quarta-feira, 6 de março de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (IV)





GLAUCO MATTOSO, O ANJO DE BOTAS CARCOMIDAS

Glauco Mattoso iniciou a sua jornada poética na década de 1970, no auge da ditadura militar, editando o Jornal Dobrábil (título que faz referência irônica ao Jornal do Brasil), publicação artesanal de pequena tiragem feita em máquina de datilografia, que era distribuída pelo correio a um grupo seleto de leitores, como Augusto de Campos e Carlos Drummond de Andrade. A publicação apresentava poemas visuais com nítida influência da Poesia Concreta mas de conteúdo satírico, com referências à situação política do país, e uma coloquialidade e irreverência típicas da Poesia Marginal, de Cacaso e Francisco Alvim, da qual foi contemporâneo. Os poemas e breves crônicas que publicou no Jornal Dobrábil, usando diversos pseudônimos, como Garcia Loca, já traziam a temática urbana, homoerótica e fescenina, que acompanhariam toda a obra do autor, bem como o interesse pelas formas fixas, como o soneto e o haicai.  Nos livros Línguas na Papa e Memórias de um Pueteiro, publicados em 1982, encontramos alguns dos poemas mais representativos da fase inicial de Glauco Mattoso, como o Manifesto Obsoneto: “Isso não é poesia que se escreva, / é pornografia tipo Adão & Eva: / essa nunca passa, por mais que se atreva, / do que o Adão dá e do que a Eva leva”. Escrito na forma do soneto, com métrica e rimas, a composição destoa, no entanto, de qualquer vocação conservadora, usando a gíria, o palavrão e a pornografia numa época marcada pela forte censura, que levou à interdição de filmes, livros e músicas acusadas de conteúdo “imoral” ou “subversivo”. Em outro poema dessa fase, Spic (sic) Tupnic, o autor, com verve transgressiva, diz: “Tem híbridos morfemas a língua que falo, / meio nega-bacana, chiquita-maluca; / no rolo embananado me embolo, me embalo, / soluço - hic - e desligo - clic - a cuca./ Sou luxo, chulo e chic, caçula e cacique. / I am a tupinik, eu falo em tupinik”. A palavra neológica tupnik faz referência ao satélite Sputinik, colocado no espaço pela União Soviética dez anos antes e símbolo do progresso, mas também ao tupiniquim, emblema da brasilidade. A mistura de palavras em português e em inglês no poema e as citações de vários ritmos musicais – “o baioque (o forrock, o rockixe), o rockão” – sugerem ainda uma aproximação com a Tropicália de Torquato Neto, Caetano Veloso, Paulo Leminski e Gilberto Gil, que em poemas e letras de música mostravam o caráter mestiço, híbrido e desigual da realidade brasileira. A Tropicália foi também um movimento que dialogou artisticamente com o cinema, a publicidade, as histórias em quadrinhos, e essa mescla de linguagens é algo que sempre fascinou Glauco Mattoso, inspirando Glaucomix, o pedólatra, adaptação de seu livro Manual do Pedólatra Amador, com roteiro do autor e desenhos de Marcatti. A Tropicália é homenageada também no CD Melopéia: Sonetos Musicados, que traz poemas de Glauco Mattoso musicados e interpretados por artistas como Arnaldo Antunes, Edvaldo Santana e Itamar Assumpção (a capa do CD, inclusive, é uma paródia da famosa foto de 1967 que estampa o disco Tropicália, de Caetano, Gil, Capinam e Tom Zé). 

Com a cegueira, que o impossibilitou de continuar a criar poemas visuais, o poeta iniciou em 1995 uma nova fase – que ele chama de FASE CEGA --, marcada pelo retorno à versificação tradicional, à métrica, às rimas e ao soneto nos moldes camonianos. Esta mudança, segundo o autor, aconteceu pela facilidade de memorização dos versos, embora ele já tenha escrito alguns sonetos em sua primeira fase criativa, que ele chama de FASE PODORASTA (podolatria + pederastia). Os primeiros livros de sonetos de Glauco Mattoso, publicados entre 1999 e 2000 por pequenas editoras, são Centopéia — Sonetos Nojentos & Quejandos, Paulisséia Ilhada — Sonetos Tópicos, Geléia de Rococó — Sonetos Barrocos e Panacéia — Sonetos Colaterais (Nankin Editorial, 2000), todos eles marcados pela podolatria (adoração fetichista aos pés), sadomasoquismo e humor fescenino (a sátira do erotismo). Bibliotecário de formação, Glauco Mattoso organizou seus sonetos em séries, abordando temas como a culinária, o cinema, a geografia, a política, a religião, entre outros. Seguindo uma sugestão de Augusto de Campos, o poeta inovou também na forma do soneto, especialmente no livro Panaceia, trabalhando com estrofes de dois, três, quatro ou cinco linhas e versos com diferenes números de sílabas. Glauco Mattoso é hoje um dos mais conhecidos poetas brasileiros e já se apresentou no Clube de Leitura de Poesia, do Centro Cultural São Paulo, que também publicou uma plaquete com seus poemas, O cinephilo ecletico, na coleção Poesia Viva, distribuída gratuitamente ao público no CCSP, na Casa das Rosas e na Biblioteca Alceu Amoroso Lima.

(Artigo publicado na edição de fevereiro da revista CULT, na coluna Retrato do Artista.)

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