Mestres budistas comparavam a
mente humana a um espelho, cuja essência é pura e perfeita. Ao entrar em
contato com o mundo material, a superfície cristalina acumula poeira, que
recobre a sua pureza original. Shen-hsiu escreveu o seguinte poema, para
apresentar o conceito: “Este corpo é a árvore Bodhi / a mente é como um espelho
iluminado; / Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa / Sem deixar que nela se
junte o pó” (in SUZUKI, 1993: 15). Para
“limpar a mente” dos resíduos mundanos e fazer com que ela recupere a sua natureza
de puro cristal, Shen-hsiu propunha o “método gradual” para a iluminação, que
incluía o estudo dos Preceitos morais (sila),
Meditação (dhyana) e Sabedoria
Transcendental (prajna)[1], tópicos
que integravam a vida monástica na maioria das escolas budistas, tanto as do
sul quanto as do norte da China. Rebelando-se contra o formalismo das práticas
meditativas, o quietismo e sobretudo contra a ideia de uma evolução espiritual gradual,
Hui-Neng apresentou o seguinte poema, em resposta ao de Shen-hsiu: “Não há
árvore Bodhi, / nem o cessar do brilho do espelho. Sendo tudo vazio, onde /
poderia assentar-se o pó?”. A natureza búdica da mente, para Hui-Neng, “não
persiste nem é aniquilada; não chega nem parte; não está no meio nem nas
extremidades; ela não morre nem nasce. Permanece a mesma o tempo todo, imutável
em todas as mudanças. Assim como nunca nasceu, nunca morrerá” (idem, 33). O
“método abrupto” de Hui-Neng não era a “arte de tranquilizar a mente para que
sua essência interior, pura e imaculada, pudesse extravasar os seus invólucros”
(idem), uma vez que ela já é “pura, simples e iluminadora como o sol por trás
das nuvens” (idem, 22). O reconhecimento desse princípio, para o sábio chinês,
era a iluminação súbita, que dispensava erudição, práticas de austeridades ou rigor
nas normas cerimoniais e de conduta. A busca do satori tornou-se o centro da vivência zen-budista, e os meios para
esse súbito despertar eram os mais inusitados, podendo incluir desde tarefas
domésticas, como varrer o templo, até golpes de bambu aplicados pelo mestre no
discípulo ou histórias absurdas ou enigmáticas (koans), como esta, relatada por Paulo Leminski:
Hui-Ko procurou Bodhidarma, primeiro patriarca do zen
chinês, e lhe disse:
— Não tenho paz na minha mente. Pacifica a minha
mente.
— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico,
responde Bodhidarma.
— Mas quando busco a minha própria mente, não consigo
encontrá-la, diz Hui-Ko.
E Bodhidarma:
— Pronto! Pacifiquei tua mente.
(LEMINSKI, 1983: 73)
A vivência profunda da
espiritualidade zen-budista está presente na poesia de Bashô, e ainda na
maneira como ele ensinava os seus discípulos, como podemos verificar nestes
aforismos do poeta japonês, que abandonou o caminho do samurai após a morte de
seu mestre para tornar-se monge andarilho:
Repita seu verso mil vezes nos lábios.
Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam.
Respeite as regras. Então, jogue todas fora. Pela
primeira vez, você atinge a liberdade.
(in
LEMINSKI, 1983: 41-42)
Aprende do pinheiro diretamente do pinheiro; do bambu,
diretamente do bambu.
(BASHÔ, 1997: 10)
Eugênio de Andrade, em outro
momento histórico, outra dimensão geográfica e com outro repertório cultural, aproxima-se,
pelo conceito laico (e mesmo pagão) da epifania — “uma luminosa manifestação,
uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (SARAIVA, 1995: 54) da
experiência zen-budista. No prefácio à sua Antologia
breve (Lisboa: Moraes Editores, 1980), o poeta português define o ato
poético como “o empenho total do ser para a sua revelação”, que ele define como
a “descida ao coração da alma, essa coragem de mostrar o que achou no caminho”,
que caracterizaria “a dignidade do poeta e, com ela, a do homem” (ANDRADE, 1980: 7-8). A tarefa do poeta seria
resistir à “desfiguração” imposta pela cultura moderna e resgatar o rosto
original do homem, “belo e tenebroso, à luz limpa do dia” (idem). Enumerando
poetas e místicos de diferentes épocas, culturas e países que considera seus
companheiros de jornada, Eugênio de Andrade escreve: “De Homero a S. João da
Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a
Cavafys, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis
o homem, eis o seu efêmero rosto” (idem, 8-9).
A rebelião do poeta seria feita “em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao
homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde
mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da
verdade última do sangue, que é também verdade da alma” (idem, 9). A tonalidade
desta breve nota é a de um manifesto, em que não são poucas as referências
românticas, como a oposição entre cultura e natureza, a busca de uma verdade
essencial, a valorização da sinceridade e da expressão subjetiva, e mesmo o
emprego de palavras como rebelião,
raízes, terra, sangue, alma. O poeta é visto de modo messiânico, como
aquele que possui as chaves mágicas para decifrar a realidade e mostrar ao
homem o seu próprio rosto. O pensamento filosófico de Eugênio de Andrade possui
diversos matizes que contrastam com as percepções de Matsuo Bashô – único
oriental citado entre os seus poetas de devoção, ao lado do chinês Li T’ai Po –
mas podemos estabelecer uma relação elucidativa entre a perspectiva idealista
do autor português e a visão sincrética do poeta samurai, que recebeu a
educação militar e cultural adequada a um guerreiro (que incluía aulas de
pintura, poesia, caligrafia e filosofia, além do treinamento no manejo de
armas), absorveu as normas de conduta confucianas e depois abraçou a mística
budista, sem nunca perder um vínculo espiritual com a natureza, herança da
cosmovisão xintoísta, presente em todas as manifestações da arte japonesa.
[1] A moralidade consiste em observar todos os preceitos
estabelecidos por Buda, tendo em vista o progresso espiritual de seus
discípulos; a meditação é o exercício destinado ao treinamento pessoal na
tranquilização, pois se a mente não for controlada pela meditação, de nada
adiantará observar mecanicamente as regras de conduta; na realidade, estas se
destinam a tranqüilizar o espírito. Sabedoria ou prajna é o poder de penetrar a natureza do próprio ser (...). Não é
preciso dizer que todas essas três disciplinas são necessárias a um budista
sincero. Mas, com o passar do tempo, depois de Buda, a Tríplice Disciplina
cindiu-se em três ramos distintos de estudo: os seguidores das regras de
moralidade estabelecidas pelo Buda tornaram-se professores do Vinaya; os yogues
da meditação incorporaram-se a várias espécies de Samadhi e até mesmo adquiriram algumas faculdades extraordinárias
(...). E finalmente, os que buscavam Prajna tornaram-se filósofos dialéticos ou
líderes intelectuais. Esse estudo unilateral da Tríplice Disciplina fez com que
os budistas se desviassem do reto caminho da vida budista, especialmente quanto
a Dhyana (meditação) e a Prajna (sabedoria ou conhecimento
intuitivo). (SUZUKI, 1993: 30)
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