Zunái: No seu método de trabalho, dentro do
processo criativo, desde a primeira ideia, elaboração e, por fim, a lapidação e
re-re-re-re-visão, qual é o momento de largar um texto literário e partir para
outro? Você decide sozinho ou precisa de alguma opinião externa, ou até mesmo
acontecimentos invariáveis da vida?
Contador
Borges: Eu não decido nada. Quem decide
é o texto. Não é ele que afinal me escreve? A decisão de parar de escrever é
somente um ato de “suspensão”, em que você interrompe o que está fazendo. Chega
uma hora em que você tem de abandonar o texto e isso pode coincidir (é bom que
assim seja) com um momento no qual o texto fica de pé, fala por si mesmo, emite
alguma fagulha de beleza, algum sinal de vida e adquire uma espécie de
independência em relação ao autor, esta fábula. É o momento em que a obra se
torna um “ser de sensações”, como diz
o filósofo Deleuze. O autor é apenas uma ausência, um vazio a partir do qual
alguém escreve um texto (poema, conto, romance, peça teatral, etc.). A propósito,
o autor é uma invenção da modernidade. Os antigos desconheciam totalmente esta
noção. Podemos afirmar que a ideia de autor nasce e morre com a modernidade.
Celebremos então suas cinzas. A obra é o ouro que fulgura em meio às cinzas do
autor. O texto chega para o leitor e já vai dizendo: “olá, sou um poema, coisa e tal, não tenho pai nem mãe”. Toda obra
literária carrega seus mortos. Há um poema do Lezama Lima que diz muito bem
isto: “Desejoso é aquele que foge de sua
mãe”. A minha morreu faz tempo e estou fugindo até hoje. É bem verdade que
há um momento na criação em que a mão de quem faz é mais sentida, incisiva,
etc. Mas a condução do processo não pode ser calculada ou medida, controlada o
tempo todo. Não compartilho a posição de João Cabral (e nem por isso deixo de
admirá-lo), de que um livro deve ser totalmente planejado. Ora, o
construtivismo tem também aspectos inconscientes em seu processo criativo. Quem
escreve segue um plano de imanência (nos termos de Deleuze). Uma vez li uma
entrevista do Haroldo de Campos em que ele dizia ser às vezes “agraciado com uma semana toda fecunda”
em seu processo criativo, o que prova que mesmo ele, um construtivista, tinha
plena consciência disto. Por outro lado, não acredito muito na espontaneidade,
no “automatismo psíquico”, dos surrealistas. Inspirada ou não, a criação
poética necessita de cultivo, de labor, de sacrifício de palavras. Porém, o
acontecimento da poesia é tão singular, que, às vezes, alguns textos já saem
praticamente irretocáveis. Infelizmente, isto não é frequente, ao menos no meu
caso. Por fim, não acredito que um autor necessite de alguém para saber se seu
livro está pronto ou não. O fim da obra em geral coincide com a sua
independência em relação ao autor. Ela termina quando já não pertence mais a
ele (se é que algum dia pertenceu: “não
meu, não meu quando escrevo”, diz Pessoa.). Por isso é algo melancólico,
lutuoso, um lançamento de livro. É quase um velório. Sei de autores que
abominam essas ocasiões. Eu particularmente não tenho muito problema com
isso... é muito bom ver os amigos, celebrar, etc., mesmo sentindo por dentro
uma pequena morte em relação ao livro que se despede como a noiva que deixa a
casa paterna: she’s leaving
home. Num certo sentido, cada livro novo é uma espécie de atestado de
óbito. O poeta autografa uma lápide, algo que já não mais lhe pertence. “Poeta: jardim de epitáfios”, diz Octavio
Paz.
Leia a íntegra da entrevista de Contador Borges a Priscila Merizzio na edição de fevereiro da Zunái.