domingo, 31 de março de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VIII)



Mestres budistas comparavam a mente humana a um espelho, cuja essência é pura e perfeita. Ao entrar em contato com o mundo material, a superfície cristalina acumula poeira, que recobre a sua pureza original. Shen-hsiu escreveu o seguinte poema, para apresentar o conceito: “Este corpo é a árvore Bodhi / a mente é como um espelho iluminado; / Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa / Sem deixar que nela se junte o pó” (in SUZUKI, 1993: 15). Para “limpar a mente” dos resíduos mundanos e fazer com que ela recupere a sua natureza de puro cristal, Shen-hsiu propunha o “método gradual” para a iluminação, que incluía o estudo dos Preceitos morais (sila), Meditação (dhyana) e Sabedoria Transcendental (prajna)[1], tópicos que integravam a vida monástica na maioria das escolas budistas, tanto as do sul quanto as do norte da China. Rebelando-se contra o formalismo das práticas meditativas, o quietismo e sobretudo contra a ideia de uma evolução espiritual gradual, Hui-Neng apresentou o seguinte poema, em resposta ao de Shen-hsiu: “Não há árvore Bodhi, / nem o cessar do brilho do espelho. Sendo tudo vazio, onde / poderia assentar-se o pó?”. A natureza búdica da mente, para Hui-Neng, “não persiste nem é aniquilada; não chega nem parte; não está no meio nem nas extremidades; ela não morre nem nasce. Permanece a mesma o tempo todo, imutável em todas as mudanças. Assim como nunca nasceu, nunca morrerá” (idem, 33). O “método abrupto” de Hui-Neng não era a “arte de tranquilizar a mente para que sua essência interior, pura e imaculada, pudesse extravasar os seus invólucros” (idem), uma vez que ela já é “pura, simples e iluminadora como o sol por trás das nuvens” (idem, 22). O reconhecimento desse princípio, para o sábio chinês, era a iluminação súbita, que dispensava erudição, práticas de austeridades ou rigor nas normas cerimoniais e de conduta. A busca do satori tornou-se o centro da vivência zen-budista, e os meios para esse súbito despertar eram os mais inusitados, podendo incluir desde tarefas domésticas, como varrer o templo, até golpes de bambu aplicados pelo mestre no discípulo ou histórias absurdas ou enigmáticas (koans), como esta, relatada por Paulo Leminski:

Hui-Ko procurou Bodhidarma, primeiro patriarca do zen chinês, e lhe disse:

— Não tenho paz na minha mente. Pacifica a minha mente.

— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico, responde Bodhidarma.

— Mas quando busco a minha própria mente, não consigo encontrá-la, diz Hui-Ko.

E Bodhidarma:

— Pronto! Pacifiquei tua mente.

(LEMINSKI, 1983: 73)


A vivência profunda da espiritualidade zen-budista está presente na poesia de Bashô, e ainda na maneira como ele ensinava os seus discípulos, como podemos verificar nestes aforismos do poeta japonês, que abandonou o caminho do samurai após a morte de seu mestre para tornar-se monge andarilho:

Repita seu verso mil vezes nos lábios.

Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam.

Respeite as regras. Então, jogue todas fora. Pela primeira vez, você atinge a liberdade.

(in LEMINSKI, 1983: 41-42)

Aprende do pinheiro diretamente do pinheiro; do bambu, diretamente do bambu.

(BASHÔ, 1997: 10)

Eugênio de Andrade, em outro momento histórico, outra dimensão geográfica e com outro repertório cultural, aproxima-se, pelo conceito laico (e mesmo pagão) da epifania — “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (SARAIVA, 1995: 54) da experiência zen-budista. No prefácio à sua Antologia breve (Lisboa: Moraes Editores, 1980), o poeta português define o ato poético como “o empenho total do ser para a sua revelação”, que ele define como a “descida ao coração da alma, essa coragem de mostrar o que achou no caminho”, que caracterizaria “a dignidade do poeta e, com ela, a do homem” (ANDRADE, 1980: 7-8). A tarefa do poeta seria resistir à “desfiguração” imposta pela cultura moderna e resgatar o rosto original do homem, “belo e tenebroso, à luz limpa do dia” (idem). Enumerando poetas e místicos de diferentes épocas, culturas e países que considera seus companheiros de jornada, Eugênio de Andrade escreve: “De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafys, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efêmero rosto” (idem, 8-9).  A rebelião do poeta seria feita “em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma” (idem, 9). A tonalidade desta breve nota é a de um manifesto, em que não são poucas as referências românticas, como a oposição entre cultura e natureza, a busca de uma verdade essencial, a valorização da sinceridade e da expressão subjetiva, e mesmo o emprego de palavras como rebelião, raízes, terra, sangue, alma. O poeta é visto de modo messiânico, como aquele que possui as chaves mágicas para decifrar a realidade e mostrar ao homem o seu próprio rosto. O pensamento filosófico de Eugênio de Andrade possui diversos matizes que contrastam com as percepções de Matsuo Bashô – único oriental citado entre os seus poetas de devoção, ao lado do chinês Li T’ai Po – mas podemos estabelecer uma relação elucidativa entre a perspectiva idealista do autor português e a visão sincrética do poeta samurai, que recebeu a educação militar e cultural adequada a um guerreiro (que incluía aulas de pintura, poesia, caligrafia e filosofia, além do treinamento no manejo de armas), absorveu as normas de conduta confucianas e depois abraçou a mística budista, sem nunca perder um vínculo espiritual com a natureza, herança da cosmovisão xintoísta, presente em todas as manifestações da arte japonesa.  


[1] A moralidade consiste em observar todos os preceitos estabelecidos por Buda, tendo em vista o progresso espiritual de seus discípulos; a meditação é o exercício destinado ao treinamento pessoal na tranquilização, pois se a mente não for controlada pela meditação, de nada adiantará observar mecanicamente as regras de conduta; na realidade, estas se destinam a tranqüilizar o espírito. Sabedoria ou prajna é o poder de penetrar a natureza do próprio ser (...). Não é preciso dizer que todas essas três disciplinas são necessárias a um budista sincero. Mas, com o passar do tempo, depois de Buda, a Tríplice Disciplina cindiu-se em três ramos distintos de estudo: os seguidores das regras de moralidade estabelecidas pelo Buda tornaram-se professores do Vinaya; os yogues da meditação incorporaram-se a várias espécies de Samadhi e até mesmo adquiriram algumas faculdades extraordinárias (...). E finalmente, os que buscavam Prajna tornaram-se filósofos dialéticos ou líderes intelectuais. Esse estudo unilateral da Tríplice Disciplina fez com que os budistas se desviassem do reto caminho da vida budista, especialmente quanto a Dhyana (meditação) e a Prajna (sabedoria ou conhecimento intuitivo). (SUZUKI, 1993: 30)

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