Todos esses elementos construtivos estão
presentes no ambicioso projeto que Casimiro de Brito denominou LIVRO DOS HAIKU,
obra em progresso desenvolvida desde 1958 que será constituída de 14 livros,
sendo que apenas dois foram publicados até a presente data: 1) À sombra de Bashô (renga que intercala haicais traduzidos do poeta japonês com outros
de autoria do próprio Casimiro de Brito); 2) renga com Ban’Ya; 3) (Elementos, estações); 4) Eros mínimo; 5) Devastação; 6) Da comoção;
7) Através do ar (editado no Japão,
em quatro línguas, em parceria com Ban’Ya); 8) Amando, escrevendo; 9) Para
além; 10) Outras músicas; 11) Desprendimento; 12) No amor tudo se move; 13 e 14) antologias de haikus antigos e contemporâneos. O primeiro livro deste ciclo, À sombra de Bashô, uma elegante
publicação em formato vertical e textura roxa na capa e contracapa, de 14,5cm por
35cm, é um conjunto de 110 poemas alinhados na forma de renga, gênero poético japonês em que dois ou mais poetas
participam, intercalando os versos. Conforme escreve Shuichi Kato, “cada
um faz uma estrofe relacionada exclusivamente
à última estrofe composta, sem nenhuma necessidade de considerar as estrofes
anteriores.” (KATO, 2011: 94). “O fluir
do renga não é planejado”, afirma o autor
japonês, “ele segue conforme as ideias que surgem no momento, ora mudando-se o
tema, ora o cenário, ora a emotividade (idem).” Nessa forma de fazer poético
regida pela mobilidade, casualidade e surpresa, sem uma unidade ou foco de
interesse, o encanto reside no “encontro inesperado”, na “engenhosidade” e na
“retórica” de cada estrofe apresentada (idem).
Em À sombra de Bashô há um elemento
insólito adicional, que é o diálogo involuntário de um poeta-samurai japonês do
século XVII com um autor português do século XX, que responde aos haicais de
Bashô, traduzidos diretamente do idioma original e apresentados em itálico, com
outros haicais, concebidos de maneira paródica (no sentido original da palavra,
que em grego significa “canto dialogado”). Assim, o conhecido poema de Bashô “No
velho tanque – / uma rã salta, mergulha – / ruído na água” é seguido por esta
composição de Casimiro de Brito: “Na página branca / na branca voz – outra rã /
salta. Silêncio”, que introduz, sub-repticiamente, uma terceira voz na renga, a do simbolista francês Stephane
Mallarmé, representado por algumas de suas obsessões – o silêncio, a página em
branco e o acaso. Outro poema de Bashô, “O mar escurece / ouço grasnar os patos
/ vagamente brancos[1]” recebe
a seguinte resposta criativa de Casimiro de Brito: “Nuvem deitada / Os olhos
espreitam o peixe / que vai saltar”, em que a metáfora e o close cinematográfico de uma imagem inusitada respondem às
sinestesias do poema anterior. O diálogo poético estabelecido por Casimiro de
Brito com Matsuo Bashô não hesita em subverter o sentido dos poemas com os
quais conversa, nem guarda pudores em relação a princípios do haicai
tradicional, injetando o sensualismo (ausente na lírica do poeta-samurai),
metáforas complexas, citações metalinguísticas, a presença ostensiva do eu
lírico e referências urbanas que denunciam o poeta como um cidadão da
modernidade, em contraste com o mundo místico, simples e rural de um Japão que
não mais existe (tornou-se literatura). Alguns exemplos da riqueza imagética
das composições de Casimiro de Brito:
42
Aproximam-se as patas
invisíveis do sol –
de sombras calçadas.
58
O sol adormece
no seu lençol de nuvens
– insônia vermelha.
60
As patas do sol
aproximam-se, invisíveis,
da relva do corpo.
72
Cidade caótica –
a borboleta atravessa a
rua
com o sinal vermelho.
Podemos recordar, lendo estes poemas, de
alguns haicais de Bashô que colocam em primeiro plano a imagem rara, como esta
peça traduzida por Paulo Leminski : “chuva de primavera / a água escorre do
teto / pelo ninho de vespas” (in LEMINSKI, 1983: 51), ou ainda: “relampagueia / através das trevas / a
garça ecoa” (idem, 50). Bashô, samurai sem mestre (ronin) que tornou-se monge zen-budista, tematiza o amor universal, a compaixão por
todos os seres vivos, de todos os gêneros e condição social, até mesmo pelas
plantas e os insetos (“sob o mesmo teto / dormem rameiras, a lua / e também o
trevo”, na tradução de Casimiro de Brito), mas nada fala sobre o amor erótico
(embora fosse contemporâneo dos Livros de
primavera, romances pornográficos em voga na época, e dos rengas satíricos produzidos por
comerciantes e soldados); já o poeta português elege esse tema como um dos
pontos centrais de seu labor criativo, como podemos ler nesta composição de
extrema sutileza e delicadeza: “Cabelos que vou pentear / a noite inteira. O
vestido / junto à lareira”. Em outros momentos da renga, Casimiro de Brito inclui haicais de caráter mais filosófico,
como se fossem aforismos:
64
O mundo não vou mudar –
deixa-me sacudir a areia
das tuas sandálias
90
A morte não existe.
Onde secam ervas foi
água,
que se partiu triste.
102
Tanta luz feliz
Por tão pouco tempo! Amanhã
Estaremos velhos.
110
Talvez a morte não
exista. Talvez seja apenas
viagem, flutuação.
A afinidade entre o haicai e o aforismo
foi percebida por Maria João Cantinho, que, na resenha do livro mais recente de
Casimiro de Brito, A boca da fonte
(Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim – Editora Unip. Lda., 2012), escreve: “A
estética do haiku tem, ainda, vários
pontos de afinidade com o aforismo, pela mesma retórica, pelo mesmo sentido de
economia e de rigor poético”, motivo pelo qual “tenha entrado na literatura
ocidental pela estética do fragmento, tão cara aos poetas alemães românticos,
tendo como cultor máximo do gênero o poeta Novalis[2]” (CANTINHO, 2013). O aforismo e o fragmento estão presentes em
diversas obras do autor português, relata a autora, citando livros como A arte da respiração, editado pela D.
Quixote (1988), Da frágil sabedoria,
(2001), Fragmentos de Babel (2007) e Arte de bem morrer (2007), aos quais
podemos acrescentar Na via do mestre
(2010), conjunto de 81 poemas-aforismos que dialogam com o Tao te king, do sábio taoísta chinês Lao Zi, que viveu no sexto
século antes de Cristo. “A peculiaridade e o próprio sentido desta estética do
fragmento nasce do próprio instante e da concentração temporal nele existente,
do Aqui e do Agora que se abrem na sua leitura”, escreve a autora (idem). O
tempo do poema é o tempo presente; mesmo a recordação evocada de situações
localizadas em outras coordenadas espaço-temporais se concretiza poeticamente a
partir da rememoração / refabulação feita no agora. Ou ainda: o poema cria o
seu próprio tempo, que se manifesta na duração da leitura, e o seu próprio
espaço, que é o branco da página. Conforme diz Maria João Cantinho, “o poema
conquista a sua plenitude à luz da organicidade e da estruturação que dele
irradia, da sua própria concentração temporal e espacial”. Por essa razão, “cada
poema deve ser lido ao centro, para que, da concentração do olhar, surja também
a contemplação da origem e do fim do poema, da palavra e da coisa” (idem). Partindo
desses pressupostos, afirma a autora que “a estética do haiku ou do fragmento recusa a ideia de um acabamento ou de uma
definição da obra e esta vai-se fazendo à medida que se escreve cada poema,
definindo-se precisamente pela ausência da sua definição” (idem). Desse modo, a
poesia concentrada colhe, em cada verso, “a imperfeição e o segredo, o
inesperado” (idem). Os vetores conceituais apresentados por Maria João Cantinho
em seu texto são instigantes pontos de partida para uma discussão do conjunto
de cem haicais que Casimiro de Brito compilou em seu livro A boca da fonte. A série não tem unidade temática, nem é dividida
em focos de interesse; os poemas são numerados e alinhados em grupos de dois, quatro
ou cinco por página, sem um critério de organização claramente identificável.
Os haicais de Casimiro de Brito não têm rimas e a métrica não é sempre exata,
embora esteja próxima das medidas japonesas, de 5-7-5 sílabas. O autor
prescinde do signo da estação do ano, o kigo,
mas investe na concisão, na economia sintática e nos cortes elípticos, e por
vezes dialoga com imagens e recursos da poesia japonesa clássica, como acontece
nesta peça: “Vagueiam pela casa / o
homem, a mosca e o ar -- / ninguém descansa”, onde a enumeração de personagens
humanos e não-humanos em um mesmo cenário e situação recorda o princípio da
compaixão budista por todos os seres vivos, tema de numerosos haicais de Bashô,
como este poema, traduzido por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano: “em profundo
silêncio / o menino, a cotovia / o banco crisântemo” (BASHÔ, 1997: 10). A reflexão filosófica
é a tonalidade que predomina na maioria das composições de A boca na fonte, em outro ponto de contato com os aforismos de
autores alemães como Nietzsche e Novalis; essa “busca do primordial, do ato de
beber diretamente da fonte”, escreve Maria João Cantinho, está contida já no
título da obra, que alude à imersão “no sentido da natureza e simultaneamente
da linguagem” (idem). A inflexão filosofante, sob o signo da água, aparece já
na peça de abertura do volume: “Não separes a água / da sua espuma – / a vida é
só uma” (BRITO, 2010: 7), que parece
responder aos axiomas de Tales de Mileto (“tudo é água”) e Heráclito de Éfeso
(“ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”), bem como à tradicional imagem
budista que representa o mundo fenomênico como algo temporário, mutável, sem
realidade permanente, tal como a espuma nas águas de um rio. Casimiro de Brito,
divergindo da ótica budista, parece dizer o oposto: que essência e aparência,
substância e acidente formam uma unidade (“a vida é só uma”). O elemento líquido aparece em diversas
composições do livro, em geral com o mesmo viés existencial ou filosofante, por
vezes com timbre melancólico: “Silêncio. Ouçam / a vida – água correndo / cada
vez mais triste” (idem, 16), que recorda a imagem da clepsidra, na poesia de
Camilo Pessanha; “Em cada pedra / um rio que não cessa / de louvar as margens”
(idem, 26); “Lágrimas que são / cascata pura. Outras vezes / avalanche mortal”
(idem, 28). A água, símbolo da
mobilidade, fluidez, mutação e brevidade dos fenômenos, é um dos
motivos-condutores de A boca na fonte,
ao lado de outros elementos da natureza, como as montanhas, as vacas, os
bambus, os gatos e os figos, entre muitos outros. Conforme Maria João
Cantinho,
Se os elementos e a força da terra e da natureza perpassam
a sua poética, sob as mais variadas formas, desde a ínfima gota de chuva ou
grão de areia até ao enigmático silêncio das constelações, também o onírico
deflagra, a todo o instante, para nos recordar a brevidade da vida e do
instante: “Viagem nocturna –/ regresso à origem do sonho/donde nunca saí.
(CANTINHO, 2013)
Morte, sonho, infância, destino e
linguagem são outros temas que aparecem nesta coletânea de haicais, que compõem
uma espécie de diário íntimo do poeta, um registro de lembranças (reais ou inventadas),
terrores, desejos, obsessões. O tema mais recorrente talvez seja o da infância,
presente em dez poemas, em que se destaca um subtema doloroso, o da orfandade:
“A mãe a perdi / no dia em que nasci -- / amor no exílio” (BRITO, 2012: 14); “A
mãe não me deu / à luz. Passou-me duma nuvem / para outra” (idem, 12); “O pai
ao colo / do filho que traz no colo. / Os dois um só” (idem, 12). A infância é
percebida pelo poeta como duas realidades distintas: a biológica, que ele
recorda com saudade[3] – “O
cheiro da casa / que já não há: o sabor / dos figos da infância” (idem, 15) e a
atemporal, uma infância infinda, cujo único limite é a morte: “Acompanha-me /
sem nenhuma idade / a criança que fui” (idem, 22); “Infância sem fim -- /
enquanto a morte, felina / se vai instalando” (idem, 19). Thanatos é a
contraparte do elogio ao Menino, e está presente numa das mais belas composições
do volume: “Caminho devagar -- / viverei menos se caminhar / mais depressa?”
(idem, 21). As peças mais originais do livro, no entanto, são as sete que
comparecem nas páginas finais, sob o título Cf.
Lautréamont. Traçar um paralelo entre a poesia clássica japonesa, com todo
o seu lastro zen-budista, e a prosa cruel de Isidore Ducasse parece um
paradoxo, ou mesmo impossibilidade, mas Casimiro de Brito consegue sair-se bem
na dificultosa empresa, fazendo uma releitura intertextual focada na imagética surrealizante,
como na peça de abertura da série: “A terra não passa / de um imenso cu celeste
/ fremindo, cantando”. Claro, este já não é um haicai stricto sensu, mas um terceto que estabelece o diálogo possível
entre elementos na estética japonesa – concisão, fala popular, imagens raras, relação
Céu-Terra, o imprevisto – e o repertório linguístico e temático dos Cantos de Maldoror, como a pederastia
(indicada, de maneira metonímica, na palavra cu), a imaginação fantástica ou bizarra, a atribuição de
características humanas a formas inanimadas (este “cu celeste / fremindo,
cantando”, que recorda ainda o William Burroughs de O homem que ensinou o seu cu a falar). Em outro poema da série,
Casimiro de Brito escreve: “Mãos vegetais / raízes de árvores invisíveis /
trepando nas veias”. Neste poema, ainda mais estranho que o anterior, as
aliterações em v e s podem ser comparadas aos trocadilhos e
jogos verbais da poesia japonesa, como o kakekotoba,
e as “árvores invisíveis”, numa leitura um pouco forçada, podem remeter ao
signo da estação do ano, o kigo;
porém, a fúria semântica e metafórica dessas linhas está bem mais próxima do
simbolismo e do surrealismo europeus, movimentos aos quais Lautréamont, em
geral, é associado. “Mãos vegetais” é uma bela imagem, mas talvez soasse, a um
poeta como Bashô, mera exibição de virtuosismo; “árvores invisíveis” é igualmente
construção mental, diferente do registro da observação direta dos fenômenos. A organização
estrutural do poema em duas partes, separadas por um travessão, aproxima-se da
lógica compositiva de muitos haicais japoneses (p. ex., “Cerejas do anoitecer –
/ Hoje também / já é outrora”, de Issa, na tradução de Paulo Franchetti), mas o
efeito causado é totalmente diverso: no haicai, mesmo a sinestesia, a metáfora
e o paradoxo remetem a uma paisagem observada, ou à ação de algum elemento da
natureza, sem nenhuma brecha para relações intertextuais cultas, obscuridade ou
devaneios do poeta. Ao colocar em primeiro plano a sua fantasmagoria pessoal,
parodiando as fantasias de Lautréamont, Casimiro de Brito, guiado “pelo rigor e
pela claridade enigmática do pensamento” (CANTINHO,
2013), caminha para além da mera adaptação de uma forma poética oriental para o
nosso idioma, obtendo um resultado poético denso, com originalidade formal e
temática.
[1]
Este poema foi assim traduzido por Paulo Leminski: “o mar escurece / a voz das
gaivotas / quase branca” (LEMINSKI, 1983: 36).
[2] Casimiro de Brito: A boca na fonte,
resenha publicado no n. XXVII da revista Zunái (março / 2013).
[3] A
saudade dos pais também é um tema caro à poesia japonesa: “O grito do faisão /
Que saudade imensa de meu pai e minha mãe” (Bashô) (in: FRANCHETTI, 2012: 80).
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