Conforme
escreve Collcutt, “na história das relações internacionais do Japão,
alternaram-se os períodos de relativa abertura e ativos contatos com o mundo
externo, com outros de relativo isolamento” (COLLCUTT, JANSEN e KUMAKURA,
2008: 110). No Período Tokugawa, que se estendeu por 264 anos, o Japão se
manteve em paz com os vizinhos e sem as disputas de poder entre os clãs que
caracterizou os períodos anteriores. “O xogunato Tokugawa foi um estado feudal
centralizado e autoritário. Somente no final do período se começou a
experimentar uma relativa descentralização como conseqüência da debilitação do
poder central (...) e da maior autonomia de alguns dos daymiôs mais influentes” (idem). Conforme Luiz
Dantas, o xogum Ieyasu Tokugawa “estabeleceu (...) as bases dessa sociedade
através de um certo número de decretos” (in FRANCHETTI,
1990: 212). Em 1615, por exemplo, foram lidas, numa assembléia de daymiôs, as Buke-Shohatto (“regras das casas militares”), que
prescreviam normas de conduta para civis e militares, incluindo normas quanto à
alimentação e vestuário dos camponeses, regras para o casamento, interdição do
consumo de álcool e dos atos licenciosos, entre outros itens. Segundo Luiz
Dantas,
é clara no texto a
valorização das virtudes militares, obediência e sacrifício, bem como gosto
pronunciado pela austeridade. Vida frugal, vestimentas despojadas, moderação
nos prazeres; essas aspirações revelam a vontade de impor um ideal patriarcal
de existência (idem, 214).
As leis decretadas pelo xogum Tokugawa não se
limitavam a “criar os alicerces de um Estado autoritário, mas chegavam até a
codificar o estilo de vida, ao mesmo tempo que impossibilitavam qualquer
mudança, o crime supremo do regime” (idem). A vida intelectual japonesa nesse
período conheceu o estudo intenso da filosofia de Confúcio, que enfatiza o
culto aos antepassados, a piedade filial, a obediência aos superiores e a
lealdade ao imperador, ao mesmo tempo em que valorizava as artes tradicionais
inspiradas pelo zen-budismo, como a caligrafia, os arranjos florais e a
cerimônia do chá. Somente em Edo (Tóquio), a nova capital do império, havia 800
instrutores de caligrafia. Conforme escreve Collcutt, nesse período “foram
publicados inúmeros livros ilustrados mediante a técnica da gravura em madeira
devido à grande demanda gerada por uma população urbana cada vez mais
instruída” (COLLCUTT, JANSEN e KUMAKURA, 2008: 157). No início do
século XIX, o Japão “se converteria pouco a pouco em uma sociedade mais
instruída, móvel, fluida e ávida por diversão e entretenimento” (idem). “Além
das escolas han, onde se
educavam os jovens samurais dos domínios, escolas privadas e escolas de um
único cômodo ofereciam instruções básicas aos filhos de aldeões e camponeses”
(idem). Ronald Dure estima que, no final do Período Tokugawa, “43% dos homens e
10% das mulheres haviam recebido algum tipo de educação escolar. Seja qual for
a porcentagem exata, está claro que (...) já estavam assentadas as bases da
alfabetização, educação e cultura modernas vindouras” (idem). Esta é, em linhas
gerais, a sociedade japonesa que seria redescoberta pelos europeus quando o
intercâmbio artístico, econômico e cultural com o Ocidente foi retomado, a
partir de 1853, após ameaças de bombardeio da costa japonesa pela esquadra
norte-americana do Comodoro Perry, que impôs, a manu militari, o fim do
isolamento nipônico. A abertura ao mundo ocidental atingirá o apogeu na Era
Meiji (1868-1912), quando a gravura, a pintura, a poesia e outras artes
japonesas são divulgadas na Europa. Conforme escreveu Paulo Franchetti,
Ora, o Japão, que
tinha ficado por 200 anos fechado aos olhares estrangeiros, forneceu, desde a
sua abertura ao Ocidente, na segunda metade do século XIX, um generoso campo de
registro de singularidades e construção de idealizações várias.
A ética rigorosa
que sustentava o serviço dos samurais, a etiqueta minuciosa da nobreza feudal,
o refinado senso de decoração e o gosto pela vida em contato com a natureza
fascinaram os viajantes. Bem como os costumes bizarros: o banho coletivo, os
pratos e copos minúsculos, os grilos presos em gaiolas, a maquiagem e o
comportamento das gueixas, os hábitos alimentares. (FRANCHETTI, 2012: 197)
“As primeiras apresentações da literatura
japonesa no Ocidente”, continua Franchetti, “apareceram em livros de viagem”
(idem), como as obras de Basil Chamberlain (1850-1935), Paul-Louis Couchoud
(1879-1959) e Julien Vocance (1878-1954), e, no âmbito da língua portuguesa, os
relatos do diplomata, oficial da marinha e escritor português Wenceslau de
Moraes (1854-1929), que exerceu o cargo de cônsul no Japão, após ter prestado
serviços em Macau, Timor Leste e Moçambique. “Em seus vários livros”, escreve
Paulo Franchetti, “Wenceslau de Moraes (...) relata costumes típicos, traduz
haicai, comenta a literatura, a arte e a história do Japão, tenta incentivar o
comércio e a compreensão entre as suas duas pátrias” (FRANCHETTI, 2012: 38). Ao
contrário de outros viajantes europeus, que descreveram a cultura japonesa sob
um olhar preconceituoso e racista, “Moraes se esforça por mostrar aos
portugueses a grande e sofisticada civilização que se desenvolvia no outro
extremo do mundo” (idem). Não é nosso propósito, aqui, discutir a construção da
narrativa histórica nos textos de Wenceslau de Moraes, porém, vale a pena fazer
uma breve avaliação sobre esse tópico, à luz das teses que Edward Said expôs em
seu livro Orientalismo – O
Oriente como invenção do Ocidente, para assinalarmos a diferença entre a
peculiar percepção de Wenceslau de Moraes e o modo como a maioria dos viajantes
europeus retratou esse outro tão estranho: o outro oriental, seja ele árabe, chinês,
persa ou indiano. Conforme diz Edward Said, que lecionou Literatura Comparada
na Universidade de Columbia, “nem o termo ‘Oriente’ nem o conceito de
‘Ocidente’ têm estabilidade ontológica; ambos são constituídos de esforço
humano – parte afirmação, parte identificação do Outro” (SAID, 2010:13). Quando
o historiador ocidental escreve a palavra Oriente como uma generalização, ele
desconsidera “uma variedade estonteante de povos, línguas, experiências e
culturas”, numa operação em que “tudo isso é desqualificado ou ignorado,
relegado ao monturo” (idem, 15). A atitude do estudioso orientalista europeu, sobretudo
a partir do século XVIII, de acordo com o pensamento de Said, reflete “uma
relação de poder, de dominação, de graus variáveis de uma hegemonia complexa”
(idem, 32). A invenção do Oriente não seria apenas um equívoco histórico
e sociológico, mas uma elaboração teórica colonialista, que desqualifica o
outro para dominá-lo: “O Orientalismo pode ser discutido e analisado como a
instituição autorizada a lidar com o Oriente – fazendo e corroborando
afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o,
governando-o” (idem, 29). O discurso orientalista, hegemônico nos estudos
universitários, livros de viagem, relatos jornalísticos e pronunciamentos
políticos europeus e norte-americanos, seria, na opinião de Edward Said, “um
estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”
(idem), sendo usado como justificativa ideológica para intervenções militares
em países considerados “primitivos” ou “autoritários”, que necessitariam da
presença ocidental para ingressarem no “mundo civilizado”. Wenceslau de Moraes,
que como oficial da marinha e diplomata visitou e residiu em vários países da
África e da Ásia, não adota em seus livros uma visão generalista sobre o
“Oriente”, preocupando-se, ao contrário, em perceber a especificidade do traço
cultural japonês, respeitando seus usos e costumes, e inclusive adotando suas
vestimentas, idioma e hábitos alimentares. O escritor português converte-se ao
zen-budismo, casa com uma japonesa e passa os seus últimos anos em Tokushima,
mergulhado no estudo de uma cultura que o encanta[1].
Em Relance da alma japonesa, volume
publicado em 1926, Moraes “fez uma apresentação do haicai que fugiu por
completo ao registro do exotismo pitoresco” (FRANCHETTI, 2012: 38), abordando
a estrutura da língua japonesa, normas gramaticais, gêneros poéticos e recursos
estilísticos de uma literatura que, até então, era desconhecida em Portugal. Relance da alma japonesa não é um livro
erudito, nem uma simples narrativa de viagem, mas o documento sincero de um
europeu que desejou sentir a cultura estrangeira que tanto o fascinava. No
primeiro capítulo da obra, o autor procura justificar o título, definindo a
palavra alma como “transcendência,
isto é, a significação do pensamento íntimo do indivíduo, dos indivíduos, na
apreciação das coisas” (MORAES, 1926: 11). Ele se propõe a “relancear em
espírito o modo de ser da família japonesa, no tocante à sua apreciação racial[1]
das coisas, como ela as vê, como ela as sente” (idem). Reconhece a dificuldade
do seu propósito, uma vez que “a alma japonesa é, para nós, europeus, e mais do
que a de qualquer outro povo, um caprichoso e enorme ponto de interrogação,
refratário a quaisquer averiguações” (idem, 15), mas justifica-se dizendo que
“não tomo muito a sério a dificuldade em que me vejo. Palestro apenas com o
leitor. Relanceio o meio em que me
acho; aponto fatos, como eles se dão, ou me parece darem-se; busco tirar
conclusões, porém sem esperança de alcançá-las” (idem). Prossegue o autor: “Em
todo caso, sigo um método de estudo, para não me desorientar por completo; e
chegarei à última página deste livro, sem sombra de remorsos por ter errado mil
vezes o caminho para onde me levou a fantasia” (idem). Nas páginas seguintes,
Wenceslau de Moraes apresentará minuciosas descrições da sociedade japonesa,
comentando aspectos de sua religião, idioma, educação, política, literatura,
arte, conceitos sobre o amor e a morte, sempre no meio fio entre a informação objetiva
e a impressão subjetiva. Sobre a escrita japonesa, escreve o autor:
“Na língua japonesa, quando escrita (ou
pintada, porque o pincel substitui a pena), as palavras escrevem-se de cima
para baixo e da direita para a esquerda, ao contrário do que sucede com as
línguas européias; empregando símbolos gráficos, silábicos, que os japoneses
inventaram, ou então os caracteres ideográficos (...). Desse processo de
escrever, deriva o fato de que a primeira página de um livro japonês
corresponde à última de um livro escrito a nossa moda.” (MORAES, 1925: 30)
O autor
português, atento à relação entre poesia, caligrafia e pintura, destaca os
materiais utilizados na escrita (o pincel, a pena), a diferença entre os sinais
gráficos que representam sons e os caracteres ideográficos, que são figuras
abreviadas, bem como a peculiar forma de leitura da escrita japonesa, tão
diversa da conhecida nas línguas ocidentais. Wenceslau de Moraes observa a
relação íntima entre as regras gramaticais e os conceitos filosóficos que
moldaram a cultura e a sociedade japonesa, com percepção acurada: “Não há
artigos na língua japonesa. O substantivo e o adjetivo são invariáveis quanto
ao número e quanto ao gênero, denominações gramaticais que os japoneses
desconhecem” (idem, 34). A diferença entre a lógica gramatical do idioma de
Bashô e sua equivalente na língua de Camões não é considerada por Moraes como
deficiência ou falha, e sim como reflexo, no mundo das palavras, de conceitos
espirituais: “Começamos a adivinhar aqui
um conceito da mais alta importância psíquica, na mentalidade do nipônico: a impersonalidade
humana, perante os fenômenos da vida” (idem). O agente individual, numa cultura
regida pelos princípios de Confúcio e Hui-neng – sexto patriarca do zen budismo
chinês –, é algo “de somenos importância, em presença do grandioso drama da
natureza criadora” (idem). Prossegue o autor:
Na língua japonesa, se excetuarmos um ou
dois termos raramente empregados, que designam a primeira pessoa, pode dizer-se
que não há pronomes pessoais. A consequência imediata deste curiosíssimo
fenômeno filológico é não haver senão uma palavra para cada modo e tempo de
cada verbo. (...) Na conjugação dos verbos japoneses, não se tem em conta as
pessoas. (...) Estabelecida claramente esta distinção, pode e deve-se dizer que
não existe sujeito gramatical em japonês. Com efeito, ficou notado que a noção de
pessoa, isto é, de um ser subsistente e potencial, não existe nesta língua. A
consequência rigorosa deste fato é a impersonalidade absoluta no verbo, o qual
não exprime mais do que a existência de um acontecimento, de um estado ou de
uma paixão, sem relação com a pessoa. (idem, 38)
A
impessoalidade, ou ausência de um eu separado do campo dos fenômenos é um
conceito caro à doutrina budista. Conforme explica Ricardo M. Gonçalves em seu
livro Textos budistas e zen-budistas,
“neste contínuo vir a ser que é este mundo, nada existe de substancial e
definitivo. Nenhum fenômeno existe independentemente do contexto em que ele se
situa, e seu destino é transformar-se, quando o contexto se modifica” (GONÇALVES,
1999: 15). A ausência de um eu, nesta
filosofia tão diferente do pensamento religioso cristão e mesmo das doutrinas
devocionais do Extremo Oriente, fundadas na dualidade entre o eu e o outro, o
divino e o humano, o sujeito e o objeto, está relacionada a outro princípio da metafísica
budista, o da interdependência. Segundo Ricardo M. Gonçalves, “as coisas não se
definem pelo que elas são em si, mas pela rede de condicionamentos e
relacionamentos que as ligam ao contexto. O homem, ao se analisar, não encontra
em si mesmo e ao seu redor nada a que possa se apegar como sendo seu eu, sua
personalidade substancial” (idem). A consequência deste pensamento é que o
mundo dos fenômenos, sendo vazio de substancialidade e em contínuo processo de
transformação, é impermanente: tudo muda o tempo todo, logo, os seres e as
coisas não têm realidade estável, fora de situações específicas do espaço e do
tempo, daí a analogia com a experiência do sonho. O único Absoluto, conforme a
metafísica budista, é o Vazio, ou Sunyata, que é “inacessível ao pensamento e à
linguagem” e que “está em todas as coisas e também dentro delas” (idem, 13). Este
Vazio “é o Uno, a Totalidade de Existência, o Absoluto, mas pode revelar a si
mesmo através da multiplicidade dos fenômenos relativos, contingentes e
transitórios, assim como a luz só se revela como tal quando incide em corpos
opacos que provoquem o contraste luz-trevas” (idem). A arte tradicional
japonesa, que expressa este pensamento filosófico, oculta o eu desde a
estrutura da língua, ao mesmo tempo que privilegia a representação do vazio, seja
nas pinturas a nanquim, seja na arte da caligrafia, na jardinagem ou na arquitetura.
Quando os jesuítas portugueses e espanhóis iniciaram sua missão evangelizadora na
Terra do Sol Nascente, foi inevitável o confronto entre a concepção dualista da
realidade, que considera Deus, homem e mundo como realidades distintas, eternas
e inconfundíveis, e o pensamento monista do budismo japonês. Paulo Leminski,
comentando o encontro do padre espanhol Francisco Xavier com o bonzo Ninshitsu, escreve:
Xavier fala do amigo: “tenho falado com
diversos bonzos ilustrados, especialmente com um que é tido na mais alta estima
por todos, pelo seu saber, conduta e dignidade, como pela avançada idade de
oitenta anos. Seu nome é Ninshitsu, que em japonês significa ‘Coração da
Verdade’. É uma espécie de bispo entre eles e, se o nome que usa é apropriado,
é realmente um homem abençoado... Esse homem tem sido para mim um amigo
maravilhoso”.
O diálogo entre eles, porém, não deve ter
sido muito fácil.
Xavier ficou confuso, logo de cara, ao
conversar com Nishitsu.
O velho mestre zen parecia não saber se
“possuía” ou não uma alma. Para ele, era inteiramente estranho o conceito de
que “uma alma” era uma espécie de objeto que “alguém” pode estar “possuindo” e
até mesmo “salvando”. (LEMINSKI, 1983: 77)
[1] Wenceslau de Moraes, numa atitude
raríssima em seu tempo, chega inclusive a justificar a expulsão dos
missionários portugueses das ilhas japonesas: “Dá-se, em 1542, o inesperado
incidente da chegada dos primeiros europeus – os portugueses – ao Japão. Foi
grande o alvoroço, principalmente na ilha de Kyushu. No ano de 1638, os
estrangeiros eram expulsos do Japão; o império isolava-se do mundo inteiro. A
história absolve os japoneses dos atos de perseguição que empregaram contra os
padres, contra os frades e contra todos os católicos em geral;
patenteando-se-lhe a evidência da teimosia missionária e dos altos
inconvenientes que resultariam para o Estado, se uma provável cisão do povo
viesse a manifestar-se, devido aos diferentes cultos em rivalidade”. (MORAES,
1925: 65)
[1] Como um intelectual europeu do século XIX, Wenceslau
de Moraes acreditava sinceramente que a identidade e os valores culturais de um
povo ou nação estavam relacionados a características raciais, porém, à
diferença do Conde Gobineau e outros teóricos racistas, ele não faz juízos de
valor, considerando uma raça “inferior” frente a outra “superior”. Sua
preocupação está em tentar entender a cultura do outro, sem hierarquizá-la, ao
modo dos estudos culturais regidos pelo Orientalismo.
[2] O xintoísmo é uma religião baseada no culto aos
antepassados, aos espíritos da natureza e aos deuses da mitologia japonesa, em especial Izanagi
e Izanami, o casal divino que deu origem ao universo, e Amaterasu, a deusa do
Sol. O imperador também era adorado como um deus vivo, prática que subsistiu
até a derrota do Japão na II Guerra Mundial. Ao contrário do budismo e do
confucionismo, trazidos da China, o xintoísmo (xinto significa “Caminho dos deuses”) é uma religião de origem
japonesa, que remonta à pré-história. Também é conhecida como yamato-kotoba e Kami no michi .
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