quinta-feira, 21 de março de 2013

A RECEPÇÃO CLÁSSICA DA POESIA JAPONESA EM PORTUGAL (VI)



2. 4 De Eugênio de Andrade a Albano Martins

Uma rã que salta – Homenagem a Bashô (Porto: Limiar, 1995) é um elegante volume que apresenta traduções e poemas originais que dialogam com o mais conhecido de todos os haicais japoneses – “No velho tanque / uma rã salta – mergulha. / Ruído na água”, de Bashô. A antologia, organizada por Casimiro de Brito para o Pen Club português, apresenta ensaio introdutório do estudioso inglês Stephen Reckert, professor da Universidade de Londres e autor de Beyond Chrysanthemus (Oxford Press, 1993), e poemas escritos por vinte autores de língua portuguesa, entre eles Eugênio de Andrade (1923-2005), Antonio Ramos Rosa (n. 1924), Albano Martins (n. 1930), Yvette Centeno (n. 1940), Maria Alzira Seixo (1941) e o brasileiro Murilo Mendes (1901-1975).  No final do volume, foi incluído um caderno com traduções de Bashô realizadas por outros nomes de importância na literatura portuguesa, como Jorge de Sena (1919-1978), Ana Hatherly (n. 1929) e Liberto Cruz (1935), e ainda dos brasileiros Paulo Franchetti (1954) e Elsa Taeko Doi. A leitura atenta desta antologia revela enorme diversidade de dicções e estilos, que dialogam de maneira criativa com temas e técnicas da poesia japonesa tradicional, sem intenção caricatural ou mimética. Casimiro de Brito abre a mostra com a sua renga À sombra de Bashô, que intercala haicais do autor japonês com outros de sua própria lavra, num diálogo já examinado neste capítulo. Eugênio de Andrade, que aparece em seguida, multiplica as três linhas do haicai em três tercetos completos, autônomos, aos quais adiciona um verso isolado, totalizando dez versos:


HOMENAGEM A BASHÔ

As cigarras ardem
nos ramos do verão
como lenha verde.

Um rumor pueril
e doce de abelhas
enganava a sede.

No cimo da torre
da praça mais branca
é que o sol se despe,

e dança dança dança.


O primeiro terceto, fortemente imagético, com métrica próxima à redondilha menor (com versos de cinco e seis sílabas), inclui o signo da estação do ano, o kigo (“nos ramos do verão”) e o olhar do poeta está voltado às pequenas coisas da natureza, como cigarras e ramos de árvore, mostrados de maneira metafórica, que atribui um brilho virtuosístico à cena observada – “As cigarras ardem / (...) / como lenha verde”.  No segundo terceto, permanece o foco nos seres de menor dimensão do reino animal, no caso, as abelhas,  mas a objetividade do haicai é perdida com a adjetivação retórica (pueril, doce) e com a abstração metafórica da imagem. Na terceira composição, Eugênio de Andrade alcança maior precisão de imagens, nos dois versos iniciais, e conclui o poema com uma inesperada prosopopéia, em que o sol, convertido em personagem, despe-se da luz e “dança dança dança”, sendo o quarto verso – inexistente no haicai – uma possível citação de Une saison en enfer, de Rimbaud (“Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança”, lemos na tradução de Ledo Ivo, in RIMBAUD, 1982: 52). A cena criada por Eugênio de Andrade neste poema foge das convenções do haicai, mas, pela imagem inusitada, lúdica, próxima ao imaginário das crianças, não destoa da tradição inaugurada por Bashô, a quem o poema é dedicado no título. O apreço do poeta por esse pequeno conjunto de (quase) haicais pode ser avaliado por sua inclusão no livro Pequeno formato (1997), publicado por Eugênio de Andrade dois anos após o lançamento da antologia Uma rã que salta. A sensibilidade poética do autor, no entanto, submeteu os tercetos a uma rigorosa revisão estilística, a começar pelo título, que muda para Rumores de verão, excluindo a óbvia referência metalingüística do título anterior. O primeiro terceto, talvez o mais virtuosístico, foi reelaborado, perdendo um pouco do brilho original mas ganhando maior proximidade com o espírito do haicai:  “As cigarras cantam, / como no inverno / arde a lenha verde”,  imagem simples e eficaz, com economia de recursos e  alta definição de contornos. Já o segundo terceto sofreu a alteração de uma única palavra, que mudou completamente o seu sentido: em lugar de “Um rumor pueril / e doce de abelhas / enganava a sede”, o poeta escreve agora: “Um rumor pueril / e doce de abelhas / acrescenta a sede”, mudança imprevista que adiciona uma discreta ironia ao verso. A terceira estrofe muda completamente: em vez de “No cimo da torre / da praça mais branca / é que o sol se despe”, o poeta escreve agora: “Quando o sol avista /os flancos do mar / despe-se a correr, / e dança dança dança” (in ANDRADE, 2000: 545), substituindo a paisagem quase estática da versão anterior por uma imagem em movimento, que recorda a desmesura de uma composição de Bashô: “o dia em chamas / joga no mar / o rio mogâmi”, na tradução de Paulo Leminski.


Rumores de verão é a peça de abertura de Pequeno formato, conjunto de 30 poemas breves, em que predominam os dísticos, tercetos e quartetos; de todos os livros de Eugênio de Andrade, este é o que apresenta maior economia verbal. A simplicidade, a presença da natureza, dos animais e das quatro estações, a observação rara e as ações imprevistas, elementos característicos do haicai, predominam neste volume, embora poucas peças possam ser chamadas, a rigor, de haicais; talvez apenas o Jardim de Lou Lim Leoc, que diz: “Deste jardim o que levo comigo / é um ramo de bambu para servir / de espelho ao resto dos meus dias” (idem, 551), terceto antecedido pelo dístico intitulado Templo da barra: “O verde dos bambus mais altos é azul / ou então é o céu que pousa nos seus ramos” (idem). A imagética dessas composições é japonesa, sendo o bambu uma imagem recorrente na pintura sumiê e em diversos haicais, como neste poema de Buson, traduzido por Paulo Franchetti: “Com a luz do relâmpago / Barulho de pingos – / Orvalho nos bambus” (in FRANCHETTI, 2012: 100). A proximidade na página entre os dois poemas, um de três versos, o outro de dois versos, sem uma relação sintática ou referencial entre eles – com exceção da palavra bambu – remete ainda à forma do tanka, em que as duas estrofes têm certa autonomia, relacionando-se por analogia. A justaposição de sentenças sem um nexo lógico entre elas, à maneira de uma montagem cinematográfica, é um recurso estrutural da poesia japonesa, presente no tanka e também no haicai, como neste poema de Bashô: “Um corvo pousado / Num ramo seco – / Entardecer de outono” (in FRANCHETTI, 2012: 128). Podemos encontrar vários exemplos dessa técnica nos poemas de Pequeno formato, como neste poema de cinco linhas, intitulado Cantam na madrugada: “À beira / d’água a luz / é em mim que tem morada: / tão longe / ainda a última barca” (ANDRADE, 2000: 553), em que há um claro corte entre os três primeiros versos e os dois seguintes, que se relacionam de maneira metafórica, assim como as estrofes de um tanka tradicional.  A justaposição de cenas e ações simultâneas é ainda mais expressiva nessa quadrinha, intitulada Verão, escrita em versos de dez sílabas:  “Era verão, pela varanda entrava / a madura ondulação do trigo, / o grito lancinante dos pavões, / o cavalo na sombra ardendo em cio” (ANDRADE, 2000: 547), em que não faltam o signo da estação do ano, os animais e vegetais integrados numa ordenação cósmica.

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