Claudio Daniel
Oliverio
Girondo (1891-1967) foi um dos principais renovadores da poesia
latino-americana do século XX, ao lado do peruano César Vallejo, do chileno
Vicente Huidobro e do brasileiro Oswald de Andrade. Sua obra, que une a
tradição da lírica espanhola às conquistas da vanguarda, a linguagem do homem
comum à erudição do filólogo, o sentimento nacional à consciência cosmopolita,
está situada na mesma zona de insurgência do Modernismo de 1922, e sua leitura
é um estímulo à descoberta de novas fronteiras para além da linguagem dita
“poética”. No Brasil, no entanto, a obra de Girondo permaneceu inédita ao longo
de setenta anos, um déficit que se deve, em parte, ao fato de o eixo São
Paulo/Rio de Janeiro estar mais próximo de Paris e Nova York do que de Buenos
Aires, Lima e Santiago. Esse isolamento cultural, apartheid entre a
língua de Camões e a de Góngora, foi desafiado, no entanto, por alguns de
nossos melhores poetas.
Mário de
Andrade, em 1927/28, publicou, no Diário Nacional, uma série de artigos
sobre literatura argentina, destacando Oliverio Girondo e o grupo da
revista Martín Fierro. Em seus artigos, Mário fez considerações
sobre Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, de Girondo, e
reproduziu o poema Otro nocturno. Em 1943, Oswald de Andrade
encontrou-se com seu colega argentino quando este visitava o Brasil,
acompanhado por sua mulher, Norah Lange. Em Ponta de lança, Oswald
cita Girondo como um dos "mosqueteiros de 22" e pondera: "Outro
seria o panorama americano se conhecêssemos melhor as letras que
produzimos". Porém, somente a partir dos anos 70, quando Augusto e
Haroldo de Campos publicaram traduções de El puro no, Plexilio e Hay
que buscarlo no nº 2 da revista Qorpo estranho que os
jovens poetas brasileiros afinados com a vanguarda tomaram conhecimento da
obra girondiana. Devemos citar também Jorge Schwartz, cujo livro Vanguarda e
cosmopolitismo faz uma importante análise da obra do poeta; e Régis
Bonvicino, que publicou em 1995 A pupila do zero, com
a tradução na íntegra de En la masmédula, de Girondo — obra capital
desse autor insólito.
Um
poeta a bordo do século XX
Oliverio
Girondo nasceu em 17 de agosto de 1891 em Buenos Aires. Seus pais,
Juan Girondo e Josefa Uriburu, o levaram à Europa pela primeira vez em
1900, para visitar a Exposição Universal, e nos anos seguintes o poeta fez
parte de seus estudos no Liceu Louis le Grand (França) e no Epsom College
(Inglaterra). De volta à terra natal, formou-se em Direito. Na juventude,
Girondo leu, sobretudo, poetas franceses — Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud — e o
nicaraguense Ruben Darío, que influenciou toda a moderna poesia de língua
espanhola. Com um grupo de amigos, Girondo criou, em 1911, a revista
literária Comoedia, e quatro anos mais tarde sua peça La Madrasta (escrita
em parceria com René Zapata Quesada) estreou no Teatro Apolo, em Buenos Aires. Os jornais
da época noticiavam, então, dois acontecimentos que agitavam a Europa: a
eclosão da I Guerra Mundial e a repercussão do Manifesto futurista,
de Marinetti, publicado em 1909 no jornal Figaro, que desencadeou,
nos anos seguintes, diversos manifestos e tendências de vanguarda. Os poetas e
intelectuais argentinos, que se reuniam nos bares e cafés para discutir as
novas idéias estéticas, entusiasmados por autores como Blaise Cendrars, Max
Jacob, Apollinaire, logo criaram um movimento: o ultraísmo, liderado então por
Jorge Luis Borges. Surgiam revistas, como Proa e Martín
Fierro, que divulgavam as propostas vanguardistas e revelavam os jovens
autores. Sob a influência da "nova sensibilidade" dessa geração,
Girondo escreveu Veinte poemas para ser leídos en el tranvía,
publicado em 1922, em Argenteuil, França. O humor, a sensualidade e o exotismo
das imagens cubistas predominam neste livro de impressões de viagens, que tem
ecos de Blaise Cendrars e é contemporâneo de Trilce, de César
Vallejo, e de Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade. A abertura do
poema Croquis na areia é uma boa amostra da técnica de colagem
que Girondo utilizou nesse livro:
A
manhã passeia na praia polvilhada de sol.
Braços.
Pernas
amputadas.
Corpos
que se reintegram.
Cabeças
flutuantes de borracha.
É a época em que Eisenstein fazia
experiências de montagem cinematográfica a partir do estudo dos ideogramas
chineses, das colagens cubistas em pintura, do desenvolvimento de novas
técnicas de fotografia e de peças musicais como A história do soldado,
de Igor Stravinski. Mais adiante, o poema diz:
Por oitenta centavos, os fotógrafos vendem os os corpos das mulheres que se
banham. Há quiosques que exploram a dramaticidade das ondas que se
quebram. Criadas chocas. Sifões irascíveis, com extrato de mar. Rochas com
peitos algosos de marinheiros e corações pintados de esgrimista.
Este
poema, como observou Jorge Schwartz em Vanguarda e cosmopolitismo, é um
retrato crítico do kitsch, do cartão-postal, do baedecker de
turista, indicando, pela paródia, a banalidade do "belo" das imagens
paradisíacas, convertidas em objetos de consumo. O mesmo enfoque se encontra
nos romances de invenção de Oswald de Andrade e na poesia
"pau-brasil", com os quais há notáveis semelhanças estilísticas.
O
barroco e o simbolismo em Girondo
Calcomanías (1925), o segundo livro de
Girondo, retrata de modo carnavalizado a Espanha católica e agrária pré-guerra
civil e é, segundo Schwartz, uma "declaração de independência" das
letras argentinas. Cabe ressaltar, porém, que, apesar das influências francesas
e do sarcasmo contra a ex-metrópole, Girondo permaneceu um herdeiro do barroco
espanhol e, em particular, de Quevedo. O barroco está presente no exagero
metafórico, na mescla de palavras cultas e chulas, na retórica transbordante,
nas imagens a la Goya e
no tom picaresco. O retrato do quotidiano em Calcomanías mescla
realismo e humor, como nessas passagens de Calle de las sierpes:
“Cobertos em suas capas, como toureiros, / os padres entram nas barbearias / a
embelezar-se em quatrocentos espelhos por vez / e quando saem às ruas já têm
uma barba de três dias. (...) A cada duzentos e quarenta e sete homens, /
trezentos e doze padres / e duzentos e noventa e três soldados / passa uma
mulher”.
Espantapájaros (1932) é uma obra singular da
primeira fase de Girondo. O livro é constituído de poemas em prosa, numerados,
sem uma sequência narrativa, enfocando basicamente o amor, a morte e o anseio
de fuga, de "transmigrar", numa linguagem que só raramente, no
caligrama-prefácio, nos jogos paronomásicos, no cultismo polifônico, lembra o
Girondo posterior, do experimentalismo construtivo. Espantapájaros reflete
também a influência de dois poemas em prosa da literatura maudite francesa: Une
saison en enfer, de Rimbaud, e Les chants de Maldoror, de
Lautréamont. (Nesta mesma linha, aliás, se insere Temblor de cielo,
publicado em 1931 pelo chileno Vicente Huidobro.) Citaremos, como ilustração,
um fragmento:
Que tua família se divirta em deformar teu esqueleto para que os espelhos, ao mirar-te,
se suicidem de repugnância; que teu único entretenimento consista em
instalar-te na sala de espera dos dentistas, disfarçado de crocodilo, e que te
apaixones tão loucamente por uma caixa de ferro que não possas deixar, nem um
só instante, de lamber-lhe a fechadura.
Interlúnio (l937) é o final tranqüilo da
primeira fase de Girondo, marcado pelo otimismo inicial do século XX, a era
das máquinas, das invenções e da utopia socialista. Não era apenas a estética
que os vanguardistas pretendiam transformar, mas a sociedade e o próprio homem.
Como assinalou Mário Faustino em Poesia-experiência, o sonho da
modernidade era unir o "mudar a vida" de Rimbaud ao "mudar o
mundo" de Marx e, para isso, eram necessários novos meios de expressão.
Em Girondo, esse otimismo é manifestado sobretudo pela idéia de solidariedade,
como notou Enrique Molina (Hacia el fuego central, em Obras de
Oliverio Girondo). O desejo de identificação com o mundo é uma das
características básicas da poesia moderna, antecipado em Leaves of
grass, de Whitman, e teve ressonâncias em poetas tão diversos como
Drummond, Neruda e Maiakóvski. O otimismo dos anos 20, porém, foi abalado pelos
desvios da Revolução Russa, em especial após a ascensão de Stalin, pelo
surgimento do nazifascismo, pelo crash da Bolsa de Nova York,
e entrou em colapso com a II Guerra Mundial.Persuasión de los días (l942)
é, por essa razão, uma obra de ruptura e o começo de uma nova fase.
A
geometria da composição
Conforme
Enrique Molina, "já não são agora os movimentos e os significados do sonho
e a imaginação que se impõem, mas um sentimento de náusea. (...) A visão de um
mundo degradado pela miséria social e pela miséria de espírito". A poesia
de Girondo torna-se mais concisa, com imagens exatas, sonoridades raras e uma
preocupação geométrica com a arquitetura do poema. As influências iniciais, do
cubismo e do surrealismo, parecem ceder lugar a um construtivismo a la Maliévitch.
Nesta obra o poeta conserva o tom coloquial, retórico — e colérico — de
sua prosódia, em brados de protesto como Es la baba e Azotadme!,
poemas que foram escritos para ser lidos em voz alta, como A plenos
pulmões, de Maiakóvski. A visão atormentada do poeta, sua solidão e o
sentimento de impotência frente aos fatos do mundo têm como poema-símbolo a
composição Areia: “De areia o horizonte. / O destino de areia. / De
areia os caminhos. / O cansaço de areia. / De areia as palavras. / O silêncio
de areia.”
Persuasión
de los días, com toda
sua beleza e ousadia, é apenas o prelúdio à revolução de En la
masmédula (1954-56), a obra culminante de Girondo, em que seu
experimentalismo radical se aproxima da prosa de James Joyce e da poesia concreta
dos anos 50 num mesmo grau de radioatividade poética. A estranheza da obra
começa pelo título: o que é "masmédula"? Não é fácil saber, em se
tratando de um autor que fazia do paradoxo o seu método. Nesse livro
desconcertante, agressivo, cheio de energia e plasticidade, Girondo utiliza um
arsenal linguístico que o coloca entre os maiores inventores de poesia em
língua espanhola. O livro, gravado em LP nos anos 60 por Arturo Cuadrado e
Carlos A. Mazzanti, é um dos emblemas do trágico paradoxo da América Latina
que, exportadora de matérias-primas e importadora de manufaturados, produz,
apesar disso, alta tecnologia poética.
En la
masmédula é um
labirinto, ou, para citar uma imagem borgeana, uma série infinita de
labirintos, em que a linguagem é levada a seus limites, rompendo barreiras do
próprio idioma e da dicção. Esta obra não pode ser vista apenas como o resultado
de equações estético-formais; trata-se de um longo monólogo, dividido em
fragmentos, cujo centro temático é a viagem — não o deslocamento geográfico-espacial,
mas a jornada interior rumo às entranhas da melancolia e dos pesadelos de um
homem fatigado pelos dissabores da existência. Neste sentido, o paralelo possível
é com oEscaravelho de Ouro, de Oswald de Andrade, e com a filosofia de
Sartre e Camus.
Girondo
passou os últimos anos de sua vida ao lado da mulher, Norah Lange. Após
conhecer a Europa, os Estados Unidos e Oriente Médio, passou a viajar com mais
freqüência pela América Latina, tendo se encontrado com Pablo Neruda, no Chile,
e com Oswald de Andrade, no Brasil. A pintura foi sua grande paixão. Em sua
juventude, escreveu um ensaio, Pintura moderna, em que fez o elogio
de Cézanne, Picasso, Matisse. Pouco antes de morrer, pintava quadros de
inspiração surrealista. O cronópio Oliverio Girondo — aristocrata esnobe,
homem bem-humorado, provocador e ferino, morreu em 24 de janeiro de 1967, aos
76 anos, em Buenos
Aires.
Esta postagem caiu do céu!! Esta semana mesmo coloquei o nome do Girondo numa lista pra eu pesquisar!!!
ResponderExcluirVou ver se encontro algum livro dele na Estante Virtual!!!