domingo, 29 de setembro de 2013

POEMAS ERÓTICO-AMOROSOS




PARTITURA

Perplexidade, raios de um sol

que redesenha seu centro;

essa matéria tão delicada,

ferozes epitélios da flor;

deslizando das pupilas,

revoluta, para outro mar,

após tingir o flanco da noite.

Fosse apenas o perambular

em outra relva, seria tema

de chanson;  dissociada de mim,

reclinada em lua minguante,

seria musa de retrato fauvista,

excedendo o rubro tigrino.

De todo modo, um dia vou

felinizá-la em partitura.

RAPTO 
Para iniciar uma lua pelos filamentos, em articulações

de répteis.

Obliterar os arredores

ao esquadrinhar a pele.

Descrever

joelhos como náutilos,

seios como escabelos,

esse é o meu hibridismo,

minha fome vertebrada.

Acontece que

a expansão do branco

bifurca-se, espraia-se

esqualidamente

do lábio ao umbigo,

em simulado rapto.

Ame o mapa de meu rosto,

sua caligrafia de incinerações.


ESCRITO EM FLOR

paisagem musical

onde o amarelo
dá sentido ao vermelho:
esta é uma canção
de amor.

*

lábio (pétala)
submerge
em topázio-tigre,
até sangrar as ilhas
do desejo.

*

esfinge do espelho
ou cegueira:
(real) imaginária.

*
uma flor (a lebre), partículas do mundo nas retinas.

*

cada abelha sonha
uma rosa imantada.

*

violetas indagam
onde trópicos noturnos,
ritmos bruxos,
areias núbeis
de contato.

*

no avesso das pálpebras:
onde ver o porto
da viagem,
do mistério ao desatino.


NOITE-SEIOS

luazulada

alvíssima

deslinda-

se no céu

finíssima

auréola:

pó de luz

que cintila

nos róseos

mamilos

desnudados

— lua

em luas

refletida,

prata

em prata

lucilada


NOITE-ESPERMA

esbranquiçadas

estrelas

prateiam

o negrume

cetinoso

com lácteos

jatos

(deslumbre

de luzes)


YUMÊ

 tu-
as pál-
pebras: me-
chas de té-
pida seda
escura;

— o charme
sutil da lua
trêmula, em
rápidos
        traços
de pincel.

no tumul-
to de teus
pequenos
pés, o salto
do felino e
o ágil rumor
                   de asas
                               da butterfly

                                                             

GOYA

maja
desnuda

se
espraia
e
adensa

na
cambraia
de
provença


SUTRA

para Reginabhen

pálpebras de alfazema
cintilantes luas sem enigma
sob o céu anúbis-tânger-cicatriz
na seda cor de nuvem que simula o desejo
serpenteiam formas de dançarina moura
de seios tamarindo e lábios sabor anis
o seu púbis shiva kali irrompe como rosa
cítara que emudece o pensar do amante
e lhe toca o coração
no mais cálido êxtase de santos dervixes
mulher sem álgebra, sem mitologia, sem cabala
ou neurocibernética quântica
a mais-que-perfeita expressão do verbo
que resume à sua maneira schopenhauer
os manuscritos de alexandria
os fabulosos cálculos dos astrônomos
e os acordes finais e um pianista de blues
dama feita para mim e o meu desejo de outro
que em tuas mãos é um leão domesticado
e no entanto és apenas uma mulher
deitada no lado esquerdo da cama

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

UM POEMA DE HORÁCIO COSTA


PARA SER LIDO NO MÍNIMO DUAS VEZES 

Ó mil vezes cristal afortunado,
Alpe luzido, luminar nevado!

Frei Jerônimo Baía

Não há anjos neste quarto mas é como se houvesse.
Descrevâmo-lo, então:
um cubo de dois metros e trinta de lado
por algo mais de altura, ainda assim
as paredes estão forradas
com damasco cor de sangue e dourado
em faixas verticais,
as rubras decoradas em dévoré
com imagens como as dos xales de Paisley
simétricas e duplicadas,
só que mais barrocas ainda,
parecendo corações de barriga para cima
unidos por motivos florais sucessivos.
As outras faixas, mormente ouro-velho,
possuem um motivo geométrico
laxamente losangular
que de perto assemelha-se
a “v”s com uma lágrima
gentilmente pousada
no ângulo interno da letra.
Pelo chão o carpete imita
um roseiral bizarro pelo qual pisássemos:
rosas beges de dois tons repetem-se
num padrão diagonal,
unidas por suaves folhas verdes
não menos bitonais,
do meio das quais surgem
alternadamente
outras rosas bege-claro e mais claro,
apenas que menores,
tudo isso sobre um fundo
igualmente bordô.
As esquinas das paredes deste quarto
têm cordões dourados, à diferença do rodapé,
feito com o mesmo carpete de rosas
de fictiva pigmentação,
ritmicamente maiores e menores.
A única janela, alta, de duas folhas,
está protegida por um cortinado

vitoriano, outrossim, que consta
de um tecido tricolor, de tonalidades
tinto, rosa velha e áurea,
disposto verticalmente,
porém amarrado à direita e à esquerda
com cordões cor de messe
que levam a dois pingentes
como espanadores de ponta cabeça,
também jalnes e esmaecidos.
Esta cortina de fora é debruada
com mini pompons
em forma de caracol:
tudo aqui remete à imagética
dos Doges. Por detrás
de tal cascata, e por debaixo
do pequeno baldaquino
rubro com pois creme
que disfarça a caixa da persiana de correr
-cujo controle é automático
desde um botão na cabeceira da cama,
ponto branco circundado
por uma moldura de latão BTicinopois, por debaixo dessa cascata,
dizia, de tecido rebrilhante,
escorre, singelo, um cortinado branco,
como de voil só que sintético
e sujo como estas baixas nuvens
venezianas.


O efeito geral é havermos entrado
para habitá-la e sem prévio aviso
uma caixa criada por algum
Christian Lacroix sem sentido
de paródia ou charme, por exemplo
um modista de algum dos grotões
de algum grande império tropical,
quem, sendo íntimo e confidente
da usineira viúva do local,
tivesse decidido decorar a sua villa
de tal forma que ela gastasse muito
com os detalhes mais mínimos,
para fazer-se mui polpudas comissões
em lojas de europeus nomes.


Devo dizer que o teto é bicolor
branco e sangue-de-boi? o centro
é branco, mas entre a superfície engessada
e o contorno, vá lá: magenta, sim, magenta,
há como que uma onda contínua de gesso
a terminar em pequenas volutas
que remetem aos rocailles
dos tempos de Casanova,
a cada ângulo do quadriforme
formato.
Devo ainda dizer que deslocado
a uma das laterais desse teto
pende um lustre aparatoso,
sobre o qual a vista pausa?
- redondo no centro num semicírculo invertido
como o do Senado Federal em Brasília,
de seu fuste branco saem cinco braços e,
claro, nos intervalos entre eles
há grande folhas de acanto de vidro leitoso
e com pigmentação de chuva de ouro:
como se Júpiteres eternamente engravidassem Dânaes
neste Murano barato.


Escrevo debaixo de tal luminária
sentado sobre o leito estreito
cuja cabeceira lhe é o dobro maior
e vem laqueada em branco com buquês
de margaridas cor de malva
e também azuizinhas, dispostos
pelas neobarrocas, multiplicantes reentrâncias,
assim como os criados-mudos, o pequeníssimo
escritório e a cadeira Marie-Thérèse
forrada em veludo celeste, que se reflete
no único espelho
amplo e bisotado,
suspenso a uma altura que também duplica
a garrafa pet de água oligomineral
-que domina o tampo de vidro da mesinha
como se um campanile a alguma maquete
de piazza comunal-, o copo de plástico,
o televisor de dezessete polegadas
e que não funciona, tudo isso
jacente sobre o sobrecarregado
diminuto móvel utilitário:
por isso, disse, escrevo sem apoio
que não o deste caderno sem pauta.



Resulta
este tratado de estética quer.
o lado de lá deste cubo pitoresco,
este ready-made à la Duchamp redivivo
e identificado no correr dos dias que correm,
neste alucinante cubo pós-silogístico,
está o mundo com suas oposições:
pombas machos e fêmeas, água e neve,
dias felizes ou infelizmente vividos
e pequeníssimos pátios onde os seres
quando conseguem, cultivam jardins
ou a erva daninha, o êxtase
e a loucura e há gente boa
e gente má, e políticos...
Vc
queria ser cool e minimalista, pois não?
poucas pinceladas, um hai-kai?
com a confortável segurança
de um leitor que manejasse o bisturi
da leitura como se experiente obstetra, não é?


Pois conte comigo, serei o teu guia,
ainda que não ofereça nenhuma
motosserra para desbastar a floresta
do teu tatear o texto que o extravasa
como uma zuppa di pesce, bollito misto ou bagna caôda
a escorrerem para fora do caldeirão
e cujas receitas são abscônditas e se perdem no escuro dos tempos...
Ainda assim, conheces a minha simpatia,
vem do grego sympathikós,
que só para ti cozinho semelhantes
ingredientes.
Porém, leia este poema de novo,
no mínimo duas vezes.

Não há anjos neste quarto mas é como se houvesse.


Veneza 28-30 I 010

(Poema do livro BERNINI. São Paulo: Demônio Negro, 2013)

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE: HORÁCIO COSTA



Bernini, livro de poemas de Horácio Costa publicado pelo selo Demônio Negro, faz alusão, já no título, ao genial pintor, escultor, arquiteto e cenógrafo Gian Lorenzo Bernini, um dos artistas mais destacados do barroco italiano, conhecido, entre outras obras, pela escultura O êxtase de Santa Teresa, exposta na capela da Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma. O paralelo com o barroco não é acidental: o próprio autor, no prefácio do livro, afirma: “A sensação que me assiste é que vivemos um novo Barroco. Se aquele histórico muitas vezes parece haver-se caracterizado pela posta em cena do escape de uma realidade demasiado cruel para ser suportada, o presente, talvez, possa apresentar-se como a determinação de perfurar o bloco da História com persistentes berbequins. A poesia, nesse sentido, oferece um ponderável fazedor de orifícios”. A ação perfuratriz do poeta abre espaços para uma diversidade de referências populares ou enciclopédicas, desde a prostituta indígena que nasceu para cantar até citações em latim (“Nec pluribus unum”) e óperas italianas (L’Elixir d’Amour), com vagas ainda para toda uma fauna da cultura de massa, como Cebolinha e Beyoncé. Os poemas deste livro são ambientados nos mais imprevisíveis territórios, desde as Ilhas Comoras até a Praia do Abricó, incluindo também Lisboa, Aveiro, Veneza, Buenos Aires, o castelo de Elsinore de Hamlet e diversos sítios de São Paulo, que fazem parte da geografia sentimental do poeta. Há referências e dedicatórias a diversos amigos do autor, poetas e artistas plásticos, como Roberto Piva, Burle Marx, Tomie Othake, Ana Hatherly, E. M. de Melo, que figuram não apenas como índices de um repertório cultural, mas também como personagens de diário íntimo. Em Bernini, como em outros livros de Horácio Costa, sobretudo Ravenalas, Homoeróticas e Paulistanas, o poeta incorpora o cotidiano na poesia, sem temer a lírica confessional ou cronística, e adota um “confronto direto com a realidade brasileira”, como ele mesmo diz no prefácio: as manchetes de jornais viram temas para a poesia, com viés crítico-satírico, como acontece no poema Lendo o noticiário:


Sue, a Tyranossaurus
Rex, morreu de
dor de garganta,
afirma um dinossaurista
em Wisconsin, e não
das mordidas de outros
dinossauros. Irtiersenu,
a múmia egípcia
por décadas olvidada
numa gaveta do Museu
Britânico, não morreu
de câncer de ovário,
como até há pouco
se pensava: terá tido
sete filhos e seu aparelho
reprodutor de dois mil
e seiscentos anos está
intacto. O bacilo
de Koch atravessou
o caminho entre ela
e seus netos. Até agora
não se havia confirmado
a existência da tuberculose
no Antigo Egito nem
a do parasita trychomonas
gallinae no período
cretáceo. A ação de censura
contra O Estado de São Paulo
promovida pelo filho do
Excelentíssimo Senador
pelo Amapá José Sarney,
defensor perpétuo de sua
numerosa prole, há sessenta
e dois dias vigente, foi
mandada para o Tribunal de
Justiça do Estado do Maranhão.
O do Distrito Federal
considerou-se incompetente
para julgá-la. Quatrocentos
é o numero de bilhões
de dólares americanos que o
presidente da Petrobrás considera
necessários para que
se proceda à exploração
do petróleo no pré-sal.

A tiranossaura Sue.
A múmia Irtiersenu.
A família Sarney.
O pré-sal.
Tenho companhia animada
agora que me sento à mesa
para mais uma edição
do meu café da manhã.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

PROGRAMAÇÃO DE SETEMBRO DA CURADORIA DE LITERATURA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO




Poemas à Flor da Pele

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Sexta-feira, dia 13/09/13, das 19h às 20h30  

Sala Adoniran Barbosa


Clube de Leitura de Poesia

O poeta Horácio Costa apresentará um depoimento sobre o seu trabalho literário e fará a leitura de alguns de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.

Quinta-feira, dia 19/09/2013, das 20h30 às 22h 

Sala de Debates


Menu de Poesia

Recital dedicado à poesia de Vinícius de Moraes, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Haverá tradução de libras.

Sexta-feira, dia 20/09/2013, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa


Poetas de Cabeceira

Claudio Daniel fará uma palestra sobre o poeta maranhense Joaquim de Sousândrade, autor do poema longo O guesa errante e o mais inventivo autor de nosso romantismo.

Haverá tradução de libras.

Terça-feira, dia 24/09/2013, das 20h30 às 22h 


Sala de Debates

domingo, 15 de setembro de 2013

UM POEMA DE ARMANDO FREITAS FILHO




MERCADO

A lista dos mais vendidos 
devia ser colada nos muros
como a dos Procurados, pois
se não se venderam foram comprados
para esse jogo, e valem quanto pesam.

Como um saco de laranjas-lima 
passadas, valendo mais que uma:
saborosa, para ser desfrutada
mas imprópria para o consumo cego
ao contrário das outras todas, sem gosto.

(Do livro DEVER. São Paulo: Cia. das Letras, 2013)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

FÓSFORO BRANCO



Fósforo branco ácido ilumina escombro escárnio nos céus do Líbano.

Talhos retalhos de torsos retorcidos

ossos negrume carcaças.

Corpos enfileirados peles requeimadas

de carne sucata

nos campos de refugiados

em Sabra e Chatila.

Esta é a hora do morticínio.

Farpas fiapos nacos de membros desmembrados

e o aroma escuro escuro da hora lenta lenta de um dia que nunca nunca termina.

Nenhum Kaddish para os filhos da escrava Agar

nenhuma lágrima para Ismael.

Apenas o silêncio de talhos retalhos peles farpas fiapos

e o escuro escuro.

Esta é uma história

exilada da história

que eu e você não devemos saber:

por isso cala o escombro cala o negrume cala a sucata do morticínio.

É preciso calar

a matraca dos jornais;

sim é preciso fechar os livros fechar para sempre os livros

e condenar os mortos à perene desmemória

(em algum sítio

mefistofáustico

de Tel Aviv

que moveu a macabra máquina da morte

a estrela de David

se converte

em nova suástica).

Porém eu e você não nos calamos

eu e você não iremos esquecer

eu e você somos o cedro do Líbano a oliveira da Palestina

o pão fresco nas mesas da Síria.

Houve aqui uma página infame da história

mas eu e você recusamos o silêncio

recusamos o esquecimento

recusamos o perdão.


Dedicado a Emir Mourad


Este é um poema que escrevi em 11/09/2013 para ler no recital Palestina em poesia, prosa, som, imagem, que será realizado no Club Homs, no dia 18 de setembro, quarta-feira, a partir das 20h, para relembrar o massacre nos campos de refugiados palestinos em Sabra e Chatila, no Líbano, cometido pelos falangistas libaneses com apoio e participação das forças de ocupação israelenses, em 1982. No recital, haverá a leitura de poemas de autores brasileiros e palestinos por Marcelo Ariel, Khaled Fayez Mahassen, Claudio Daniel, Lelia Maria Romero, Rosana Piccolo, Israel Azevedo, Celso Vegro e Célia Abila

quarta-feira, 11 de setembro de 2013


SÍRIA: UM XEQUE-MATE EM OBAMA?



A Rússia realizou uma jogada de mestre. O acordo de paz apresentado pela diplomacia russa para evitar o ataque norte-americano à Síria colocou Obama na defensiva. A população norte-americana não deseja a guerra, pelo alto custo financeiro e em vidas humanas de um conflito que pode ser ainda mais longo, custoso e imprevisível do que a invasão do Afeganistão e do Iraque, e certamente os parlamentares do Congresso norte-americano, que em breve voltarão a concorrer nas eleições, não podem ficar totalmente insensíveis aos desejos de seus eleitores. Obama encontra-se sob dupla pressão: de um lado, os sionistas e empresários das grandes corporações instigam o ataque militar a Damasco, de outro, sofre a pressão da opinião pública nos Estados Unidos e da Europa contra a guerra. O acordo proposto pela Rússia – e aceito pelo governo sírio – oferece à administração americana uma “saída honrosa” para cancelar – ou pelo menos adiar – a nova agressão imperialista. Para o país árabe, o acordo é vantajoso porque oferece a Bashar Al-Assad  mais tempo para vencer a guerra contra os mercenários, sem privar-se do que há de mais avançado e eficaz em seus meios de defesa – mísseis de todos os tipos, canhões, caças e tanques de alta tecnologia fornecidos pela Rússia. As armas químicas não são eficazes numa guerra convencional; podem causar pânico e terror psicológico em populações civis e deixar sequelas físicas por várias gerações, como acontece ainda hoje no Vietnã, bombardeado com napalm e agente laranja pelos EUA, mas não são armas que garantem o resultado de um conflito (o arsenal nuclear de Israel é infinitamente mais poderoso do que qualquer arsenal químico).  Por outro lado, ao entregar suas armas químicas, a Síria afasta a imagem de “intransigência” associada a ela mídia internacional, mostra à opinião pública que tem boa vontade, quer dialogar e chegar a uma paz duradoura, aceitando inclusive o monitoramento da ONU, em contraste com o discurso agressivo e militarista da administração Obama. Ao entregar as armas químicas, Assad pode provar que não foi o autor do recente ataque realizado nas imediações de Damasco, uma vez que o tipo de gás empregado é diferente do que está disponível nos arsenais sírios, derrubando o principal argumento apresentado por Obama para iniciar a nova guerra de rapina.  Claro: nada disso impede que os Estados Unidos, a Turquia ou Israel ataquem a Síria em curto ou médio prazo, mas essa possibilidade fica mais distante, por várias razões: 1) os Estados Unidos não querem arcar sozinhos com essa responsabilidade, pelo alto custo financeiro de uma guerra regional, que fatalmente contará com a participação do Irã e do Hezbollah ao lado da Síria; 2) a Inglaterra recusou participar da intervenção militar ao lado dos Estados Unidos e na França e Alemanha há forte oposição popular; 3) a presença de frotas da China e da Rússia nas proximidades da Síria são peças simbólicas do jogo de xadrez político, mas podem, hipoteticamente, ser mais do que isso; 4) o risco de uma guerra regional se alastrar por Israel e Turquia torna as conseqüências do conflito completamente imprevisíveis. Um ataque cirúrgico dos EUA contra instalações industriais e militares sírias pode ser o início de uma III Guerra Mundial. Por todas essas razões, não é tão fácil para os Estados Unidos desencadearem, sozinhos, uma guerra contra a Síria.

Caso o acordo proposto pela Rússia se concretize, o primeiro significado político desta iniciativa será a derrota dos Estados Unidos em seu objetivo de depor o governo Assad (e vale a pena acrescentar aqui a incapacidade dos mercenários de derrotarem sozinhos o Exército Árabe Sírio e o forte apoio da população síria ao seu presidente e às Forças Armadas). O segundo significado político é a ascensão da Rússia e da China como mediadoras do conflito, disputando protagonismo com os norte-americanos na resolução das questões internacionais, o que altera a correlação de forças no planeta e pode ter novos desdobramentos, com a eventual ação conjunta dos BRICs (e cabe aqui cobrarmos do Brasil que assuma posição mais clara contra qualquer intervenção militar estrangeira na Síria e o respeito à soberania do país árabe).

A solidariedade internacional ao povo da Síria é essencial para isolarmos ainda mais os falcões da Casa Branca e do Pentágono e contribuirmos para a defesa da soberania da Síria. Uma ação decisiva nesse sentido é a organização de grandes atos populares contra a ameaça imperialista, com a participação ativa dos partidos de esquerda, sindicatos, entidades de mulheres e da juventude, como os realizados no início de setembro em sete capitais brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis, Salvador, Fortaleza e Distrito Federal. Está em discussão a organização de um Dia Nacional de Solidariedade ao Povo Sírio e a viagem de uma missão brasileira de solidariedade a Damasco, com representantes de partidos políticos e de entidades da sociedade civil. 

sábado, 7 de setembro de 2013

GALERIA: O LIVRO DE CABECEIRA (V)


MEUS POEMAS EM PROSA (II)


ANTICABEÇA (II)

Lona podre, nacos de carne, torsos caindo; escuras mariposas (stukas) caindo; sirenes, uma canção.
Bater nos cornos do céu, capricórnio adoece em luzes de urina; olhos blindados; cano de fuzil apontado para a lua.
Esferas ou cilindros de cérberos; o aço grunhe; rajadas de agni; fogos-fátuos; bocas lanhadas por detritos.
Há um pássaro de três cabeças, e um só canto; uma jovem nua flutua no céu.
Emily pediu um livro (borboleta voando) de gravuras coloridas (sonhada por um chinês), com capa veludosa (desejada por um gato) e marcador de páginas (com bigodes de mandarim).
Ela, que ama peônias, biombos, nanquins, e sonha ser enfermeira num grande hospital em Berlim.
Ela, que ama o verde mar de gaivotas, e a prata que cintila nas peças do aparelho de chá.
Isso foi há quanto tempo? Havia um piano de cauda e lenços brancos, pedaços de carneiro e o pôr-do-sol.
Agora, só há o verde-prata, ou verde-escuro, verde-panther; na boca do dragão.
(Como um livro) (de figuras) (metálicas;) (imagens) (d’esqueletos) (turvos;) (surdos) (espectros) (em sarabanda,) (invernal.)
Palavras zumbem na mente; difícil caminhar com o peso do mundo. Este é um tempo sombrio, tempo da impureza, do branco mesclado ao amarelo.
Lao Tzu rumou para o Sul, montado num touro, búfalo ou grou. O guarda da fronteira pediu-lhe sua inútil sabedoria.
  
CARANGUEJO

Aquática paisagem, faixas de areia e uma seqüência de morros, horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalípticas. Há um furacão nas ilhas Fidji.  Esferas planas surgem no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar, nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos astros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos.  Tudo isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha carapaça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste enigma, a contradição de um crustáceo. 
  

GABINETE DE CURIOSIDADES
  
I — SEX SHOP

Tufos pretos e umbigo impreciso na fresta vertical em colunata.

Cílios escamosos como minipeixes e uma arcada bélica verde-oliva na cabeça, à maneira pontilhista dos marines.

Pulseiras e argolas multiplicam-se nos braços e mamilos, simulando a efígie de uma rainha nigeriana.

O corte súbito no tronco impede a visão dos delicados pés, lacuna compensada pelo desbocado rubim de lábios fechados em til.

Os adereços da deusa mutilada completam-se com brincos de prata em forma de agulha, para a adequada perfuração de Romeu.

E um singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais.



II — PET SHOP

Pandas traficados de Pequim jogam cartas com lagartixas da Ucrânia.

Estufas com modernos sistemas de refrigeração e luz ambiental abrigam um casal de anfisbenas.

Há remédios contra pulgas e doenças de pele para o dragão de Komodo.

Na prateleira de cosméticos há um pó-de-arroz especial para lacraias.

A vendedora de imensos peitos brancos e um curto vestido dark informa os clientes sobre os hábitos noturnos de morcegos e pelicanos,

Com a esperada dedicação de quem ama o seu ofício.

Aceitamos todos os cartões de crédito e os animais, como seus donos, devem ser castrados.



COFFEE SHOP

Revistas de fitness fumam cigarrilhas de canela importadas da Indonésia.

Faces sóbrias e ponderadas como repolhos avaliam o crescimento do superávit primário.

Há um minúsculo globo ocular na xícara de café expresso.

Tortas de queijo e presunto têm selos de qualidade internacionais e as embalagens dos produtos passam por leitura ótica.

Há um nariz disfarçado no topo da palmeira de plástico.

Nossa missão é atingir e superar as expectativas dos clientes, diz a gerente de marketing (no seio esquerdo, ela tatuou uma pítia da Groenlândia).

Há uma boca retorcida no elegante toalete do café, com peças sanitárias de primeira linha e secadores de mãos automáticos.

Cabeças de executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras.


 PRISMA I

toda palavra / é um labirinto / (recrocita / corvo lunar), / (sub-reptício réptil / foge / entre folhas). / cristal negro, / búfalo negro,/ palavra enegrecida / em sons guturais, / espectros / de si mesmos. / flor de abril / acende música, / amarelo, / amarelo, / até lavoura / de fetos. / há uma anã / estrangulada / na rua aurora; /há um relógio de ponto / que só anda / para trás; / a dentadura / de clotilde; / o gosto amargo / do café. / tudo é / um cinema / mental, /pilhas de ossos- / palavras, /extintas praias, / labirinto / de cores / alteradas. / poema: / forma de ver / o escuro / que há no mundo / e em mim. / palavras caem / (fuligem),/ restos de canção: / ou abrir a porta: / entre seios / e rudimentos / de agrimensura, / entre o mistério / e um agudo / senso de beleza, / vago perfume / de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto. / nenhuma porta / (deslinde) / desatino;/ nenhuma / ou essa / que se fecha. / ou aquela, / qual,/  ou esta porta,/ este caminho,/ não há caminho./ restilo / de alvura / ou lanugem, / lúnula:/ peixes, / entre unhas.


PRISMA II

olho-de-corvo; / um, crocita; / dois, arranha; / três, escurece; / quatro, engasga, / tropismo / de piçarras. / cristal negro, / búfalo negro, / palavra enegrecida / em urros / de lacraias. / sons vegetais, / sons minerais, / sons fecais, / dissociados / de sentido. / recrocita / réptil/ em folha / lunar, / sub-reptício / acende / música / até lavoura / de restos: / há um relógio / estrangulado / e uma anã  / fazendo ponto / numa esquina / da rua aurora. /tudo é um jogo / de ossos / como saltar / à corda, / piscar / os olhos, / remoer / a canção. / tudo é cinema / mental. / entre seios / e rudimentos / de mariposas, /entre o mistério / e um agudo / senso / de extinção, / dessangrar / a beleza / (fuligem) / até um vago / perfume / de papoulas; / ou abrir a porta: /  não há caminho, /nenhum / ou este / que se fecha, / tudo é labirinto, / (deslinde) / desatino. /alvura, / lunário / de lúnulas: / unhas, / entre peixes.
  

PRISMA III

até / dessangrar / peixes, / entre unhas. / pilhas / de palavras / rotas, / restos / de canção: / flor / de abril / em amarelo, / para ver / o enigma / no mundo / e em mim. / recrocita / labirinto / lunar, / corvo / de fetos / alterados. / há o gosto / amargo / do relógio, / uma anã / que só anda / para trás / e clotilde / estrangulada / num café / da rua aurora. / tudo é mental, / mariposas / ou seios, / pétalas / ou música, /rudimentos / de mistério / e mistério. / todo labirinto / é uma palavra / do deslinde / ao desatino /(sub-reptício réptil / foge / entre lúnulas). / cristal negro, / praia negra,/ papoula enegrecida / em sons larvais / até lavoura / de fétidos./  havia uma pedra, / havia uma rosa, / havia um abismo. /tudo / é cinema / mental, / praias / e palavras, / pilhas de ossos / podres. / alguma porta / ou nenhuma, / esta / ou aquela, / esse caminho, / qual caminho? / entre um senso / agudo / de extinção / e rudimentos / de lanugem, / entre o restilo / e o séqüito /de lêmures, /todo enigma / é incapaz /de abolir / o silêncio .


PRISMA IV

cristal negro, / réptil negro, / sub-reptícia / anã negra / (amarga) / entre folhas./ flor de abril / recrocita / olho- / de-búfalo:/  unhas traçam / a agrimensura / do escuro, / acendem lúnulas / de lacraias / até tropismo / de fetos / (para ver) (a beleza) / (que há no mundo) / (e em mim). / nenhuma porta / ou esta / que se abre, / esta / que se fecha, / este caminho, / nenhum caminho / (tudo) / (é labirinto). / entre piçarras / e rudimentos / de papoulas, / entre seios / e um agudo / senso / de alvura, / lavoura / de auroras / alteradas. / (pedra) / (é um jogo) / (como saltar) / (abismos), / (piscar) / (os ossos,) / (remoer) / (a rosa,) / (cinema) / (mental) / (ou séquito) / (de desatinos). / um, dissocia / mariposa; / dois, coagula / lunário; / três, escurecem / larvais, / restilo / de cores / abolidas. / tudo é mistério, / deslinde / de lanugens / até dessangrar / palavras- / peixes.


PRISMA V

lêmures / lavoram / lúnulas, / recrocita / labirinto / (abismo) / (de espectros). / esta porta / que se abre, / prosa / de corvos, / esta porta / que se fecha, / rosa / de répteis, / não há caminho, / tudo é caminho; / flor de abril / escurece / relógios / até dessangrar / a anã / em tropismo / de lacraias. / tudo / é um jogo / amargo / como saltar / os ossos, / piscar / palavras, / traçar / na pedra / sub-reptício / urro / (para ver) / (o mistério) / (que há no mundo) / (e em mim). / entre fetos / e rudimentos / de búfalo, / entre cristais / e um agudo senso / de coágulo, / abolir / o peixe / numa agrimensura / de enigmas. / cristal negro, / seio negro, / lua negra, / restilo / de piçarras: / tudo / o que escrevo / tudo / o que escavo / tudo / o que escuto / tudo / o que escarro / tudo o que esqueço / me deslinda, / desatina, / desafina, / desarvora, / desenflora, / entre amarelos /e lanugens, / entre larvais / e mentais, / entre o que / pensa / e o que / sente, / entre o que / mente / e o que / muda, / entre o que / canta / e o que / encanta, / entre / mundo / e nada.


Para Luís Serguilha, 2008

(Do livro Fera bifronte. São Paulo: Lumme Editor, 2008)

 GAVITA, GAVITA

      escuro, escuro como um uivo — som de sombra —  esquálido e fecal —  voz miúda, no espaço espesso. gestos surdos, de pele tensionada —  mãos fluidas que tateiam o ar. sim, está enfeitiçada. ginga, negra e cega, em vôo tosco. vibra o torso, em vaivém, nas pontas dos pés. ginga e gira, com serpentes nos braços, e treme toda, torva e turva. não tem unhas, só garras; nem lábios, apenas gritos mudos. ela expande os passos, sem volúpia ou cisma, e s’incandesce, crestando o solo. é toda fera e fúria. está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de salamandra. visitei as páginas de um livro de magia, e invoquei as figuras retorcidas da insânia: vêm, astaroth, asmodeus, sintam a carne que ofereço a seus caninos.

     (eu sabia os nomes das flores, quando menino, das estrelas e insetos;) (juntava lagartas numa caixa de sândalo) (e rezava pelas almas das princesas suicidadas.) (um albino ensinava-me latim) (e apertava fortemente meus testículos.) (laos deo, laos deo.)  (citações de cícero e da guerra da gália) (até soar a sineta para o desjejum.) (eu gostava dos turíbulos e ostensórios,) (dos saltérios e vitrais) (em que o filho do ho-mem) (sangrava por nossas culpas.) (excitava-me com sua dor.) (amava ícones mal pintados,) (palavras arcanas,) (música de violoncelo) (e sonhava ser marinheiro) (ou alcoólatra.) (certo dia, fugi.) (oh estações, oh castelos.) (açoitei a delicadeza,) (fiz-me barro, besta, bruto;) (um selvagem, sim, selvagem,) (e toquei tambor) (na noite do sabá.)

     (minha mãe tinha seios brancos) (e voz branca de medievo místico.) (ela foi a lua cheia,) (angélica e nivosa,) (oh monja da cela constelada.) (meu pai foi um rude fazendeiro,) (igualmente branco,) (cujo olhar tinha odor de antigas armaduras.) (recordo seu rosto de falcão,) (as pequenas mãos trigueiras,) (a voz pesada, de bacamarte.) (eles eram de diversa estirpe,) (mas eu os amei,) (em minha estranha epiderme,) (na nostalgia de outro reino,) (que não sei.) (dizem os juristas) (que no céu) (todos são brancos,) (como as velas dos santos,) (o linho,) (o algodão.) (é verdade que sou um deslocado,) (desbocado,) (excêntrica bizarria,) (rosa cúbica, talvez.) (vejam, aqui está) (o negrinho) (que fala francês,) (membro de uma raça impura,) (turba de pobres diabos,) (ratos depenados,) (pretos amaldiçoados.) (é verdade,) (confesso aos senhores,) (a minha escurez,) (mas guardo comigo) (a música das esferas.)

     está enfeitiçada, e canta ladainhas. em nervosa mímica de punhos, move-se como a naja em sua caverna, o peito magro ornado com colares de crânios, os cabelos azuis cobertos de cinzas. ela dança, dança sobre o meu ventre, agitando as armas de suas múltiplas mãos, e beija-me a boca com os acres perfumes do crematório. delírio contorcido, convulsivo / de felinas serpentes, / no silamento e no mover lascivo / das caudas e dos dentes. (não há qualquer caminho) (ou via ideal) (com trigais e monjolos,) (apenas a rua) (tortuosa do grito,) (a vereda) (fantástica) (do absinto.)

     (fui o ponto) (dos mais curiosos) (espetáculos,) (cedendo palavras) (aos atores no palco;) (e emprestei silêncio) (a minhas próprias comédias.) (sou talvez essa loucura geométrica,) (nos porões de um teatro abolido.) (mancha de tinta) (no final de cada linha,) (sem dimensões,) (mínima esfera.) (uma pausa entre vozes,) (lugar indefinido,) (porção menor de um plano,) (sinal que abrevia os vocábulos.) numa evaporação de branca espuma / vão diluindo-se as perspectivas claras... / com brilhos crus  e fúlgidos de tiaras / as estrelas apagam-se uma a uma.

     (na mocidade,) (tomei cerveja) (com vadios,) (provei do tabaco) (e do presunto tostado;) (soube de vênus) (com atrizes) (de má vida.) (se sonhei) (com o sublime?) (sim,) (foi) (numa festa) (de coxos.) (sou um porco,) (como todos) (os homens) (são porcos;) (injuriei,) (conheci) (o escarro,) (o tabefe.) (porque sei,) (sou duende;) (vejam) (minhas unhas;) (sou inferior,) (como um pedaço) (de ferro;) (um saco) (de farelo;) (migalhas) (de ração.) (por que li) (o teu livro,) (charles baudelaire?) (acreditei-me um deus.)

     está enfeitiçada, pobre leoa devassa; onde estão teus filhotes? devo banhá-la, com a água que eu mesmo fervi. ergo seu braço, para a assepsia; depois outro, e as pernas, o pescoço, as nádegas, sem nenhum erotismo: como se prepara um morto para o caixão. vesti-la, peça por peça, com as cores discretas da pobreza. assobiar talvez uma valsa, um minueto, para dar requinte a nossa sopa. por fim, velar o sono da vestal, para só depois escrever os versos que ninguém escreveu jamais. torva, febril, torcicolosamente, / numa espiral de elétricos volteios, / na cabeça, nos olhos e nos seios / fluíam-lhe os venenos da serpente.

     (arquivista, sim,) (da estrada) (de ferro,) (ninho) (de covas) (e coveiros;) (onde) (sou corvo) (entre corvos,) (negro) (entre negros,) (porque os versos) (não compram pão.) (recolher as sobras,) (para o azeite) (e as verduras.) (desviar do cuspe;) (oferecer a outra mão.) (exilado) (de mim,) (despido) (de qualquer) (delicadeza) (sou coisa) (entre coisas.) (vítor,) (o que) (fazer,) (sozinho,) (em terra desolada?)

     (houve) (um tempo) (em paris) (em que fui) (o rei) (do haxixe.) (todas) (as moças) (amavam) (minha face) (de príncipe) (etíope,) (atlante) (ou cenobita.) (eu usava) (uma gravata) (vermelha,) (flor) (de cardo) (na lapela) (e bigodes) (espessos) (de mongol.)  (é tão distinto) (ser) (um poeta) (maldito.) (meus versos) (encantavam) (insólitas) (platéias) (ao som) (monótono) (do piano) (estrangulado.) (alguém) (de suíças) (platinadas) (desenhava) (haréns) (de divas) (marroquinas.) (um outro) (de denso) (cavanhaque) (e nariz) (encurvado) (discutia) (platão) (e plotino.) (mulheres) (de seios) (rosados) (entoavam) (árias) (de concerto.) (havia) (pratos) (refinados) (de atum) (e salmão,) (garrafas) (de vinho) (espanhol) (e cheiro) (forte) (de fumo) (africano.) (eu era) (o rei) (do haxixe,) (até) (certo dia,) (quando) (fui surrado,) (como) (um) (escravo,) (cuspido) (e) (atirado) (para fora) (dos salões,) (como) (um corcunda,) (leproso,) (bufão.) (senhores,) (vejam,) (ali) (vai,) (célere,) (espavorido,) (o) (macaco) (cantante.)

     gavita, gavita. sim, está enfeitiçada, e fala ganidos. ela, minha bela, dona e dânae, minha flor amarela, meu bicho-da-seda, minha floresta. eu sou o teu dervixe, tua chuva de ouro, teu apache, teu urso polar. vem, deusa de tetas verdes, vem aos meus braços, como no tempo em que te conheci, na terra do gelo. você me dizia de países distantes, em que são servidos licores de pétalas de rosa. onde há carros floridos movidos pela mente, e macacos que entoam devotadas preces. eu enlaçava tua cintura delgada, e recitava o mantra dos jogos nupciais.

     para as estrelas de cristais gelados / as ânsias e os desejos vão subindo, / galgando azuis e siderais noivados, / de nuvens brancas a amplidão vestindo. mas agora soa apenas a sina da insânia, pretume, pedraria, pesadelo; desnudas deidades descartam os danados, riem dos duendes da demência. (sozinho,) (no rito) (intenso) (da nevrose,) (junto) (minhas cinzas) (no místico) (cinerário,) (ao som) (de brahmânicos) (sonidos.) (shiva,) (shiva) (nataraja,) (onde,) (em que) (lua) (ou pétala) (ofendi) (a memória) (de um deus?). (senhor) (dos dançarinos,) (quando,) (em que era) (noturna) (de infortúnios) (cometi) (os mais terríveis) (enganos?) (estas) (são) (as mãos) (de um) (criminoso,) (turco) (ou judeu.) (apedrejai-me,) (sim,) (apedrejai-me,) (para abreviar) (a minha) (longa) (miséria.)

     (vítor,) (houve uma ilha) (em que os homens) (e as mulheres) (andavam nus,) (e as árvores) (geravam) (pomos) (de ouro.) (filetes de água) (escorriam) (pelo verde) (limoso) (das rochas.)  (o sol) (de bronze) (festejava) (os ritos) (da primavera). (monolitos) (decorados) (com coroas) (de flores) (pontiagudas.) (oferecia-se) (aos deuses) (música) (de tambores) (e frutas) (saborosas.) (tudo era calma,) (beleza) (e languidez.) (tudo era dança, dança, dança.) (oh senhor) (dos rios) (que se encontram,) (em que distante) (esfera) (perdi) (a minha vida?)

     está enfeitiçada, sim, enfeitiçada, triste espectro que vomita estrelas. cega e surda, não escuta clamores; ordena traições e incestos; sorri dos servos fenícios degolados. crianças, esta ainda é a sua mãe. venham. vamos conversar. o nilo banha o egito, terra de escribas e papiros. o sena flui em paris, onde os poetas são jovens tuberculosos. o tâmisa tem o fog londrino como cenário, e abriga as ossadas de um famoso maníaco. o ganges nasce dos pés de lótus de krishna. é preciso lembrar das savanas e das estepes. das matas tropicais e dos desertos. dos míticos vulcões e das geleiras. é preciso conhecer o mundo.

     (eu quero sair do mundo.) (habitar outros pórticos.) (aprender) (idiomas) (sem vogais.) (há uma estrela) (de musicais) (estatuarias.) (há um espelho) (que reflete) (apenas) (minaretes) (de mesquitas.) (há uma moeda) (que mesmeriza) (tenores) (e contraltos.) (há uma lesma) (ou plasma) (que abraça) (os meninos,) (sorrindo) (truculenta,) (brutal,) (um riso) (azul) (de agonia.) (certa vez) (sonhei) (um livro) (infinito.) (suas paginas) (eram translúcidas) (como um espelho.) (as palavras) (brotavam) (como gotas) (de chuva) (borradas,) (sangradas) (no vidro) (do papel;) (as letras) (eram arcanjos) (desnudos,) (que cantavam) (em timbre) (agudo,) (numa) (voz) (escura,) (quase) (silêncio.) (eu sou) (talvez) (esse livro.)

     gavita, gavita. reclinada em seda e linho, lua minguante, no entressonho. seus caninos nivosos, torneados, como jóias de marfim. suas palmas, de rosácea; os clarões das unhas, e os olhos, corolas de hibisco. ela amava as valsas ingênuas, os realejos e tristes ametistas; o chá servido em baixela; o sabor do vinho branco; passear de braços dados, no largo do coreto. súbito, cai uma flor amarela, no tanque de água; ela sorri, e recorda quando a abracei, no jardim dos moura schiavo, lembra-se do que eu disse em seu ouvido, você é só encanto, encantamento, my love is as a fever, longing still. ela coloca meus dedos em sua boca e diz que eu tenho o olhar cigano de um nômade estrangeiro; e acaricia meus cabelos com os dedos finos, suaves, tão suaves. mas isso foi em outra aurora; agora apenas gira, desorientada, sem rumo nem prumo, sem ver-me ou ouvir-me, dolente e demente, enfeitiçada.

     ela é tão bonita como um sarcófago etrusco, espada sarracena, bi-ombo japonês. seus pequenos pés, que bocas febris e apaixonadas / purificam, quentes, inflamadas / com o beijo dos adeuses soluçantes. a boca, viçosa, de perfume a lírio, / da límpida frescura da nevada, / boca de pompa grega, purpureada, / da majestade de um damasco assírio. ela foi a minha máscara. ela é o meu fetiche. serei então o teu lacaio, teu pajem e eunuco. renuncio a minha vaidade, narciso despido de narciso. sou agora teu mendigo; serei teu diabo, teu criado, teu cão.

     gavita, gavita; minha fada e apsara; agora repousa, negra e magra, como galho seco; a pele tensa, de cervo degolado; os olhos turvos, de noite proscrita. estirada, como massa amorfa, ou bolo vegetal; os braços líquidos, de nereida; a voz desfeita, em careta torpe. esticada, como um animal ou coisa; atirada, não, colocada no caixão, digo, em seu leito de extintas exéquias. meninos, esta é sua mãe; vamos deixá-la em paz, é hora de dizer bonne nuit. venham fazer as orações, no oratório; em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. é preciso fechar bem as portas e janelas; reler um soneto de camões; beber o copo de leite; abocanhar o naco de pão; esquecer um verso no idioma páli; fazer-me treva; guardar o grito ancestral no livro de retratos.

     ela está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de taumaturgo. insano, febril, como quem fuma visões de navios e cetáceos, desenho portais de estranhos labirintos, dragões de esquecida tapeçaria, sinos de catedrais submersas. vejo a noite decapitada. ouço a chuva que cai, tênue como o som de um cravo metafísico, remota sonata para medo e medula, no patíbulo das horas. recordo seus olhos de cravos e cravinas. seus olhos de uma tarde em setembro, quando havia um céu de seda e o apito do trem na estrada de ferro. eu via suas mãos crescendo como ventosas, os lábios de estilete, o corpo querendo voar. meninos morenos corriam na estação, sombrinhas e sobretudos criavam asas, uniformes e tabaco gritavam em cinza, um topázio virava uma estrela. esta foi a tarde azul da metempsicose.

     gavita, gavita. foi minha culpa, meu pecado, que invocou esse fado? terei perdido a luz de sua luz por uma absurda, obscura vaidade? eis o que os versos me deram, a ardente areia desolada, o rito absíntico do medo. abyssus abyssum invocat. soa a meia-noite; agora, devo cuidar dela. velar seu sono, na madrugada inquieta. abrir seus punhos mudos, para o repouso; repelir do leito a cabeça do lagarto; pendurar suas vestes, guardar caixinhas e estojos, enxugar sua face. oh, senhor dos caminhos que se bifurcam. penso, mais de uma vez, em fazer-me nada entre nadas; partir rumo à nebulosa, mas não posso. ela está enfeitiçada, e treme toda, torva e turva; é fera e fúria. sim, cuidarei dela, e sempre a amarei. um amor obsessivo e triste, amargo e amarelo.

(Do livro Cores para cegos. São Paulo: Lumme Editor, 2012)