segunda-feira, 11 de março de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (I)



Camões, no Canto X de Os Lusíadas, descreve os continentes e países conhecidos na geografia portuguesa do século XVI, fazendo breve referencia ao Japão na estrofe que vai do verso 131 a 138: “... Esta, meio escondida, que responde / De longe à China, donde vem buscar-se, / É Japão, onde nasce a prata fina, / Que ilustrada será co a Lei divina” (CAMÕES, 2008: 317, versos 135-138). A passagem, embora sucinta, aponta dois fatos históricos relevantes: o interesse português nas minas de ouro e prata no Japão e o propósito de evangelização das ilhas japonesas, que acontecerá a partir do final do século XVI, com a vinda de comerciantes e missionários portugueses. Em 1543, Francisco Zeimoto, António Mota e António Peixoto desembarcam na ilha de Tanegashima, episódio relatado pelo cronista Fernão Mendes Pinto, e tem início o chamado período Nanban, durante o qual houve intensa interação comercial e religiosa entre japoneses e europeus. O Japão (em japonês: 日本; transl.: Nihon ou Nippon; oficialmente 日本国, Nippon-koku ou Nihon koku), um arquipélago formado por 6.852 ilhas – entre elas as quatro maiores, Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku, que representam 97% do território nipônico – era mais povoado do que qualquer país europeu da época, com uma população de 26 milhões de pessoas. A sociedade japonesa, aristocrática e feudal, tinha uma rígida divisão entre classes sociais – camponeses, mercadores, sacerdotes, guerreiros – e uma economia baseada, sobretudo, na agricultura; entre o final do período Momoyama (1573-1598) e o início do período Tokugawa (1603-1867), porém, as atividades comerciais conheceram uma fase de rápido desenvolvimento, e com elas prosperam as cidades. Octavio Paz, em conhecido ensaio sobre a cultura japonesa, refere-se a esse período com estas palavras: “Vive-se na rua e multiplicam-se os teatros, os restaurantes, as casas de prazer, os banhos públicos atendidos por moças, os espetáculos dos lutadores. Uma burguesia próspera e refinada protege e fomenta os prazeres do corpo e do espírito” (PAZ, 1996: 156).

As gravuras em madeira, ou ukyio-ê (“imagens do mundo flutuante”) surgem nesse período, assim como os romances pornográficos, ou “Livros de primavera”, que Paz compara à literatura libertina francesa do final do século XVIII, e ainda as peças de teatro de marionetes conhecidas como kabuki. O jesuíta português João Rodrigues, que viveu em Kyoto, então capital do império, entre os séculos XVI e XVII, chama essa localidade de “a nobre e populosa cidade de Miyako” (in COLLCUTT, JANSEN e KUMAKURA, 2008: 108). Rodrigo de Vivero y Velasco calcula a população de Kyoto em 800 mil pessoas, e estima que “cerca de 300 mil ou 400 mil vive nos arredores” (idem).  A expansão comercial, que sustentou o florescimento cultural e urbano das grandes cidades, estava relacionada com as necessidades militares dos senhores feudais, ou daymiôs. “Eram necessários comerciantes que abastecessem os exércitos de armas, cavalos e armaduras; de alimentos, bebidas e roupas para as tropas; que vendessem materiais de construção para levantar fortes e castelos e madeira para embarcações e pontes” (idem, 108-109). Graças ao intenso comércio com Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e China, os japoneses entraram em contato com os grandes centros comerciais da Europa e da Ásia. “Navios japoneses que tinham licença zarparam para Luzon e para o Sul da Ásia, onde se estabeleceram alguns grupos de comerciantes. O século XVI presenciou também uma crescente efusão de ouro e de prata procedente das novas minas abertas no país” (idem, 109). Toyotomi Hideyoshi, o xogum (“senhor da guerra”) que unificou o Japão nas últimas décadas do século XVI, “consciente dos benefícios que o comércio podia oferecer, impôs exações aos comerciantes, exerceu um controle direto das minas e efetuou cunhagens de ouro e prata” (idem), além de criar “um sistema monetário uniforme” e investir “na construção em grande escala de castelos e fortificações” (idem). O contato com o mundo ocidental movimentou a economia japonesa, ao mesmo tempo em que abriu as portas do país para a atividade missionária, levada a cabo pela Companhia de Jesus, que logrou converter milhares de japoneses à fé cristã. Conforme William Johnston, professor da Universidade Sophia, de Tóquio, “o cristianismo foi levado para o Japão pelo basco Francisco Xavier, que desembarcou em Kagoshima em 1549 na companhia de dois outros jesuítas e um intérprete japonês” (in ENDO, Shusaku: 2011, 12). Apesar das dificuldades linguísticas, “Xavier levou algumas centenas de japoneses para a fé cristã, antes de partir para a China, cuja conversão lhe parecia indispensável prelúdio à do Japão” (idem). O verdadeiro arquiteto da evangelização nas ilhas japonesas, segundo o autor, não foi Xavier, mas o italiano Alessandro Valigmano, “que combinava o entusiasmo de Xavier com uma presciência e tenacidade extraordinárias” (idem). Quando o missionário italiano realizou a sua primeira visita ao Japão, em 1579, “já havia uma florescente comunidade de 150 mil cristãos, cujas magníficas qualidades e profunda fé inspiraram em Valigmano a visão de um arquipélago inteiramente cristão no norte da Ásia” (idem). 

Seminários, colégios, hospitais e uma noviciaria foram construídos pela missão católica, que em pouco tempo obtém prestígio na própria corte. Conforme William Johnston, as cartas e registros dos missionários católicos são a principal fonte de informação que temos hoje sobre a sociedade japonesa no período de 1570 a 1614, uma vez que há poucos relatos japoneses sobre esse tempo histórico. Entre os livros escritos pelos jesuítas, destaca-se o Vocabulário da Lingoa de Iapam (1603), chamado de Nippo Jiten entre os japoneses, publicado em Nagasaki pelo padre João Rodrigues, que foi o primeiro dicionário Japonês-Português, com 32 mil verbetes, elaborado para ajudar os missionários no estudo do idioma. Em 1604, o religioso escreveu um volume intitulado Arte da lingoa de Iapam, que é, possivelmente, a primeira fonte de informação sobre a poesia japonesa divulgada em Portugal. O jesuíta escreve que

Ha hua sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai, de estillo baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & deste modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu, & continuar com cinco sete cinco (in FRANCHETTI, 1990: 37).

A referência do religioso português, embora lacônica, indica o conhecimento dos gêneros poéticos e das medidas métricas praticadas nas ilhas japonesas, sem isentar-se de juízo de valor (estillo baixo, palavras ordinárias, nam tem tantos preceitos como a verdadeira). João Rodrigues é autor também da História da Igreja no Japão, em que faz observações sobre a vida cotidiana japonesa, a cerimônia do chá, o budismo e o xogunato. O padre seria expulso do Japão em 1610, como consequência de um incidente em Macau com o navio português Madre de Deus, em que foram mortos marinheiros japoneses. Este episódio faz parte de uma série de conflitos que encerrariam o “século cristão” na Terra do Sol Nascente e levariam à expulsão de todos os missionários cristãos europeus e ao fim das relações comerciais e culturais com o Ocidente, no Período Tokugawa (1603-1867).  Conforme William Johnston, a ruptura foi antecedida, em 1587, pela decisão do xogum Toyotomi Hideyoshi, sob efeito do álcool, de ordenar que todos os missionários deixassem o país.  “Decidi”, lia-se em sua mensagem, “que os padres não devem permanecer em solo japonês. Portanto, ordeno que, tendo eles resolvido seus assuntos aqui num prazo de vinte dias, retornem para sua terra” (in ENDO, Shusaku. 2011, 14). “A fúria de Hideyoshi”, escreve Johnson, “logo se abateu; a maioria dos missionários não deixou o país; e o decreto de expulsão virou letra morta” (idem). A comunidade cristã no arquipélago japonês, como anotou C. R. Boxer, não parava de crescer, e quatro anos após a mensagem de Hideyoshi ela já somava 200 mil almas. Em 1597, o xogum tem novo acesso de fúria, ao ser informado por um piloto de um navio espanhol de que os missionários “abriam caminho para as forças armadas do rei” (idem, 14-15). Hideyoshi mandou crucificar, então, 26 missionários, europeus e japoneses, numa fria manhã de fevereiro, episódio retratado numa pintura exposta no Museu do Oriente, em Lisboa, e também na decoração de uma igreja barroca franciscana em Recife. “A obra missionária, porém, continuou de alguma maneira”, escreve Johnson, no texto de apresentação do romance O silêncio, de Shusaku Endo, que aborda esse período histórico (idem, 15). “Os jesuítas viviam apreensivos, mas ainda desfrutavam as boas graças da corte regencial; e foi apenas no governo de Ieyasu – sucessor de Hideyoshi e primeiro dos xóguns Tokugawa – que a sentença de morte da missão católica se tornou irrevogável” (idem). O pretexto para a decisão, novamente, foi o boato – desta vez apresentado pelo piloto inglês Will Adams – de que a presença de missionários católicos no país estava relacionada a interesses políticos da União Ibérica.

Em 1614, o xogum Ieyasu Tokugawa promulga um édito de expulsão, declarando que “o bando dos kirishitan veio para o Japão (...) ansiando por disseminar uma lei pérfida, destruir a verdadeira doutrina e apossar-se do país. Esse é o germe de um grande desastre e precisa ser esmagado” (idem, 16). Segundo William Johnston, este foi “o golpe de morte. Veio numa época em que havia uns 300 mil cristãos no Japão (cuja população total era de 20 milhões de pessoas), mais os colégios, seminários e hospitais e o crescente clero nativo” (idem). Apesar da repressão, a obra missionária continuou de forma clandestina, “até que, sob os sucessores de Ieyasu, a caça aos fiéis e sacerdotes cristãos se tornou tão sistematicamente cruel que varreu todo e qualquer vestígio visível do cristianismo” (idem). Segundo o inglês Richard Cocks, a forma usual de execução era a fogueira, e ele declara ter visto “55 pessoas de todas as idades e ambos os sexos serem queimadas vivas no leito seco do rio Kamo, em Kyoto (outubro de 1619), e entre elas havia criancinhas de cinco ou seis anos nos braços das mães” (idem). A perseguição aos japoneses convertidos ao catolicismo ficou conhecida como sakoku e o número de mártires, apenas entre 1614 e 1640, seria de cinco a seis mil mortos, segundo Johnston. O último e decisivo episódio do combate à cristandade foi o levante dos camponeses de Shimabara, em 1637, contra o aumento dos impostos para a edificação de um novo castelo pelo o clã de Matsukura. Conforme escreve Johnston, “Essa rebelião (...) transformou-se depois em manifestação da fé cristã, e os insurgentes carregavam estandartes em que se lia ‘Louvado seja o Santíssimo Sacramento’ e bradavam os nomes de Jesus e Maria” (idem, 18-19). A tragédia era inevitável: “O levante foi sufocado com implacável crueldade, e o xogunato Tokugawa, convencido de que tal rebelião só fora possível com ajuda de fora, resolveu de uma vez por todas cortar os vínculos com Portugal e cerrar o Japão para o resto do mundo” (idem). A decisão de fechar as fronteiras e suspender o intercâmbio comercial e cultural com outros países não era novidade na história japonesa.

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