quarta-feira, 7 de agosto de 2013

RETRATO DO ARTISTA



O REINO DAS PALAVRAS DE CONTADOR BORGES

Contador Borges é um poeta que conversa com a filosofia, o teatro, o surrealismo, o barroco e a tradição libertina, realizando uma síntese criativa que torna a sua escrita poética inclassificável, conforme os rótulos disponíveis nos escaninhos da crítica literária. Seu livro de estreia, Angelolatria, publicado em 1997, já revela uma voz singular, em versos de estranha plasticidade como estes, do poema Falanges: “Nuas se estiram / Em direção ao mar / De palavras. Trevas / Bordam as margens. // Da luz que se esvai / Entre os dedos”, ou ainda nestas linhas de Máscaras: “Corre um olho invisível / Por dentro / De cada palavra que sonha / Sair da máscara / Como um sonho de larva”. Há nesse livro vestígios da lírica visionária do simbolismo (tão mal compreendido em nossa literatura) e da estética surreal, mas também dos jogos conceituais e semânticos do barroco e das experiências construtivistas, na fragmentação e espacialização de palavras e linhas que desarticulam o verso e a lógica discursiva linear. Um poema notável pela concepção estrutural é Leviandades da luz, formado por 47 frases curtas autônomas, separadas por asteriscos e entrealinhamentos, à maneira de enigmas oraculares ou definições absurdas: “Luzes camicases invadem a página. / O branco quer mácula. / Error na fração do sentido. / Lavar diariamente os miasmas da palavra amor”. 
Se nas composições lúdicas de Angelolatria o poeta trabalha, se não com o verso (unidade melódico-rítmica do poema, que pressupõe a métrica e a rima, ou, no caso do verso livre, melodia e sintaxe), ao menos com linhas de alta densidade semântica, no livro seguinte, O reino da pele, publicado em, 2002, a própria distinção entre prosa e poesia é dissolvida, anulada no jogo inventivo da linguagem. Tudo é poesia, parece dizer Contador Borges, ou ainda, seguindo o conceito de Jakobson, função poética, o jogo prazeroso das palavras, tiradas de sua banalidade cotidiana, de sua missão rotineira de apenas nomear coisas, para se elevarem à condição de quase autonomia em relação aos significados. O poema se constrói como um universo próprio, uma realidade constituída de imagens, sons e conceitos unificados no tecido verbal.  O poeta, como sabia Huidobro, não se conforma ao retrato ingênuo das referências externas, mas cria, ele próprio, uma realidade nova, insólita, desafiadora. Este é o caso de Contador Borges, “antipoeta e mago”, arquiteto de alucinações.

O reino da pele é dividido em três seções, por onde se movimentam, de maneira aparentemente caótica, três motivos condutores: o Corpo, o Tempo e a Morte. A princípio, a gravidade dos temas e a lembrança da formação do poeta, doutor em Filosofia, poderiam indicar vocação metafísica; certamente, não é possível excluir essa leitura, mas não é a única, nem mesmo a principal. Se “a arte nunca é a verdade”, como disse Eduardo Milán, temos aqui um conteúdo que se constrói e ressoa na própria pele do poemário, em suas inusitadas relações entre os vocábulos. Algumas palavras repetem-se, obsessivas, ao longo da obra, como olho, pálpebra, luz, sugerindo o olhar do poeta sobre as coisas. Não se trata, porém, de mero registro fotográfico, e sim de um olhar que modifica e transforma os objetos, recriando atmosferas, ambientes e personagens dramáticos. Outros motes obsessivos são a nudez, o fogo e a cinza, símbolos do percurso de nossa efêmera jornada: “Os olhos sabem que vão morrer / no cone abismal da leitura. Mas não há fundo / na realidade das conchas. Seu esqueleto sonoro / talvez contenha o segredo da morte”.  Podemos encarar este ciclo de prosas poéticas como pequenas narrativas interligadas, onde os personagens são idéias que se movimentam de maneira imprevista, fora de limites definidos de Espaço-Tempo e sem trama ficcional.  O jogo poético, o teatro de marionetes da existência, é o que flui nesse desdobramento semântico, em que as metáforas sucessivas, corroendo, ocultando ou ampliando possíveis significados (insinuando a suposição de não haver mais significados) fazem da poesia um ícone de nossa própria orfandade espiritual, num mundo sem utopias, regido pela loucura luciferina do mercado e da mídia.
Todas estas definições podem ser estendidas também ao livro A morte dos olhos, publicado em 2007, talvez o trabalho mais sinestésico e sensorial de Contador Borges. A “morte dos olhos” é uma belíssima e indecifrável metáfora, que parece indicar a amplificação de todos os outros sentidos (como acontece na cegueira): “Pele sobre pele, atol / de ossos, / os dedos a toque de caixa / torácica, / tambor erótico: quando soa / o êxtase / em pele de tigre”. A eroticidade da escrita de Contador Borges não surpreende, dado o seu interesse por Bataille e seu trabalho de pesquisador e tradutor da obra do Marquês de Sade. O universo de sensações do corpo é traduzido na alquimia do verbo, em que as palavras assumem a condição de realidades materiais, “com sua própria fauna e flora”, para citarmos novamente Huidobro. A cicatriz de Marilyn Monroe, publicado em 2012, inaugura uma nova fase criativa do poeta. O livro é construído como se fosse uma peça de teatro em um ato, dividida em onze cenas, escritas em prosa, narradas em primeira pessoa, antecedidas por planos de ação, escritas em letras maiúsculas. É o livro mais experimental de Contador Borges, em que a imagem da cicatriz recorda a metáfora neobarroca da incisão, corte ou talhe, que recorta a nudez da pele, assim como a grafia viola o espaço em branco do papel. A cicatriz é também um elemento do grotesco, do “belo horrível”, bem ao gosto de Goya ou El Grecco. Ou ainda, como diz o próprio poeta: “A beleza é o começo do terror que somos capazes de suportar, nos diz a primeira das elegias escritas por Rilke no castelo de Duíno. Quando de algum modo o corpo se deforma, ultrapassamos este limite”.    

(Artigo publicado na edição de agosto da revista CULT)

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