cristais / e um agudo
senso / de coágulo, / abolir / o peixe / numa agrimensura / de enigmas. /
cristal negro, / seio negro, / lua negra, / restilo / de piçarras: / tudo / o
que escrevo / tudo / o que escavo / tudo / o que escuto / tudo / o que escarro
/ tudo o que esqueço / me deslinda, / desatina, / desafina, / desarvora, /
desenflora, / entre amarelos /e lanugens, / entre larvais / e mentais, / entre
o que / pensa / e o que / sente, / entre o que / mente / e o que / muda, /
entre o que / canta / e o que / encanta, / entre / mundo / e nada.
Para Luís
Serguilha, 2008
(Do livro Fera bifronte. São Paulo: Lumme
Editor, 2008)
GAVITA, GAVITA
(eu sabia os nomes das flores, quando menino, das estrelas e insetos;) (juntava
lagartas numa caixa de sândalo) (e rezava pelas almas das princesas
suicidadas.) (um albino ensinava-me latim) (e apertava fortemente meus
testículos.) (laos deo, laos deo.) (citações de cícero e da guerra
da gália) (até soar a sineta para o desjejum.) (eu gostava dos turíbulos e
ostensórios,) (dos saltérios e vitrais) (em que o filho do ho-mem) (sangrava
por nossas culpas.) (excitava-me com sua dor.) (amava ícones mal pintados,)
(palavras arcanas,) (música de violoncelo) (e sonhava ser marinheiro) (ou
alcoólatra.) (certo dia, fugi.) (oh estações, oh castelos.) (açoitei a
delicadeza,) (fiz-me barro, besta, bruto;) (um selvagem, sim, selvagem,) (e
toquei tambor) (na noite do sabá.)
(minha mãe tinha seios brancos) (e voz branca de medievo místico.) (ela foi a
lua cheia,) (angélica e nivosa,) (oh monja da cela constelada.) (meu pai
foi um rude fazendeiro,) (igualmente branco,) (cujo olhar tinha odor de antigas
armaduras.) (recordo seu rosto de falcão,) (as pequenas mãos trigueiras,) (a
voz pesada, de bacamarte.) (eles eram de diversa estirpe,) (mas eu os amei,)
(em minha estranha epiderme,) (na nostalgia de outro reino,) (que não sei.)
(dizem os juristas) (que no céu) (todos são brancos,) (como as velas dos
santos,) (o linho,) (o algodão.) (é verdade que sou um deslocado,) (desbocado,)
(excêntrica bizarria,) (rosa cúbica, talvez.) (vejam, aqui está) (o negrinho)
(que fala francês,) (membro de uma raça impura,) (turba de pobres diabos,)
(ratos depenados,) (pretos amaldiçoados.) (é verdade,) (confesso aos senhores,)
(a minha escurez,) (mas guardo comigo) (a música das esferas.)
está enfeitiçada, e canta ladainhas. em nervosa mímica de punhos, move-se como
a naja em sua caverna, o peito magro ornado com colares de crânios, os cabelos
azuis cobertos de cinzas. ela dança, dança sobre o meu ventre, agitando as
armas de suas múltiplas mãos, e beija-me a boca com os acres perfumes do
crematório. delírio
contorcido, convulsivo / de felinas serpentes, / no silamento e no mover
lascivo / das caudas e dos dentes. (não
há qualquer caminho) (ou via ideal) (com trigais e monjolos,) (apenas a rua)
(tortuosa do grito,) (a vereda) (fantástica) (do absinto.)
(fui o ponto) (dos mais curiosos) (espetáculos,) (cedendo palavras) (aos atores
no palco;) (e emprestei silêncio) (a minhas próprias comédias.) (sou talvez
essa loucura geométrica,) (nos porões de um teatro abolido.) (mancha de tinta)
(no final de cada linha,) (sem dimensões,) (mínima esfera.) (uma pausa entre
vozes,) (lugar indefinido,) (porção menor de um plano,) (sinal que abrevia os
vocábulos.) numa evaporação de
branca espuma / vão diluindo-se as perspectivas claras... / com brilhos
crus e fúlgidos de tiaras / as estrelas apagam-se uma a uma.
(na mocidade,) (tomei cerveja) (com vadios,) (provei do tabaco) (e do presunto
tostado;) (soube de vênus) (com atrizes) (de má vida.) (se sonhei) (com o
sublime?) (sim,) (foi) (numa festa) (de coxos.) (sou um porco,) (como todos)
(os homens) (são porcos;) (injuriei,) (conheci) (o escarro,) (o tabefe.)
(porque sei,) (sou duende;) (vejam) (minhas unhas;) (sou inferior,) (como um
pedaço) (de ferro;) (um saco) (de farelo;) (migalhas) (de ração.) (por que li)
(o teu livro,) (charles baudelaire?) (acreditei-me um deus.)
está enfeitiçada, pobre leoa devassa; onde estão teus filhotes? devo banhá-la,
com a água que eu mesmo fervi. ergo seu braço, para a assepsia; depois outro, e
as pernas, o pescoço, as nádegas, sem nenhum erotismo: como se prepara um morto
para o caixão. vesti-la, peça por peça, com as cores discretas da pobreza.
assobiar talvez uma valsa, um minueto, para dar requinte a nossa sopa. por fim,
velar o sono da vestal, para só depois escrever os versos que ninguém escreveu
jamais. torva, febril,
torcicolosamente, / numa espiral de elétricos volteios, / na cabeça, nos olhos
e nos seios / fluíam-lhe os venenos da serpente.
(arquivista, sim,) (da estrada) (de ferro,) (ninho) (de covas) (e coveiros;)
(onde) (sou corvo) (entre corvos,) (negro) (entre negros,) (porque os versos)
(não compram pão.) (recolher as sobras,) (para o azeite) (e as verduras.)
(desviar do cuspe;) (oferecer a outra mão.) (exilado) (de mim,) (despido) (de
qualquer) (delicadeza) (sou coisa) (entre coisas.) (vítor,) (o
que) (fazer,) (sozinho,) (em terra desolada?)
(houve) (um tempo) (em paris) (em que fui) (o rei) (do haxixe.) (todas) (as
moças) (amavam) (minha face) (de príncipe) (etíope,) (atlante) (ou cenobita.)
(eu usava) (uma gravata) (vermelha,) (flor) (de cardo) (na lapela) (e bigodes)
(espessos) (de mongol.) (é tão distinto) (ser) (um poeta) (maldito.)
(meus versos) (encantavam) (insólitas) (platéias) (ao som) (monótono) (do
piano) (estrangulado.) (alguém) (de suíças) (platinadas) (desenhava) (haréns)
(de divas) (marroquinas.) (um outro) (de denso) (cavanhaque) (e nariz)
(encurvado) (discutia) (platão) (e plotino.) (mulheres) (de seios) (rosados)
(entoavam) (árias) (de concerto.) (havia) (pratos) (refinados) (de atum) (e
salmão,) (garrafas) (de vinho) (espanhol) (e cheiro) (forte) (de fumo)
(africano.) (eu era) (o rei) (do haxixe,) (até) (certo dia,) (quando) (fui
surrado,) (como) (um) (escravo,) (cuspido) (e) (atirado) (para fora) (dos
salões,) (como) (um corcunda,) (leproso,) (bufão.) (senhores,) (vejam,) (ali)
(vai,) (célere,) (espavorido,) (o) (macaco) (cantante.)
gavita, gavita. sim, está enfeitiçada, e fala ganidos. ela, minha bela, dona e
dânae, minha flor amarela, meu bicho-da-seda, minha floresta. eu sou o teu
dervixe, tua chuva de ouro, teu apache, teu urso polar. vem, deusa de tetas
verdes, vem aos meus braços, como no tempo em que te conheci, na terra do gelo.
você me dizia de países distantes, em que são servidos licores de pétalas de
rosa. onde há carros floridos movidos pela mente, e macacos que entoam devotadas
preces. eu enlaçava tua cintura delgada, e recitava o mantra dos jogos nupciais.
para as estrelas de cristais
gelados / as ânsias e os desejos vão subindo, / galgando azuis e siderais
noivados, / de nuvens brancas a amplidão vestindo. mas agora soa apenas a sina da
insânia, pretume, pedraria, pesadelo; desnudas deidades descartam os danados,
riem dos duendes da demência. (sozinho,) (no rito) (intenso) (da nevrose,)
(junto) (minhas cinzas) (no místico) (cinerário,) (ao som) (de brahmânicos)
(sonidos.) (shiva,) (shiva) (nataraja,) (onde,) (em que) (lua) (ou pétala)
(ofendi) (a memória) (de um deus?). (senhor) (dos dançarinos,) (quando,) (em
que era) (noturna) (de infortúnios) (cometi) (os mais terríveis) (enganos?)
(estas) (são) (as mãos) (de um) (criminoso,) (turco) (ou judeu.)
(apedrejai-me,) (sim,) (apedrejai-me,) (para abreviar) (a minha) (longa)
(miséria.)
(vítor,) (houve uma ilha) (em que os homens) (e as mulheres) (andavam nus,) (e
as árvores) (geravam) (pomos) (de ouro.) (filetes de água) (escorriam) (pelo
verde) (limoso) (das rochas.) (o sol) (de bronze) (festejava) (os ritos)
(da primavera). (monolitos) (decorados) (com coroas) (de flores) (pontiagudas.)
(oferecia-se) (aos deuses) (música) (de tambores) (e frutas) (saborosas.) (tudo
era calma,) (beleza) (e languidez.) (tudo era dança, dança, dança.) (oh senhor)
(dos rios) (que se encontram,) (em que distante) (esfera) (perdi) (a minha
vida?)
está enfeitiçada, sim, enfeitiçada, triste espectro que vomita estrelas. cega e
surda, não escuta clamores; ordena traições e incestos; sorri dos servos
fenícios degolados. crianças, esta ainda é a sua mãe. venham. vamos conversar.
o nilo banha o egito, terra de escribas e papiros. o sena flui em paris, onde
os poetas são jovens tuberculosos. o tâmisa tem o fog londrino como cenário, e
abriga as ossadas de um famoso maníaco. o ganges nasce dos pés de lótus de
krishna. é preciso lembrar das savanas e das estepes. das matas tropicais e dos
desertos. dos míticos vulcões e das geleiras. é preciso conhecer o mundo.
(eu quero sair do mundo.) (habitar outros pórticos.) (aprender) (idiomas) (sem
vogais.) (há uma estrela) (de musicais) (estatuarias.) (há um espelho) (que
reflete) (apenas) (minaretes) (de mesquitas.) (há uma moeda) (que mesmeriza)
(tenores) (e contraltos.) (há uma lesma) (ou plasma) (que abraça) (os meninos,)
(sorrindo) (truculenta,) (brutal,) (um riso) (azul) (de agonia.) (certa vez)
(sonhei) (um livro) (infinito.) (suas paginas) (eram translúcidas) (como um
espelho.) (as palavras) (brotavam) (como gotas) (de chuva) (borradas,)
(sangradas) (no vidro) (do papel;) (as letras) (eram arcanjos) (desnudos,) (que
cantavam) (em timbre) (agudo,) (numa) (voz) (escura,) (quase) (silêncio.) (eu
sou) (talvez) (esse livro.)
gavita, gavita. reclinada em seda e linho, lua minguante, no entressonho. seus
caninos nivosos, torneados, como jóias de marfim. suas palmas, de rosácea; os
clarões das unhas, e os olhos, corolas de hibisco. ela amava as valsas
ingênuas, os realejos e tristes ametistas; o chá servido em baixela; o sabor do
vinho branco; passear de braços dados, no largo do coreto. súbito, cai uma flor
amarela, no tanque de água; ela sorri, e recorda quando a abracei, no jardim
dos moura schiavo, lembra-se do que eu disse em seu ouvido, você é só encanto,
encantamento, my love is as a
fever, longing still. ela coloca meus dedos em sua boca e diz que eu tenho
o olhar cigano de um nômade estrangeiro; e acaricia meus cabelos com os dedos
finos, suaves, tão suaves. mas isso foi em outra aurora; agora apenas gira,
desorientada, sem rumo nem prumo, sem ver-me ou ouvir-me, dolente e demente,
enfeitiçada.
ela é tão bonita como um sarcófago etrusco, espada sarracena, bi-ombo japonês.
seus pequenos pés, que bocas
febris e apaixonadas / purificam, quentes, inflamadas / com o beijo dos adeuses
soluçantes. a boca, viçosa,
de perfume a lírio, / da límpida frescura da nevada, / boca de pompa grega,
purpureada, / da majestade de um damasco assírio. ela foi a minha máscara.
ela é o meu fetiche. serei então o teu lacaio, teu pajem e eunuco. renuncio a
minha vaidade, narciso despido de narciso. sou agora teu mendigo; serei teu
diabo, teu criado, teu cão.
gavita, gavita; minha fada e apsara;
agora repousa, negra e magra, como galho seco; a pele tensa, de cervo degolado;
os olhos turvos, de noite proscrita. estirada, como massa amorfa, ou bolo
vegetal; os braços líquidos, de nereida; a voz desfeita, em careta torpe.
esticada, como um animal ou coisa; atirada, não, colocada no caixão, digo, em
seu leito de extintas exéquias. meninos, esta é sua mãe; vamos deixá-la em paz, é hora de dizer bonne nuit. venham fazer
as orações, no oratório; em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. é
preciso fechar bem as portas e janelas; reler um soneto de camões; beber o copo
de leite; abocanhar o naco de pão; esquecer um verso no idioma páli; fazer-me
treva; guardar o grito ancestral no livro de retratos.
ela está
enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de
taumaturgo. insano, febril, como quem fuma visões de navios e cetáceos, desenho portais de estranhos labirintos, dragões
de esquecida tapeçaria, sinos de catedrais submersas. vejo a noite decapitada. ouço a chuva que cai,
tênue como o som de um cravo metafísico, remota sonata para medo e medula, no
patíbulo das horas. recordo seus olhos de cravos e cravinas. seus olhos de uma
tarde em setembro, quando havia um céu de seda e o apito do trem na estrada de
ferro. eu via suas mãos crescendo como ventosas, os lábios de estilete, o corpo
querendo voar. meninos morenos corriam na estação, sombrinhas e sobretudos
criavam asas, uniformes e tabaco gritavam em cinza, um topázio virava uma
estrela. esta foi a tarde azul da metempsicose.
gavita, gavita. foi minha culpa,
meu pecado, que invocou esse fado? terei perdido a luz de sua luz por uma
absurda, obscura vaidade? eis o que os versos me deram, a ardente areia
desolada, o rito absíntico do medo. abyssus abyssum invocat. soa a
meia-noite; agora, devo cuidar dela. velar seu sono, na madrugada inquieta. abrir
seus punhos mudos, para o repouso; repelir do leito a cabeça do lagarto;
pendurar suas vestes, guardar caixinhas e estojos, enxugar sua face. oh, senhor
dos caminhos que se bifurcam. penso, mais de uma vez, em fazer-me
nada entre nadas; partir rumo à nebulosa, mas não posso. ela está enfeitiçada,
e treme toda, torva e turva; é fera e fúria. sim, cuidarei dela, e sempre a
amarei. um amor obsessivo e triste, amargo e amarelo.
(Do livro Cores para cegos. São Paulo:
Lumme Editor, 2012)
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