I
OLHO-de-virgo, barriga-de-peixe, dentes-de-leão: palavras são reflexos. Habitei no espelho e comi serragem, vidro moído, trapos de jornal; e copulei com os relógios de pulso, com as navalhas, com fechaduras. Sobre a mesa da sala, entre as vogais dispersas do alfabeto, estilhaços de ampolas para abolir a idéia do tempo. Os vermes saem pelo buraco da agulha, a palavra jade é pus, a palavra jalde é cuspe. A palavra janga está nua, vestida de alarme. As maçãs enlouquecem. O verde enfurece as conchas e a lesma pensa na árvore da palavra despida que sonha.
II
Tudo são nomes e formas. Lâminas cortam os fios desatados de água estagnada. Há uma praça onde comprei pêras ou figos, não sei. Onde ouvi a menina dizer eibishuá. A lua pisca um olho para a jovem parca, ela é cega e surda, e come entulho no banco da praça. Sua voz arisca, bruta, tantaliza: fio de arame tenso, buraco de agulha, cano de pistola. Tudo são palavras, e palavras são coisas. Que não permanecem. Tudo queima, e o sol vegetal é a urina de um cão que arde em vermelho.
III
A poesia pode dizer o tempo que escorrega de seus dedos? Tudo são simulacros, pegadas no limo do nada. Todavia, o velho coxo sangrado disputa comida com o cão. A poesia pode andar de bicicleta, deslancha no mar azul, onda em castelhano se diz ola, nuvem em francês se dia nuage. Ela pode ser escrita em pele viva, em algodão, no suor do Marrocos, no violoncelo de São Petersburgo, numa bodega de La Habana. Porém, a tesoura corta tudo em pedaços. Permanece uma sombra, um eco de ruidoso silêncio. Que o espelho captura e multiplica em um número incalculável de reflexos.
1999
(Do livro A Sombra do Leopardo)
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