sábado, 7 de setembro de 2013

MEUS POEMAS EM PROSA (I)


MARINHA BARROCA 

o azul-espuma-catarata, azul-quase-branco-nébula, de mar branqueado no azul-lótus-krishna; delfim que sulca em saltos as vagas azul-marinho-almíscar como graciosa dançarina cambojana, pés-apsara; e (miríades!) aves aquáticas em mandálicos dervixes rodopios rumo ao meru, imenso portal laqueado, sob o céu-plumas-lakshmi, que se abre como noiva. filetes de azul-violeta nas pupilas do inseto que vê: nos brancos lençóis de areia, a velha senhora obesa, vulva em pêlos esbranquiçados, suas lágrimas fermentando taças licorosas, sob o guarda-sol; o sardônico bioquímico alemão, longas suíças platinadas, que corta o presunto em fatias, entre cusparadas; e a bela ninfeta  vietcong, sinuosas pernas mecânicas, cujo olhar incendeia como napalm. por fim, o pinguim ártico banido por  excessivo daltonismo. depois, nada se vê, só o mais puro azul.

(Do livro Yumê. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999)

  
O ESPELHO E AS COISAS


I

OLHO-de-virgo, barriga-de-peixe, dentes-de-leão: palavras são reflexos. Habitei no espelho e comi serragem, vidro moído, trapos de jornal; e copulei com os relógios de pulso, com as navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da sala, entre as vogais dispersas do alfabeto, estilhaços de ampolas para abolir a idéia do tempo. Os vermes saem pelo buraco da agulha, a palavra jade é pus, a palavra jalde é cuspe. A palavra janga está nua, vestida de alarme. As maçãs enlouquecem. O verde enfurece as conchas e a lesma pensa na árvore da palavra despida que sonha.

II

Tudo são nomes e formas. Lâminas cortam os fios desatados de água estagnada. Há uma praça onde comprei pêras ou figos, não sei. Onde ouvi a menina dizer eibishuá. A lua pisca um olho para a jovem parca, ela é cega e surda, e come entulho no banco da praça. Sua voz arisca, bruta, tantaliza: fio de arame tenso, buraco de agulha, cano de pistola. Tudo são palavras, e palavras são coisas. Que não permanecem. Tudo queima, e o sol vegetal é a urina de um cão que arde em vermelho.

III


A poesia pode dizer o tempo que escorrega de seus dedos? A poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página, sítio de possíveis reflexos. Tudo são simulacros, pegadas no limo do nada. Todavia, o velho coxo sangrado disputa comida com o cão. A poesia pode andar de bicicleta, deslancha no mar azul, onda em castelhano se diz ola, nuvem em francês se dia nuage. Ela pode ser escrita em pele viva, em algodão, no suor do Marrocos, no violoncelo de São Petersburgo, numa bodega de La Habana. Porém, a tesoura corta tudo em pedaços. Permanece uma sombra, um eco de ruidoso silêncio. Que o espelho captura e multiplica em um número incalculável de reflexos. 


(Do livro A sombra do leopardo. São Paulo: Azougue Editorial, 2001.)


Chave de fenda

Pactuar com jaguares e seus caninos, sol ácido na tela de cristal líquido. Tudo são imagens mentais, as flores de plástico no vaso da sala e os olhos miúdos do nômade tunisiano. Tudo é inútil. Perfurar a parede com a furadeira, limpar suavemente o pó da superfície e fazer o encaixe do parafuso, na altura calculada. Pensar em topázios fecais, em leões alados e numa princesa-serpente de enormes tetas, vestida de luz violeta. Torcer os punhos, os calcanhares. Revirar os olhos. Parafusar com a chave de fenda a cabeça de metal do touro minúsculo e então pendurar no lugar do retrato a sua própria medula óssea, recém-arrancada.


Secador de cabelos

Um jogo de escorpiões apodrece as horas. Cabelos e olhos para os corvos; fome obscura no couro cabeludo. Toda superfície inquieta-se, em febre surda ou gagueira. Impossível não pensar em jardim de espelhos, cristais de vômito, gravuras de dragão. Folhear revistas de desertos africanos, contemplar as folhas amareladas do outono e pensar em algo profundo que disse Giordano Bruno. Sentir o cheiro vermelho do esmalte, como sangue para coagulação,  até  um movimento preciso de escova que ceifa a lua com os polegares. All you need is love. 


Guarda-chuva

Céu tenso, desatino anfíbio de vogais. Gota após gota, líquidas facas sobre o asfalto, sinfonia monótona de felinos. O tecido de escura tenda árabe, com suas arestas metálicas, pouco resiste ao sonoro impacto das ondas aéreas. Mínimo deslize afasta nossa única defesa, e ficamos vulneráveis como Jonas na goela da baleia; como o exército egípcio no mar Vermelho. Com terror, fugimos, aguardamos o fim do evento, que é eterno, trágico, obsessivo.


Garrafas

Juntar as garrafas na prateleira entre aranhas e arames, novelos de barbante e martelos. Empurrar as caixas de pregos, os vidros e latas de tinta para colocar os olhos. É preciso esquecer os mapas, cadarços, jornais velhos. Queimar fotografias, lembranças, almanaques farmacêuticos. Afastar um pouco as caixas de papelão, para depositar o nojo. Empilhar, junto às revistas, os ossos, palavras e ódios. Deslocar toda sombra, que fere como um ácido. Acender o cigarro no maçarico, cuspir catarro com alcatrão e soletrar, com a voz ainda trêmula, as sílabas abertas da navalha.

 BARATA

Seminuas vendem sabonetes e o mar azul-da-prússia de paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sincopados de ancas revelam saliências epidérmicas ao som da música melíflua de oboés. Jatos d’água escorrem pela concha do umbigo sob o céu cocainado, longe de estrias e da micose que avança nos pés. O verde em alta definição da folhagem oculta o sulco espesso da cavidade e atrai suspiros plásticos, romanescos, fluindo como sangue menstrual. Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma máquina de calcular. Iates e sol jamaicano anunciam o novo capítulo da novela. Seminuas têm medo de barata. 

PIOLHO

Money is a crime

     Roger Waters

Barítono de carapaça e gravata quase lilás mergulha os olhos baços no copo de cerveja irlandesa entre cotações do mercado financeiro.

 (Passa uma sombra magra de seios fumantes.) Verde álcool, cogumelos e vozes graves de semblantes que suicidam a noite estrelada.

 Lady sings the blues para vocal e piano. Retrato de Wilde na parede e tapeçarias com toscos motivos de gnomos de barba pontuda. 

 O business man engole nacos de carne vermelha entre chamadas ao celular e citações do Economist sobre a crise da balança comercial.

Tabaco provoca câncer. Trabalho conduz à liberdade. Café com creme e canela. A metafísica do compromisso  institucional.

 Todo homem de negócios é sério. Tem sapatos sérios de couro italiano e óculos sérios com aro de tartaruga. New York, New York. 

Bico de papagaio na coluna recurvada. Folders de lançamento do novo produto. Brieffings para a mídia. Um calor estival, quase Saara.

Relógio digital marcando quinze minutos para Qualquer Tempo. Uma vaga sensação de arritmia (fadiga ou problemas coronários).

Executivos sempre usam marcapasso, água-de-colônia e longas meias pretas.

(Do livro Figuras metálicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.)

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