A
observação rara, frequente na poesia de Bashô, está presente em várias peças de
Pequeno formato, especialmente na
última composição do volume, intitulada À
sombra de Victor Hugo, que é quase um oxímoro: “A sombra é sempre escura
até mesmo / a dos cisnes” (ANDRADE, 2000:
554). Além do “gosto das estruturas breves e simples, do poema, do verso, da
frase” (SARAIVA: 1995, 38), encontramos
na poesia de Eugênio de Andrade “as sonoridades cuidadas, os ritmos fluidos, a
frase pontuada; o equilíbrio entre a simplicidade e o requinte da expressão
(...); o apuramento dos sentidos; a revelação, a plenitude poética, o
sentimento do tempo, o sentido do precário” (idem), elementos que estão em
consonância com a arte poética japonesa, que valoriza especialmente a expressão
sazonal, o vínculo entre o homem e a natureza, a imperfeição e a assimetria. Um
outro aspecto da poesia de Eugênio de Andrade apontado por Arnaldo Saraiva e
que merece especial atenção é a representação da epifania, palavra de origem grega (epi, sobre, phaino,
brilhar) que o crítico português define como “uma luminosa manifestação, uma
revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (idem, 54). O conceito, de
origem teológica, designava inicialmente “a manifestação ou o aparecimento
divino no mundo ou a festa e o período que o celebra” (idem), como o nascimento
de Cristo (caso em que o termo mais usado é teofania),
aparições de santos ou outras entidades espirituais. Mircea Eliade, em seu Tratado
de História das Religiões, define a
epifania como “manifestação que lembra ou se parece com uma manifestação
divina, uma experiência exaltante e inesperada, o súbito acesso a um
conhecimento ou prazer essencial, a percepção nítida de uma verdade imprevista,
um momento de inteligência global do real” (in SARAIVA,
1995: 53), como por exemplo as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos,
experiências com alucinógenos místicos ou a iluminação zen-budista, estado que
transcende a dualidade do mundo fenomênico e representa um retorno ao vazio
original da mente. Conforme observa Antonio Saraiva, o conceito de epifania
passou a ser empregado, na modernidade, por autores como James Joyce, num
contexto laico e profano, para designar experiências estéticas de revelação e deslumbramento
“perceptíveis pelos ou por alguns dos sentidos; não é uma experiência duradoura
– é uma experiência intervalar e efêmera, salva na memória” (idem, 54). A
poesia de Eugênio de Andrade revela “diversas modalidades epifânicas ou
diversos tipos de narrativa epifânica”, escreve Arnaldo Saraiva (idem, 55). No
poema Sul, que integra o volume O outro
nome da terra, por exemplo, o poeta diz:
Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente,
o silêncio sacudia as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
(in ANDRADE, 2000: 451-452)
Nesta composição de oito versos, sem medida métrica nem divisão
estrófica, o poeta “documenta bem a passagem de um tempo e modo comum e
concreto (verão, muro, praça, pombos, cal) para um tempo e modo epifânicos, que
sem abolir a visão ou ‘evidência’ objetiva (‘assim’) implica, sobretudo, uma
evidência, uma clarividência relativa ao sentimento ou ao pensamento
escatológico” (SARAIVA, 2005: 56), o que acontece nas linhas finais do poema
(“Pensei: devíamos morrer assim. / Assim: explodir no ar”). Em outro poema
breve de Eugênio de Andrade, incluído em Pequeno
formato, o registro epifânico é menos dramático que lírico:
COMO NO INÍCIO
É a noite por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.
(in ANDRADE, 2000: 550)
A paisagem metafórica do poema, em que não falta o recurso da
sinestesia (“É a noite por fim, podes tocá-la”), prescinde de um sujeito
identificável; há um enunciador que descreve a sucessão de imagens e um
receptor a quem esse discurso visual é transmitido, mas ambos permanecem quase
invisíveis no poema, sem nada que os identifique além da própria enunciação. A
epifania acontece no próprio discurso, em que elementos simples como a noite, a mão e a música se
transfiguram para iluminar o caminho, que é trajeto, revelação e descoberta (podemos
recordar aqui o ideograma chinês que representa o Tao, que significa, ao mesmo tempo, o caminhante, o caminho e o
ato de caminhar). Conforme observa
Arnaldo Saraiva, “o fenômeno epifânico é sempre relacionável com o sujeito
enunciador do poema, que interessadamente o assinala e acusa os seus efeitos,
às vezes dentro do seu próprio corpo (‘subitamente como fonte ou ave / rompe
dentro de mim); mas ele também pode implicar e afetar outros seres, árvores,
bichos, a terra, o ar e até os nomes” (idem, 57-58). Nesta acepção, podemos
relacionar o conceito de epifania com a experiência espiritual indissociável da
prática do haicai, tal como compreendida por Bashô. Comentando o poema da rã, Alberto
Marsicano escreve em sua introdução a Trilha
estreita ao confim, que reúne os quatro principais diários de viagem do mestre
japonês:
Bashô contemplou num harmonioso entardecer uma
tranquila lagoa quando uma rã saltando sobre a água rompeu subitamente a lisa
superfície. Não com um forte ruído mas com um som claro e distinto. Ao ouvir
este som cristalino o poema fluiu quase que involuntariamente leve e simples,
sem artifício algum. O haicai é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo
de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da
noite. o haicai é o satori, o
despertar zen que repentinamente surge no caminho.
ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante
(In Bashô: 1997, 11)
A
experiência do satori, referida por
Alberto Marsicano, é o objetivo da prática zen-budista: a tomada de consciência
do vazio original da mente (sunyata)
e a superação da percepção dualista do mundo, que nos leva ao desejo e à
aversão, elos mentais que nos aprisionam ao mundo fenomênico. Como toda
vivência espiritual profunda (os êxtases místicos de São João da Cruz ou de
Santa Teresa de Ávila, na tradição cristã, ou a vivência do sagrado em Rumi e
Attar, na tradição sufi, por exemplo), o satori
não pode ser descrito em palavras; segundo Paulo Leminski, é algo “pessoal e
intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de
atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la)” (LEMINSKI, 1983: 68). Apesar da impossibilidade
de se registrar na forma escrita as sensações e percepções da jornada
espiritual, existe vasta literatura sobre o assunto, desde interpretações filosóficas
ou teológicas da vivência mística até poemas ou relatos em prosa que de certa
forma “transmitem” algo dessa experiência. Segundo relatos dos antigos historiadores
chineses, técnicas indianas de meditação (dhyana,
em sânscrito; ch’an, em chinês; zen, em japonês) foram introduzidas na
China desde o século II a. C. por Bodhidarma, o primeiro patriarca do
zen-budismo, e de lá foram levadas para a Coreia, o Tibete e o Japão, mesclando-se com tradições locais como
o taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, cultos devocionais e práticas mágicas
ou esotéricas. O mestre mais reverenciado da tradição zen-budista é Hui-Neng,
que teria ensinado no século VI no Mosteiro da Ameixa Amarela. A respeito deste
sábio chinês escreve Paulo Leminski:
A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidarma foi transmitida por
muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto,
ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste
de Pequim, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando
a mãe como apanhador e vendedor de lenha.
Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém
recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus traduzidas para o
chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de
Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro
Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.
Esta transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto
pessoal e da tigela de pedir esmolas.
Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen
da época, incluindo os quarenta e três ‘herdeiros da lei’, que disseminaram
seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coreia e o Japão.
Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura
Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro Tan-fan.
De Hui-Neng descendem, espiritualmente, Bashô e seu haicai, bem
como as artes zen, das quais o haicai se alimentou. (Idem, 78-79)
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