MARINHA BARROCA
o azul-espuma-catarata, azul-quase-branco-nébula, de mar branqueado no
azul-lótus-krishna; delfim que sulca em saltos as vagas azul-marinho-almíscar
como graciosa dançarina cambojana, pés-apsara; e (miríades!) aves aquáticas em
mandálicos dervixes rodopios rumo ao meru, imenso portal laqueado, sob o
céu-plumas-lakshmi, que se abre como noiva. filetes de azul-violeta nas pupilas
do inseto que vê: nos brancos lençóis de areia, a velha senhora obesa, vulva em
pêlos esbranquiçados, suas lágrimas fermentando taças licorosas, sob o
guarda-sol; o sardônico bioquímico alemão, longas suíças platinadas, que corta
o presunto em fatias, entre cusparadas; e a bela ninfeta vietcong, sinuosas pernas mecânicas, cujo
olhar incendeia como napalm. por fim, o pinguim ártico banido por excessivo daltonismo. depois, nada se vê, só
o mais puro azul.
(Do livro Yumê. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999)
(Do livro Yumê. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999)
O
ESPELHO E AS COISAS
I
OLHO-de-virgo, barriga-de-peixe, dentes-de-leão: palavras são reflexos.
Habitei no espelho e comi serragem, vidro moído, trapos de jornal; e copulei
com os relógios de pulso, com as navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da
sala, entre as vogais dispersas do alfabeto, estilhaços de ampolas para abolir
a idéia do tempo. Os vermes saem pelo buraco da agulha, a palavra jade é pus, a
palavra jalde é cuspe. A palavra janga está nua, vestida de alarme. As maçãs
enlouquecem. O verde enfurece as conchas e a lesma pensa na árvore da palavra
despida que sonha.
II
Tudo são nomes e formas. Lâminas cortam os fios
desatados de água estagnada. Há uma praça onde comprei pêras ou figos, não sei.
Onde ouvi a menina dizer eibishuá. A lua pisca um olho para a jovem parca, ela
é cega e surda, e come entulho no banco da praça. Sua voz arisca, bruta,
tantaliza: fio de arame tenso, buraco de agulha, cano de pistola. Tudo são
palavras, e palavras são coisas. Que não permanecem. Tudo queima, e o sol
vegetal é a urina de um cão que arde em vermelho.
III
A poesia pode dizer o tempo que escorrega de seus
dedos? A poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio
da página, sítio de possíveis reflexos. Tudo são simulacros, pegadas no limo do
nada. Todavia, o velho coxo sangrado disputa comida com o cão. A poesia pode
andar de bicicleta, deslancha no mar azul, onda em castelhano se diz ola, nuvem em francês se dia nuage. Ela pode ser escrita em pele
viva, em algodão, no suor do Marrocos, no violoncelo de São Petersburgo, numa
bodega de La Habana.
Porém , a tesoura corta tudo em pedaços. Permanece
uma sombra, um eco de ruidoso silêncio. Que o espelho captura e multiplica em
um número incalculável de reflexos.
(Do livro A
sombra do leopardo. São Paulo: Azougue Editorial, 2001.)
Chave de
fenda
Pactuar com jaguares e seus caninos, sol ácido na tela
de cristal líquido. Tudo são imagens mentais, as flores de plástico no vaso da
sala e os olhos miúdos do nômade tunisiano. Tudo é inútil. Perfurar a parede
com a furadeira, limpar suavemente o pó da superfície e fazer o encaixe do
parafuso, na altura calculada. Pensar em topázios fecais, em leões alados e
numa princesa-serpente de enormes tetas, vestida de luz violeta. Torcer os
punhos, os calcanhares. Revirar os olhos. Parafusar com a chave de fenda a
cabeça de metal do touro minúsculo e então pendurar no lugar do retrato a sua
própria medula óssea, recém-arrancada.
Um jogo de escorpiões apodrece as horas. Cabelos e
olhos para os corvos; fome obscura no couro cabeludo. Toda superfície
inquieta-se, em febre surda ou gagueira. Impossível não pensar em jardim de espelhos,
cristais de vômito, gravuras de dragão. Folhear revistas de desertos africanos,
contemplar as folhas amareladas do outono e pensar em algo profundo que disse
Giordano Bruno. Sentir o cheiro vermelho do esmalte, como sangue para
coagulação, até um movimento preciso de escova que ceifa a
lua com os polegares. All you need is love.
Secador de cabelos
Guarda-chuva
Céu tenso, desatino anfíbio de vogais. Gota
após gota, líquidas facas sobre o asfalto, sinfonia monótona de felinos. O
tecido de escura tenda árabe, com suas arestas metálicas, pouco resiste ao
sonoro impacto das ondas aéreas. Mínimo deslize afasta nossa única defesa, e
ficamos vulneráveis como Jonas na goela da baleia; como o exército egípcio no
mar Vermelho. Com terror, fugimos, aguardamos o fim do evento, que é eterno,
trágico, obsessivo.
Garrafas
Juntar as garrafas na prateleira entre
aranhas e arames, novelos de barbante e martelos. Empurrar as caixas de pregos,
os vidros e latas de tinta para colocar os olhos. É preciso esquecer os mapas,
cadarços, jornais velhos. Queimar fotografias, lembranças, almanaques
farmacêuticos. Afastar um pouco as caixas de papelão, para depositar o nojo.
Empilhar, junto às revistas, os ossos, palavras e ódios. Deslocar toda sombra,
que fere como um ácido. Acender o cigarro no maçarico, cuspir catarro com alcatrão
e soletrar, com a voz ainda trêmula, as sílabas abertas da navalha.
BARATA
Seminuas vendem sabonetes e o mar azul-da-prússia de
paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sincopados de ancas revelam
saliências epidérmicas ao som da música melíflua de oboés. Jatos d’água
escorrem pela concha do umbigo sob o céu cocainado, longe de estrias e da
micose que avança nos pés. O verde em alta definição da folhagem oculta o sulco
espesso da cavidade e atrai suspiros plásticos, romanescos, fluindo como sangue
menstrual. Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma máquina de
calcular. Iates e sol jamaicano anunciam o novo capítulo da novela. Seminuas têm
medo de barata.
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