O REINO DAS PALAVRAS DE CONTADOR BORGES
Contador Borges é um poeta que conversa com a filosofia, o
teatro, o surrealismo, o barroco e a tradição libertina, realizando uma síntese
criativa que torna a sua escrita poética inclassificável, conforme os rótulos
disponíveis nos escaninhos da crítica literária. Seu livro de estreia, Angelolatria, publicado em 1997, já
revela uma voz singular, em versos de estranha plasticidade como estes, do
poema Falanges: “Nuas se estiram / Em
direção ao mar / De palavras. Trevas / Bordam as margens. // Da luz que se
esvai / Entre os dedos”, ou ainda nestas linhas de Máscaras: “Corre um olho invisível / Por dentro / De cada palavra
que sonha / Sair da máscara / Como um sonho de larva”. Há nesse livro vestígios
da lírica visionária do simbolismo (tão mal compreendido em nossa literatura) e
da estética surreal, mas também dos jogos conceituais e semânticos do barroco e
das experiências construtivistas, na fragmentação e espacialização de palavras
e linhas que desarticulam o verso e a lógica discursiva linear. Um poema
notável pela concepção estrutural é Leviandades
da luz, formado por 47 frases curtas autônomas, separadas por asteriscos e
entrealinhamentos, à maneira de enigmas oraculares ou definições absurdas:
“Luzes camicases invadem a página. / O branco quer mácula. / Error na fração do
sentido. / Lavar diariamente os miasmas da palavra amor”.
Se nas composições lúdicas de Angelolatria o poeta trabalha, se não com o verso (unidade melódico-rítmica do poema, que pressupõe a métrica e
a rima, ou, no caso do verso livre, melodia e sintaxe), ao menos com linhas de
alta densidade semântica, no livro seguinte, O reino da pele, publicado
em, 2002, a
própria distinção entre prosa e poesia é dissolvida, anulada no jogo inventivo
da linguagem. Tudo é poesia, parece dizer Contador Borges, ou ainda, seguindo o
conceito de Jakobson, função poética,
o jogo prazeroso das palavras, tiradas de sua banalidade cotidiana, de sua missão
rotineira de apenas nomear coisas, para se elevarem à condição de quase
autonomia em relação aos significados. O poema se constrói como um universo
próprio, uma realidade constituída de imagens, sons e conceitos unificados no
tecido verbal. O poeta, como sabia Huidobro,
não se conforma ao retrato ingênuo das referências externas, mas cria, ele
próprio, uma realidade nova, insólita, desafiadora. Este é o caso de Contador
Borges, “antipoeta e mago”, arquiteto de alucinações.
O reino da pele é dividido em três seções, por onde se movimentam, de
maneira aparentemente caótica, três motivos condutores: o Corpo, o Tempo e a
Morte. A princípio, a gravidade dos temas e a lembrança da formação do poeta, doutor
em Filosofia, poderiam indicar vocação metafísica; certamente, não é possível
excluir essa leitura, mas não é a única, nem mesmo a principal. Se “a arte
nunca é a verdade”, como disse Eduardo Milán, temos aqui um conteúdo que se
constrói e ressoa na própria pele do poemário, em suas inusitadas relações
entre os vocábulos. Algumas palavras repetem-se, obsessivas, ao longo da obra,
como olho, pálpebra, luz, sugerindo o
olhar do poeta sobre as coisas. Não se trata, porém, de mero registro
fotográfico, e sim de um olhar que modifica e transforma os objetos, recriando
atmosferas, ambientes e personagens dramáticos. Outros motes obsessivos são a nudez, o fogo e a cinza, símbolos
do percurso de nossa efêmera jornada: “Os olhos sabem que vão morrer / no cone
abismal da leitura. Mas não há fundo / na realidade das conchas. Seu esqueleto
sonoro / talvez contenha o segredo da morte”.
Podemos encarar este ciclo de prosas poéticas como pequenas narrativas
interligadas, onde os personagens são idéias que se movimentam de maneira
imprevista, fora de limites definidos de Espaço-Tempo e sem trama
ficcional. O jogo poético, o teatro de
marionetes da existência, é o que flui nesse desdobramento semântico, em que as
metáforas sucessivas, corroendo, ocultando ou ampliando possíveis significados
(insinuando a suposição de não haver mais significados) fazem da poesia um
ícone de nossa própria orfandade espiritual, num mundo sem utopias, regido pela
loucura luciferina do mercado e da mídia.
Todas estas definições podem ser estendidas também ao livro
A morte dos olhos, publicado em 2007,
talvez o trabalho mais sinestésico e sensorial de Contador Borges. A “morte dos
olhos” é uma belíssima e indecifrável metáfora, que parece indicar a
amplificação de todos os outros sentidos (como acontece na cegueira): “Pele
sobre pele, atol / de ossos, / os dedos a toque de caixa / torácica, / tambor
erótico: quando soa / o êxtase / em pele de tigre”. A eroticidade da escrita de
Contador Borges não surpreende, dado o seu interesse por Bataille e seu
trabalho de pesquisador e tradutor da obra do Marquês de Sade. O universo de
sensações do corpo é traduzido na alquimia do verbo, em que as palavras assumem
a condição de realidades materiais, “com sua própria fauna e flora”, para
citarmos novamente Huidobro. A cicatriz
de Marilyn Monroe, publicado em 2012, inaugura uma nova fase criativa do
poeta. O livro é construído como se fosse uma peça de teatro em um ato,
dividida em onze cenas, escritas em prosa, narradas em primeira pessoa,
antecedidas por planos de ação, escritas em letras maiúsculas. É o livro mais
experimental de Contador Borges, em que a imagem da cicatriz recorda a metáfora
neobarroca da incisão, corte ou talhe, que recorta a nudez da pele, assim como
a grafia viola o espaço em branco do papel. A cicatriz é também um elemento do
grotesco, do “belo horrível”, bem ao gosto de Goya ou El Grecco. Ou ainda, como
diz o próprio poeta: “A beleza é o começo do terror que somos capazes de
suportar, nos diz a primeira das elegias escritas por Rilke no castelo de
Duíno. Quando de algum modo o corpo se deforma, ultrapassamos este limite”.
(Artigo publicado na edição de agosto da revista CULT)
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